Moeda comum é aposta na integração regional como estratégia de proteção contra incertezas geopolíticas
André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP
Tudo começou com o Financial Times reportando a criação da moeda única latino-americana. Provavelmente, a fonte foi alguma autoridade argentina, visando ajudar Alberto Fernández em sua reeleição neste ano.
O ruído gerado reflete o desespero da Argentina, que enfrenta um gargalo administrativo no financiamento das exportações brasileiras, uma vez que o país não tem reservas suficientes para viabilizar estas operações.
Dada a confusão, revisitemos a proposta da moeda comum, o "sur" (sul), publicada no ano passado por Fernando Haddad e Gabriel Galípolo na Folha.
Cédulas de dólar - Gabriel Cabral/Folhapress |
O sur não é uma moeda no sentido convencional —nem é única, como o euro. Trata-se de um mecanismo digital de compensações de fluxos comerciais e financeiros entre países. Deve circular apenas entre bancos centrais e substituirá o dólar em transações comerciais e financeiras dentro do bloco e, eventualmente, com outros blocos regionais.
Cada país integrante terá uma quota na constituição do mecanismo, integralizada por meio de depósito de parte de suas reservas internacionais. O Brasil terá dominância no mecanismo devido ao tamanho das suas reservas, do seu comércio com a região e do seu potencial produtivo.
Trata-se de um aprimoramento do atual Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR), que economiza divisas no volume de transações, transferindo apenas o saldo comercial em dólares. Mas o sur se propõe a ir além disso.
Sua inspiração remonta à Conferência de Bretton Woods, em 1944, ao final da 2ª Guerra Mundial. J.M. Keynes propôs a criação do bancor, uma moeda exclusiva para trocas externas que serviria para suavizar as assimetrias comerciais entre nações.
Ao financiar automaticamente países com déficits, o bancor evitaria ajustes recessivos abruptos, via desvalorizações cambiais ou redução forçada das importações. Protegeria as economias da "fuga para liquidez", em que o dólar atua como refúgio global contra a incerteza. A proposta não vingou por razões geopolíticas, mas sua validez persiste.
O caso argentino ilustra o potencial agregador e catalisador do sur. O país vive há décadas uma restrição externa implacável que o submete a ataques especulativos vindos de dentro e de fora do país. Por exemplo, a recorrente expectativa de desvalorizações cambiais impõe um comportamento defensivo a importadores (que antecipam compras) e exportadores (que adiam repatriamento de divisas). A profecia se autorrealiza e a inflação avança aos saltos.
A dependência com relação ao dólar gera gargalos ao financiamento das exportações do país. Sem estas, não se pode importar insumos industriais e outras necessidades básicas. A economia argentina fica presa numa armadilha de desemprego com inflação, elevação da pobreza, desindustrialização e inibição do comércio regional.
Com a falta de liderança brasileira no governo Bolsonaro, a China explorou a brecha e adotou medidas para ganhar terreno no comércio com a Argentina.
Assim, o sur é parte de uma reação geopolítica a essa desarticulação econômica. Ao adicionar uma camada monetária ao esforço de integração regional, amplia-se o acesso à liquidez internacional e a mecanismos mais flexíveis de ajuste de contas externas. Como não haverá união fiscal nem monetária, mantém-se a independência das políticas econômicas domésticas. Se for bem desenhado, pode desenvolver cadeias regionais de valor e aprimorar as trocas com o resto do mundo. O impulso comercial pode viabilizar investimentos em infraestrutura compartilhada (como o corredor bioceânico), com efeitos positivos sobre renda e emprego.
Trata-se, portanto, de uma aposta na integração regional como estratégia de proteção contra incertezas e ameaças trazidas pela fragmentação geopolítica em curso. Objeto da cobiça estrangeira, nossas riquezas naturais - como as reservas de lítio, de água potável e os nossos biomas - devem catalisar o desenvolvimento sustentável e inclusivo da região.
Unir forças é a receita para superar o subdesenvolvimento na região. A América Latina não é quintal de ninguém. O Brasil está de volta!
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