Amol Singh
Jacobin
Um trabalhador carrega um saco de trigo em um mercado atacadista em Punjab, 30 de abril de 2024. (Narinder Nanu/AFP via Getty Images) |
Tradução / O estado indiano de Punjab, localizado na fronteira com o Paquistão, no noroeste do país, tem uma população de vinte e sete milhões, a maioria da qual é Sikh. Nos últimos tempos, Punjab deu origem a um importante movimento que procura organizar os Dalits, que constituem a parcela mais pobre e oprimida da porção rural do estado.
Mais de dois terços da população da Índia ainda vive no campo e 45% da força de trabalho está empregada na agricultura. Um olhar mais atento ao movimento no Punjab pode, assim, lançar luz sobre algumas das questões mais importantes para a política e a sociedade indianas, tais como a relação entre classe e casta, até que ponto a guinada neoliberal da Índia ao longo das últimas três décadas transformou suas estruturas sociais e o potencial de mobilização de grupos oprimidos e explorados, como os Dalits.
Terra revolta
Em 2008, Bahal, Amarjit e alguns outros jovens Dalit formaram o Sindicato Krantikari Pendu Mazdoor (Sindicato Revolucionário dos Trabalhadores Rurais). Amarjit trabalhava para a AP Solvex na cidade vizinha de Dhuri. Quando criança, ele foi siri (uma forma de trabalhador em regime de servidão) para uma família da casta agrícola dominante Jatt por dez anos.
Mais de dois terços da população da Índia ainda vive no campo e 45% da força de trabalho está empregada na agricultura.
Ele afirma que sua vida como siri foi semelhante à escravidão: “Recebíamos chapatis estragados e leite com água para se alimentar, tínhamos utensílios separados. Eu trabalhava desde cedo, até tarde da noite. Fui tratado como um bezerro inútil.” Na agricultura moderna e mecanizada da Índia, os agricultores consideram os bezerros machos inúteis e os mantém com fome, mal lhes permitindo serem amamentados.
Quando o arrendamento anual de terras estava em andamento, alguns Dalits locais abordaram Bahal, Amarjit e seus camaradas. Conseguiram interromper uma oferta por procuração que um Dalit fazia em nome de um agricultor Jatt. A administração local, dominada por membros das castas superiores, não queria que as terras fossem para os Dalits, o que limitou várias ofertas. Mas a organização dos trabalhadores perseverou e acabou assumindo o controle dos nove acres de terra.
Bahal pertencia a uma organização estudantil de esquerda em sua faculdade. Ele conhecia as experiências de coletivização chinesa e soviética e tinha uma imagem otimista delas após ler obras literárias traduzidas, como Virgin Soil Upturned (lançado no Brasil como “Terra e Sangue” pela Editora Vitória na década de 1950), de Mikhail Sholokhov, e The Hurricane, de Chou Li-Po.
Quando ele e seus camaradas começaram a cultivar comunitariamente no terreno que haviam adquirido, o chamaram de sanjha khet, em homenagem à frase usada para fazenda coletiva na tradução em punjabi do romance de Sholokhov. Eles expunham publicamente as receitas e despesas nos muros da aldeia e realizavam assembleias gerais regularmente.
Mobilização Dalit
Embora cerca de 250 famílias Dalit tenham aderido ao arrendamento da terra, apenas noventa e quatro delas possuíam os fundos necessários. Essas famílias possuíam gado e queriam uma parte do sorgo cultivado e de outras hortaliças para forragem. O gado sempre foi importante para elas, que dependem do leite para se alimentar. Bahal e seus camaradas também fornecem auxílio para os Dalits sem-terra em tempos de dificuldades.
O movimento é uma forma de afirmação das castas inferiores contra a dominação Jatt. Ele enfrentou uma reação brutal e violenta dos Jatts e da administração estatal.
Na ausência de terras comuns, as mulheres Dalit costumavam ir até aos limites das terras dos Jatts para colher hortaliças duas vezes por dia, onde enfrentavam regularmente abusos e assédio sexual por parte dos proprietários. Devido a esta experiência, as mulheres superaram os homens numericamente no movimento.
Inspirado por este exemplo, um grupo maoista formou o Comitê Zameen Prapati Sangharsh (ZPSC), exigindo o arrendamento exclusivo de terras para os Dalits em 2014. O ZPSC tem liderado um notável e inédito movimento baseado em castas.
Cada aldeia tem algumas terras comuns, embora a quantidade varie entre elas. Um terço dessas terras é reservado para os Dalits arrendarem anualmente. No passado, Jatts costumava controlar estas terras sob o nome de licitantes Dalit, por procuração. O ZPSC organizou os Dalits para arrendar terras como uma comunidade e impulsionou a agricultura cooperativa.
Sem concorrentes, eles poderiam manter o valor de arrendamento o mais baixo possível. A quantidade de terra varia de apenas alguns acres a mais de cem. Nos últimos dez anos, este movimento se espalhou por mais de 120 aldeias.
À primeira vista, isto parece um movimento de mulheres Dalit que demandam respeito e retornos econômicos do que colhem da terra. Mas também é muito mais do que isso. O movimento é uma forma de afirmação das castas inferiores contra a dominação Jatt. Isso desencadeou uma reação brutal e violenta dos Jatts e da administração estatal.
Casta e classe
A compreensão orientalista de casta apresenta-a como tendo origem na religião hindu, com a ideologia do bramanismo mantendo a hierarquia social. Esta compreensão metafísica do fenômeno da casta domina o discurso da política identitária nas universidades da Índia.
A compreensão orientalista de casta apresenta-a como tendo origem na religião hindu, com a ideologia do bramanismo mantendo a hierarquia social.
No entanto, o padrão das relações de castas no estado de Punjab, dominado pelos Sikh, desafia este quadro explicativo. Cerca de 58% da população do estado é Sikh, com uma proporção muito maior nas áreas rurais, que constituem o crisol da opressão baseada nas castas.
Punjab também tem a maior proporção de Dalits de qualquer estado indiano: eles representam quase um terço da população, mas possuem menos de 2% das terras agrícolas. Mais uma vez, a proporção de Dalit é maior nas aldeias, onde dominam os membros da casta Jatt.
O Sikhismo é uma religião comparativamente nova, baseada no princípio da igualdade entre as castas. No entanto, a realidade material do controle da terra tornou esta filosofia religiosa ineficaz como movimento emancipatório, resultando na prevalência da opressão e exploração de castas.
No passado, essas relações baseavam-se no jajmani. Ele era um sistema de ocupações hierárquicas de castas baseado na noção de “reciprocidade”. Na economia da aldeia, a terra era fundamental para a produção. Jatts possuíam as terras e empregavam membros de outras castas, como os julahe (tecelões), os lohar (ferreiros) ou os ghumar (cerâmicos), oferecendo-lhes em troca uma pequena quantidade de grãos.
Neste sistema, os Dalits realizavam o chamado “trabalho sujo” de remoção de animais mortos, produção de couro e coleta de lixo. Sua principal ocupação, porém, era a do trabalho agrícola. As relações entre proprietários de terras e trabalhadores eram altamente opressivas e exploradoras.
A estrutura de castas que o sistema jajmani produziu e reproduziu baseava-se no poder econômico e social da casta Jatt. Mas a economia da aldeia e o sistema jajmani se desintegraram na sequência da Revolução Verde da década de 1970 e da subsequente guinada da Índia para políticas neoliberais nos anos 90.
Depois da revolução verde
Durante a década de 1970, o estado indiano introduziu variedades de cultivo híbridas e fertilizantes, combinados com a utilização de novas máquinas, numa tentativa de resolver o problema da deficiência alimentar nacional. Punjab esteve no centro dessas mudanças.
O emprego de tratores e ceifeiras-debulhadoras, bem como de herbicidas, reduziu drasticamente o número de dias de trabalho necessários na agricultura, expulsando os trabalhadores Dalit.
Nos últimos cinquenta anos, o emprego de tratores e ceifeiras-debulhadoras, bem como de herbicidas, reduziu drasticamente o número de dias de trabalho necessários na agricultura, expulsando os trabalhadores Dalit. De acordo com dados recentes, do total da mão-de-obra rural, cerca de 30% se dedicam à agricultura apenas durante curtos períodos do ano, enfrentando o desemprego no restante do tempo ou dependendo do pequeno comércio e de outras formas de trabalho assalariado.
O fenômeno do trabalhador em regime permanente (siri), que recebia um pequeno rendimento no final do ano, diminuiu de quase 36% de toda a força de trabalho em 1987-88 para pouco mais de 1% em 2018-19. Os siris eram altamente explorados, sem jornadas com quantidade fixa de horas ou qualquer tipo de trabalho definido. Seus níveis de remuneração eram muito baixos, pois normalmente tinham de pagar dívidas contraídas com taxas de juro onerosas aos Jatts. Isso muitas vezes os prendeu em um ciclo de dívida, forçando-os a trabalhar como siris durante toda a vida.
A maioria dos Dalits trabalha agora como trabalhadores assalariados na construção, na indústria transformadora ou no setor dos serviços. Eles tendem a se dissociar da economia da aldeia e a trabalhar em vilas e cidades próximas. Por outro lado, membros das castas médias e baixas dos estados indianos mais pobres migram agora para o Punjab para realizar o trabalho agrícola que os Dalits costumavam fazer.
Embora a Revolução Verde tenha inicialmente aumentado o rendimento dos agricultores Jatt, com o advento da era neoliberal, o Estado começou a limitar o apoio que tinha anteriormente fornecido aos agricultores e estes viram-se sujeitos à exploração por empresas multinacionais. Entre 1991 e 2000, de um total de um milhão de famílias de produtores rurais, duzentos mil agricultores pequenos e marginalizados abandonaram a agricultura, muitos dos quais se juntaram aos Dalits nas fileiras dos trabalhadores assalariados.
No outro extremo da escala, registrou-se também um declínio no número de grandes agricultores e da quantidade de terras que possuem. Em toda a Índia, apenas as famílias rurais que possuem pelo menos dez acres de terra ganham mais do que gastam, e a grande maioria — 96% — das famílias rurais fica abaixo deste patamar.
A disparidade entre receitas e despesas para os Jatts gerou dívidas e dificuldades, culminando eventualmente numa onda de suicídios. Um grande número de Jatts e Dalits formam agora o que o sociólogo Henry Bernstein chama de “classes de trabalho” – trabalhadores que ganham a vida através de uma combinação de pequena produção de mercadorias, comércio em pequena escala e trabalho assalariado. Embora isto possa sugerir que existe uma desconexão crescente entre casta e poder social, essa impressão é errônea.
Uma nova classe dominante
Uma nova classe dominante regional emergiu no processo, à medida que os ricos agricultores Jatts colheram os benefícios da Revolução Verde. Eles também tinham acesso a empréstimos, venda de insumos agrícolas e outros negócios fora da agricultura. Esta classe controla firmemente os recursos das aldeias de várias formas, incluindo santuários religiosos, panchayats (conselhos de aldeia), instituições de assistência social, organizações de agricultores, partidos políticos e órgãos da administração estatal.
O Comitê Shiromani Gurdwara Parbandhak (SGPC), por exemplo, é um órgão religioso Sikh que os críticos internos acusaram de ser dominado por Jatts. Ele controla os santuários Sikh em Punjab, Haryana e o território de Chandigarh. A prática do boicote social é aplicada através de santuários Sikh ao nível das aldeias, que são dominados por esta classe de agricultores ricos.
Normalmente, quando os Dalits exigem melhores salários durante o período de trabalho intensivo na cultura de arroz, que ainda depende do cultivo manual, a comunidade Jatt os exclui de qualquer tipo de transação econômica, quer isso signifique vender alimentos ou leite, pagar salários, ou receber benefícios sociais, que são distribuídos pelos conselhos das aldeias. Os Jatts mobilizam todas as instituições de poder da aldeia para fazer este boicote social funcionar.
Quando os Dalits exigem melhores salários durante o período de trabalho intensivo do cultivo do arroz, a comunidade Jatt exclui os Dalits de qualquer tipo de transação econômica.
Os Jatts dominam os conselhos das aldeias. Mesmo quando a posição de chefe é reservada aos Dalits, a pessoa realmente eleita é alguém fiel à classe dos agricultores ricos. Na maioria das aldeias, os membros Dalits do conselho não podem se sentar na frente dos membros da casta superior. As instituições de assistência social das cooperativas das aldeias estão sob controle Jatt, incluindo os recursos do governo para emprestar dinheiro aos Dalits pobres. Recentemente, a ZPSC tentou desafiar esse domínio sobre essas cooperativas, mas sem sucesso.
Os Jatts controlam várias grandes organizações de agricultores. Contudo, as organizações de agricultores de esquerda são mais fortes e numerosas, oferecendo apoio aos Dalits quando são vítimas de injustiças. Em algumas aldeias, as filiais locais das organizações de agricultores de esquerda impuseram o boicote social, mas, infelizmente, as instituições estatais tomaram conhecimento disso e expulsaram os membros responsáveis.
Através do controle sobre estas diversas instituições de poder político, social e econômico, os Jatts ricos exercem sua autoridade sobre a política eleitoral e todos os principais partidos. Por seu lado, os partidos de esquerda que aderem à ideologia maoista veem a democracia liberal como uma farsa e evitam participar nas eleições, acreditando que isso os converteria de revolucionários em reformistas.
Os pequenos agricultores também têm sido os perpetradores da discriminação, embora muitos partilhem uma posição de classe com os Dalits quando trabalham ao lado deles em pequenas indústrias e no setor de serviços, ou como funcionários do Estado. Pode-se entender estes boicotes sociais e injustiças como a reação dos agricultores ricos e dos pequenos agricultores recentemente empobrecidos, que procuram manter o poder das castas frente à afirmação dos Dalits.
Na aldeia de Jhaloor, uma multidão Jatt de cerca de 250 pessoas respondeu à demanda dos Dalit por terras atacando a área onde viviam. Agrediram uma mulher com machados, cortando-lhe uma perna; mais tarde ela sangrou até morrer no hospital. Os jovens Jatt espancaram e abusaram sexualmente de mulheres Dalit, cujas casas foram saqueadas.
Este não foi um incidente isolado. Na aldeia de Balad Kalan, a administração local prendeu quarenta e um Dalits sob acusações forjadas de tentativa de homicídio, exigindo suas terras como contrapartida. Eles só foram soltos após uma luta que durou cinquenta e nove dias.
Além da base e da superestrutura
O programa do clandestino Partido Comunista da Índia (de tendência maoista) retrata a opressão de castas como um legado do sistema “semifeudal” da Índia e prevê que a “distribuição de terras aos agricultores” dará início a um processo que conduzirá à sua erradicação. Por outro lado, o institucionalizado Partido Comunista da Índia (marxista), que faz parte da aliança da oposição nas eleições deste ano, define a casta como “um remanescente da sociedade pré-capitalista”.
A luta contra as castas é vital para construir a unidade dos trabalhadores.
Podemos dividir a compreensão das castas entre os comunistas da Índia em três grandes categorias. A primeira é composta por aqueles que veem a casta como parte da “base” socioeconômica e acreditam que ela só pode ser abolida através da luta de classes e da revolução. A segunda é composta por aqueles que a veem como um fenômeno da “superestrutura” e defendem que uma transformação cultural pode eliminá-la após a revolução. Na terceira categoria temos aqueles, como o ZPSC, que veem a casta tanto como uma questão de base como de superestrutura.
O problema de usar a divisão binária herdada de base e superestrutura, que deriva de um texto específico de Karl Marx, é que tendemos sempre a banalizar o que colocamos na superestrutura – neste caso, as instituições sociais e políticas. Dado que os grupos comunistas caracterizam a sociedade indiana como “semifeudal”, argumentam que são necessárias reformas agrárias para eliminar as forças do feudalismo e completar o que chamam de Nova Revolução Democrática.
O economista Vikas Rawal estimou que se for imposto um limite máximo para propriedades de terra de 17,5 acres, apenas serão fornecidos 0,33 acres de terra para cada família que atualmente não possui terras. Isto não significa que a reforma agrária seja redundante – se realizada, teria um impacto significativo nas estruturas de castas e deveriam ser defendidas. Mas devemos também reconhecer a importância de desafiar as instituições através das quais a hegemonia dos Jatts se manifesta.
Organizações locais a nível de aldeia, nos moldes do ZPSC, podem impor esse desafio. Este pode não ser um movimento de transformação socialista como os grupos maoistas entenderiam, mas a luta contra as castas é vital para construir a unidade dos trabalhadores. Afinal, tal unidade não é possível com base na dominação Jatt. Este movimento poderia fornecer a base para os trabalhadores se envolverem numa futura luta unida contra o capitalismo global.
Colaborador
Amol Singh é um pesquisador e ativista independente que mora em Punjab.
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