Vivek Chibber
Jacobin
A organizadora trabalhista Mother Jones reuniu trabalhadores em Montgomery, WV, em agosto de 1912. West Virginia & Regional History Center |
Tradução / Cem anos depois da Revolução Russa, estamos num momento especial, em décadas. Com os partidos tradicionais social-democratas e o neoliberalismo caídos em desgraça, novas oportunidades afinal emergem para a esquerda radical.
Cada crise encontra algum tipo de resolução, e a crise que atravessamos também encontrará. Em que dará depende em grande medida de como a esquerda responda. Se jogarmos corretamente as cartas que temos, a abertura pode ser ocasião para iniciar novo ciclo de organização – revitalizar partidos de esquerda onde seja possível e iniciar novos partidos, se os que há provarem-se imunes a qualquer tipo de reforma.
Mas ao invés de apenas olhar para a frente, esta é também uma ocasião para rever as lições do passado. A revolução russa continua a ser a experiência mais ambiciosa na política socialista, e seus sucessos e fracassos devem fazer parte de qualquer discussão sobre como revitalizar a esquerda. Mas não é apenas a experiência russa. Temos de colocar o experimento bolchevique na história mais ampla da política socialista no século XX - juntamente com exemplos do Chile, Alemanha e Suécia, entre outros.
A Revolução Russa deixou duas grandes heranças – uma herança organizacional e uma herança institucional. Por herança organizacional entendo o que se pode aprender ali sobre a construção de veículos para a ação coletiva no capitalismo – sindicatos, partidos e agremiações de modo geral. Por herança institucional, entendo as estruturas básicas que se encontrarão numa sociedade pós-capitalista – o sistema político, a organização econômica, a estrutura dos direitos. A dimensão organizacional tem a ver com como se constrói o poder dentro do capitalismo; a institucional tem a ver com o que se construirá depois do capitalismo como o conhecemos.
Organizacional
Estrutura
A esquerda tem sempre dois tipos de atitude quando se trata da organização do partido leninista. Para uma esquerda, o modelo é um desastre ou, no mínimo, uma experiência negativa. A acusação aí é que o leninismo sempre e em todos os cantos terminou em puro autoritarismo. Outra parte da esquerda responde que "OK, é verdade, mas você está confundindo Stalinismo e Leninismo." Em outras palavras, o advento de Stálin pôs fim ao debate.
Os que defendem o partido leninista têm razão quando dizem que, na história inicial, foi partido notavelmente aberto e dinâmico. Mas ao mesmo tempo, o fato é que a experiência global desde os anos 1930 tendeu muito mais na direção da forma nada democrática. Assim, se o partido de Lênin foi muito democrático, o mesmo não se pode dizer do partido leninista. E não se pode pôr toda a culpa em Stálin, Zinoviev ou qualquer dos suspeitos de sempre. Um modelo de partido com estruturas democráticas mais firmes e resistentes teria gerado experiências mais diversas, não só uma história uniforme de ossificação.
Assim sendo, é fácil concluir, como fazem tantos progressistas hoje, que a esquerda do futuro teria de rejeitar o modelo do partido leninista. O problema com esse modo de pensar é que não há outro modelo que tenha sido, algum dia, politicamente tão eficaz. Todas as alternativas surgidas na esquerda desde os anos iniciais — os partidos de tendências, os horizontalistas, os anarquistas e seus grupos de afinidades, o movimento de movimentos, etc. – conseguiram mobilizar por algum tempo, mas pouco conseguiram na sustentação dos movimentos, e menos ainda em matéria de avanços materiais reais. De fato, o modelo baseado em quadros foi tão bem-sucedido que todos os grandes partidos capazes de grandes mobilizações do século XIX copiaram esse modelo, inclusive na direita.
Considerado esse histórico, é difícil imaginar qualquer via para que a esquerda se organize como força real sem ser alguma variante da estrutura concebida pelos primeiros socialistas — um partido de massas baseado em quadros, com liderança centralizada e coerência interna. Talvez não tenha de ser assim. Talvez nós consigamos conceber formas organizacionais mais abertas, mais difusas, mas que, simultaneamente, consigam fazer as coisas acontecerem. Mas dada a nossa experiência, não temos qualquer fundamento real a partir do qual rejeitar o nosso modelo mais bem-sucedido.
O que se tem de fazer é olhar diretamente para os primeiros anos do partido – antes de 1918, quando todos concordam que o partido foi muito aberto e democrático — e estudá-lo atentamente. Temos de conseguir entender em detalhes como aqueles bolcheviques mantiveram a dinâmica que fez daquele partido a organização mais bem-sucedida de seu tempo — na qual criticar a liderança era considerado direito de todos, parte constitutiva básica do que significava ser membro do partido. Havia lá mecanismos institucionais que criaram a cultura do debate com transparência, e que não fossem só eleições e comunicados? Ou aquele partido foi simplesmente dependente, bem feitas as contas, de uma liderança comprometida com aqueles valores?
Se houve mecanismos institucionais instalados que garantira a democracia, será o caso de copiá-los, pô-los a operar. Mas se foi questão de cultura interna contingente, significa que as práticas democráticas têm de depender de uma espécie de compromisso moral — muito difícil de copiar, porque líderes, em geral, tendem sempre a querer conter a democracia, não ampliá-la. Mas aí está o motivo pelo qual é importante estudar a lição e a prática reais, para compreender de onde veio aquela democracia.
Base
A segunda questão organizacional é a da relação entre o partido e sua base. Aqui a Revolução Russa nos ensina algo. Na historiografia da Guerra Fria, os bolcheviques são apresentados como se tivessem chegado ao poder mediante algo bem semelhante a um golpe. A ideia é que não teriam realmente base de massas, que seriam um pequeno grupo de ideólogos comprometidos até o fanatismo, que impuseram uma ditadura.
Mas historiadores recentes já mostraram, em detalhes dramáticos, que a principal razão pela qual os bolcheviques conseguiram chegar e manter-se no poder foi que, dentre todos os partidos na Rússia, os bolcheviques eram os que tinham os laços mais profundos, mais fortes e mais firmes com a classe trabalhadora nos grandes centros industriais do país. Por isso aconteceu que, em cada mudança no humor político da classe trabalhadora – particularmente em Petrogrado, mas também em Moscou – nos meses que levaram à captura do poder, sempre eram os bolcheviques que mais rapidamente captavam e compreendiam as mudanças, que mais rapidamente viam a situação real em campo e, portanto, eram os mais rápidos a gerar e oferecer os slogans, as frases, as palavras de ordem e os programas que capturavam e davam voz à consciência popular.
Claro que os bolcheviques não estavam sozinhos nessa ação. Era verdade assumida como tal por todos os partidos socialistas nos anos entre as duas guerras mundiais que o fundamento da estratégia partidária tinha de estar ancorada na vida diária da respectiva base. E não só no Ocidente. Essa noção foi condição sine qua non do socialismo em todo o mundo. E funcionou. A grande era do crescimento de todas as esquerdas – do início dos anos 1900 até o início da década de 1950 – aconteceu porque os grandes partidos eram formações nascidas de dentro, nascidas deles e criadas para os trabalhadores pobres.
A estratégia foi bem-sucedida por várias razões. Primeiro, e mais importante, permitiu que aquelas organizações gerassem programas que representavam os verdadeiros reais interesses da própria base de cada organização, porque os partidos nunca perdiam as vias de comunicação com a respectiva base – dado que lutavam ao lado da respectiva base diariamente, no local de trabalho e na vizinhança das próprias casas. Segundo, aquela estratégia deu enorme legitimidade, no nível das massas, ao partido de quadros, mais uma vez, porque eram unha e carne com as massas. Essa legitimidade foi a condição essencial para promover a luta política, porque quando o quadro orientava a própria base para que empreendesse qualquer tipo de ação, o quadro sempre podia contar com a confiança e o apoio necessário para que a ação fosse bem executada. Terceiro, essa conexão profunda e orgânica também dava suporte a cultura interna vibrante – de democracia e de cobrança e prestação de explicações democráticas transparentes. Um partido imerso na vida e na luta diária da classe trabalhadora podia não apenas dar sustentação a uma cultura de democracia, como também podia beneficiar-se dela. Afinal, uma cultura democrática era uma das precondições essenciais para ganhar e manter a confiança e o apoio da classe. Ter uma grande base, é claro, nunca garantiu nenhum sucesso. Mas não ter grande base sempre foi garantia de fracasso e de marginalização.
Aí está, claro, o que mais diferenciou os primeiros partidos socialistas e os grupos de esquerda que há hoje no Ocidente. A esquerda socialista mantém elo extremamente tênue com as comunidades de trabalhadores, se é que ainda há qualquer contato. Praticamente em todo o mundo a esquerda socialista está estruturalmente separada dos trabalhadores e opera quase sempre como pequenos grupos em contextos de classe média – universidades, ONGs, etc. Essa realidade tem várias importantes consequências. Para começar, diferente da esquerda trabalhista tradicional, essa esquerda não pode realmente organizar e liderar lutas da classe trabalhadora, porque está fisicamente separada daquela classe. O núcleo do engajamento político dessa esquerda distanciada da massa trabalhadora é de apoio, e para as reações – aparecer para ajudar num piquete, disseminar as palavras de ordem, tentar arregimentar simpatias. Mas isso significa que essa esquerda é integralmente dependente de outros agentes para a organização, porque não está em posição para iniciar a luta, ela mesma.
Além disso, a esquerda confinada àqueles ambientes significa que, para manter seus compromissos com o socialismo, a esquerda tem hoje de empurrar seus militantes para um dia a dia em que têm conviver e compreender mais os interesses da classe adversária – e a opressão – que os interesses da classe oprimida – e a luta pela libertação –, dos quais aquela esquerda está longe. Tudo isso é muito diferente dos tradicionais partidos de esquerda, que viviam em contexto com a classe trabalhadora, recrutavam seus ativistas dentro da classe trabalhadora e, assim, treinaram membros, militantes e quadros para lutar por seus próprios interesses materiais. Para aqueles primeiros grupos, a luta era necessária porque lutavam por eles mesmos, por cada um, pelas famílias uns dos outros, pela própria sobrevivência e pelo próprio bem-estar dos seus próximos.
Hoje, os grupos têm em grande medida de imaginar quais seriam aqueles interesses, porque jamais aprenderam nem têm como aprender sobre eles por engajamento direto. Para imaginar aqueles interesses, aqueles grupos leem sobre eventos passados e a partir deles tentam encontrar paralelos na cena atual. Mas assim é praticamente impossível desenvolver alguma estratégia. É quase impossível inovar, porque a maior parte dos membros não têm qualquer experiência direta das mudanças nos locais de trabalho, nem estão em posição de tentar novas iniciativas. Isso leva naturalmente a uma espécie de dogmatismo, porque a única coisa que sabem com certeza é o que funcionou no passado.
O resultado de longo prazo de estar isolado dos trabalhadores é que aquelas organizações tornam-se o paraíso para uma política de estilo de vida para estudantes e profissionais moralmente comprometidos. Oferecem e servem aos membros meios para que se sintam como se estivessem muito envolvidos na mudança, mas o envolvimento é altamente individualista e permanece estritamente confinado em atos de solidariedade só simbólica. Dado que a organização real está tipicamente retirada da mesa de negociações, a energia tende a ser dirigida para dentro, na direção da cultura e das características do próprio grupo, não de algum trabalhador, pobre e explorado. Quem chegue aos EUA vindo de países que têm tradições políticas mais radicais jamais deixa de perceber o quanto os debates dentro da esquerda norte-americana são estridentes e moralistas, mas, sobretudo, o quanto são apolíticos. Discutem linguagem, identidade individual, linguagem corporal, hábitos de consumo e coisas assim. Aí está a consequência natural de uma "esquerda" que não passa de pequenos grupos constituídos de pessoas de classe média. Tem sido assim há tanto tempo, que até a ideia de que aqueles grupos devessem ter base na classe trabalhadora é vista como ou exótica ou dispensável.
Se a esquerda ainda almeja chegar a algum lugar, se ainda quer recapturar o papel que teve como motor de justiça social, terá de se replantar dentro das comunidades do trabalho. Até o momento, ninguém deu qualquer prova de que as mudanças das quais precisamos e na escala necessária – pôr o povo acima dos lucros, cuidar de salvar o meio ambiente, erradicar as opressões sociais –, possam ser alcançadas sem controlar o capital. E como fariam o que dizem que fariam, se não cuidam de mobilizar a capacidade da única força social capaz de pôr de joelhos o capital – a classe cujo trabalho gera todos os lucros?
Não é só o caso russo, mas toda a tradição do socialismo que já se estende por mais de um século e meio e que demonstra essa verdade básica. Uma esquerda isolada do trabalho é fachada, não é força política.
Estratégia
Na questão da estratégia, a Revolução de Outubro é talvez menos instrutiva. Os bolcheviques não chegaram ao poder por golpe de Estado, mas, sim, são protagonistas de derrubada repentina e violenta de um regime, num contexto de rompimento do Estado e desintegração das forças militares. Deve-se descrever esse processo como uma estratégia de afastamento do capitalismo, com ruptura.
Hoje não há dúvidas de que as décadas do início do século XX até a Guerra Civil Espanhola podem ser descritas como período revolucionário. Foram tempos quando a possibilidade de ruptura podia ser seriamente considerada, e construiu-se uma estratégia em torno dessa possibilidade. Muitos socialistas pregavam abordagem mais gradualista, mas os revolucionários que os criticaram não viviam em mundo só imaginado ou sonhado.
A via russa, como tal, foi vista como viável por muitos partidos. Mas a partir dos anos 1950, estreitaram-se todas as aberturas para esse tipo de estratégia. E hoje já parece inteiramente alucinatório pensar sobre o socialismo através dessas lentes. É indubitavelmente verdade no capitalismo avançado, mas também é verdade para grande parte do Sul. Hoje o Estado tem legitimidade muito maior entre a população do que tinham os Estados europeus há um século. Além disso, o poder coercitivo do Estado, de vigilância, e a coesão interna da classe dominante dá à ordem social uma estabilidade muito maior que a que havia em 1917. Isso significa que, embora se possa admitir e talvez até esperar que surjam condições revolucionárias nas quais a ruptura do Estado seja realmente pensável, nem por isso se poderia construir uma Estratégia política em torno dessa expectativa – e não se pode tomar essa expectativa como perspectiva estratégica fundamental da Esquerda. Hoje, a estabilidade política do Estado é uma realidade que a esquerda tem de reconhecer. O que hoje está em crise é o modelo neoliberal de capitalismo, não o próprio capitalismo.
Se isso for verdade, nesse caso as lições que se podem extrair da experiência russa – como modelo de transição para o socialismo – são limitadas. Nossa perspectiva estratégica tem de tirar do centro da meta uma ruptura revolucionária e navegar uma grota mais gradualista de abordagem. Para o futuro previsível, a estratégia da Esquerda tem de operar com vistas a construir movimento que pressione o Estado, acumule poder dentro dele, mude a estrutura institucional do capitalismo, agindo na direção de erodir o poder estrutural do capital – em vez de saltar por cima dele. Isso implica uma combinação de política eleitoral e de mobilização das massas.
Cria-se um partido baseado no trabalho, se fortalece a capacidade organizacional da classe, encontra-se os empregados no local de trabalho e criam-se elos de poder na sociedade civil, e usa-se o poder social para fazer avançar reformas políticas mediante ativa participação na política eleitoral. As reformas devem ter o duplo efeito de tornar mais fácil a organização futura, e de também conter o poder do capital para minar as reformas em pontos futuros. Há vários nomes para estratégia desse tipo – reformas não reformistas, reformas revolucionárias. Mas seja qual for o nome escolhido, essa estratégia implica abordagem mais gradual que as abordagens possíveis para os bolcheviques.
Mas isso significa que temos de estudar cuidadosamente a experiência de partidos e países que não chegaram ao socialismo, mas mesmo assim alcançaram reais ganhos políticos e de organização. Temos de estudar a social-democracia, principalmente suas variantes mais ambiciosas. Antes de tudo, compreender como combinaram as dimensões eleitoral e não eleitoral numa perspectiva estratégica abrangente. Isso também implica estudar a legislação daqueles países, os modelos econômicos que implementaram, como usaram o Estado, como lidaram com o poder estrutural do capital e com a hostilidade contra os avanços do trabalho. Os ganhos obtidos pelas mais avançadas social-democracias – como os países nórdicos – são realmente extraordinários, o que não tem impedido que muitas Esquerdas os detonem ritual e incansavelmente como culpados de "reformismo". Esses ganhos foram obtidos com muita luta e enfrentaram a furiosa oposição, de unhas e dentes, das elites governantes.
Mas a razão mais importante para estudar a história da social-democracia, contudo, é que temos de compreender com clareza suas limitações. Por isso não se deve descartar a social-democracia definindo-a como "apenas" reformista. Se não se compreende satisfatoriamente a causa pela qual as social-democracias falharam, todos se autocondenam a repetir aquele fracasso. É importante considerar que, aconteça o que acontecer depois, se pessoas como Jeremy Corbyn ou Bernie Sanders chegarem ao poder em anos próximos, a agenda política deles será talhada, em grande medida, no molde fixado pela social-democracia.
É bom em muitos sentidos, mas a social-democracia era força completamente exaurida à altura dos anos 1980; aqueles partidos social-democratas degeneraram num etos gerencial; a agenda de reformas foi congelada e, na sequência, foi revertida; e os partidos da social-democracia desinteressaram-se quase completamente do trabalho de revitalizar o próprio legado. A evidência de que esse fenômeno está tão amplamente disseminado indica que não pode ter sido efeito de erros e traições individuais. Havia algo de estrutural por trás da degeneração do projeto da social-democracia. Isso significa, por sua vez, que a Esquerda tem de compreender as raízes estruturais do fracasso para que tenha pelo menos alguma chance na luta para evitar o mesmo destino. Daí que, se temos de compreender de que modo veio à luz algo tão ambicioso com o plano Meidner na Suécia, no final dos anos 1970s, também temos de compreender por que foi derrotado e por que o Partido Social-democrata tornou-se cada vez mais conservador nos anos seguintes.
Institucional
Não me alongarei sobre o ponto sempre repetido, de que a lição a extrair de Outubro é em muitos sentidos lição negativa – que devemos rejeitar no atacado todo o modelo político gerado pelos bolcheviques, de uma ditadura de partido único, com extinção de todas as liberdades básicas.
Foi um erro calamitoso desqualificar os direitos liberais como "burgueses", como muitos marxistas do início do século XX fizeram, implicando que esses direitos eram ilusórios ou fraudulentos de alguma forma. Esta estratagema retórica tornou muito mais fácil para esses direitos serem extintos por Stalin e antes dele, pelo próprio Lênin. Todos os direitos liberais foram combatidos e conquistados pelos movimentos da classe trabalhadora, não pelos capitalistas liberais. Qualquer um que valha o seu sal tem de proteger e aprofundar esses direitos, não jogá-los de lado.
Mais desafiadora é a questão do planejamento econômico. Temos de começar por observar que a expectativa de que uma economia sob planejamento centralizado venha simplesmente a substituir o mercado não tem qualquer fundamento empírico. Todos podemos desejar o planejamento funcione, mas não há qualquer evidência empírica, sequer, de que ele possa funcionar. Todas as tentativas para fazê-lo operar além de curtos períodos fracassaram. A experiência dos russos é o exemplo mais elaborado. E esse fracasso tem de ser encarado e explicado, não pode ser simplesmente riscado do mundo. Não basta dizer, como muitos marxistas disseram, que "não foi realmente socialismo. Portanto não conta". Talvez não tenha sido socialismo – e talvez algum socialismo real com democracia real e conselhos reais de trabalhadores e computadores de verdade[1]teriam feito funcionar aquele socialismo. Mas o ônus da prova cabe integralmente a quem diga que não funcionou. Não se pode vencer a discussão com um gesto de pouco caso e pôr no lixo a experiência de um século.
Em outras palavras, temos de considerar seriamente a possibilidade de que o planejamento, como Marx sonhou, talvez não seja possibilidade real. Qualquer discussão terá de examinar de perto a experiência soviética, tentar verificar se o fracasso seria explicável pelo modo específico como o planejamento foi instituído, ou talvez a lição seja que uma economia industrial moderna simplesmente não pode ser dirigida com planejamento. É de fato muito surpreendente a pouca atenção que a Esquerda contemporânea dá a essa questão, comparada, por exemplo – um, num milhão de exemplos –, digamos, à energia que a Esquerda consome falando mal dos filmes de Bollywood.
Em qualquer caso, dado o triste histórico do planejamento central, temos de considerar seriamente a ideia de que uma economia pós-capitalismo-como-o-conhecemos possa talvez tomar a forma de alguma espécie de socialismo de mercado. Há muitos modelos desse tipo de economia, todos diferentes uns dos outros. O que importa é que seja qual for a estrutura institucional do socialismo de mercado, os princípios subjacentes em sua concepção são fieis ao que os socialistas buscam – pôr o povo acima dos lucros. Mais elaboradamente, seja qual foi o modelo, sempre será diferente do que se vê hoje no capitalismo que conhecemos, pelo menos nos seguintes pontos:
- O mercado será contido, de modo a não ser ele o árbitro decisivo quanto às necessidades básicas de bem-estar do povo;
- Os tomadores de decisões econômicas terão de prestar contas democraticamente, e haverá sistema democrático eficaz que lhes cobrará essa indispensável prestação de contas;
- Não se admitirá que as desigualdades de riqueza traduzam-se imediatamente em desigualdades de poder político.
Claro que haverá outros princípios que darão forma ao design das instituições. Mas é difícil imaginar modelo aceitável de socialismo – de mercado ou planificado – que não considere os princípios acima listados. Economia que desconsidere qualquer desses princípios dificilmente se poderá qualificar como socialista. Não, pelo menos, no sentido em que as Esquerdas sempre compreenderam o conceito.
Expor com clareza o que queremos obter da economia permite compreender o que está em jogo. O planejamento não é desejável em si e por si. Sempre foi tratado como meio para alcançar um fim, e o fim básico ao qual os socialistas almejam é uma ordem humana e social justa. Pode-se vir a verificar que planejamento total seja não apenas irrealista, mas também desnecessário. Talvez se verifique que os objetivos fundamentais aos quais os socialistas aspiram são alcançáveis mediante, afinal, um socialismo de mercado. Pode até acontecer que se demonstre que o planejamento central crie tensões com algumas das dimensões da justiça social.
Uma das piores heranças da era da Segunda Internacional foi ter ensinado a identificar socialismo e planejamento central. Essa equação não deve, de modo algum, ser repetida. Modelos econômicos não são fins neles mesmos; são instrumentos para alcançar o que se está realmente buscando – uma sociedade na qual as pessoas consigam ver-se umas as outras como fins, não como meios.
O que se vê adiante
Sabemos, do último um século de esforços dos socialistas, que a via até uma ordem mais igualitária passa necessariamente por um confronto com o capital; que essa via não contorna o capital nem o evita. E os únicos partidos que jamais obtiveram qualquer real sucesso nessa empreitada foram partidos de massa baseados em quadros que tinham raízes profundas nas classes trabalhadoras. Nesse momento, o maior real desafio que se apresenta diante da Esquerda é cortar o cordão umbilical que a liga às universidades e ONGs, e voltar a mergulhar no mundo do trabalho. Esquerda viável hoje também tem de abraçar a política eleitoral como o segundo braço de uma Estratégia de pinça da qual um dos braços é a conexão existencial profunda com as bases populares, e o outro é uma ala parlamentar, cada braço alimentando o outro. No momento atual, se a dimensão parlamentar parece estar-se abrindo mais depressa que a dimensão do poder nas bases populares – a Esquerda deve agarrar-se a isso, capitalizar os benefícios dessa inserção no poder político parlamentar e usar o que aí obtenha para se implantar mais firmemente na base. Ao mesmo tempo, temos de aprofundar a discussão de o que queremos obter com a nossa luta.
É claro que um socialismo viável será ordem pluralista, multipartidária com significativa reorganização do mercado. O quanto poderemos avançar nisso depende em grande medida de questões práticas sobre o que é possível fazer e o que não é. Mas precisamente porque não se vê sobre a mesa nenhuma estratégia de ruptura, podemos começar por seguir a via da social-democracia, depois a do socialismo democrático. Conhecemos bem, pela própria experiência, a primeira parte do percurso; bem menos, a seguinte.
Com base em uma palestra dada no Alternative Development and Alternative Center, Cidade do Cabo, África do Sul, 12 de agosto de 2017.
Sobre o autor
Vivek Chibber é professor de sociologia na Universidade de Nova York. Seu último livro, Postcolonial Theory and the Spectre of Capital, saiu agora pela Verso.
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