5 de maio de 2017

Não, Israel não é uma democracia

Israel não é a única democracia no Oriente Médio. Com efeito, não é de todo uma democracia.

Ilan Pappe


Um ponto de controle do exército israelense em Jerusalém Oriental. Kashfi Halford / Flickr

De Dez Mitos sobre Israel, publicado pela Verso Books.

Tradução / Aos olhos de muitos israelenses e seus apoiadores em todo o mundo — mesmo aqueles que possam criticar algumas das suas políticas, Israel é um estado democrático benigno que busca fazer a paz com os seus vizinhos e que garante a igualdade para todos os seus cidadãos.

Os que criticam Israel pressupõem que se alguma coisa correu mal nesta democracia foi devido à guerra em 1967. Nesta perspetiva, a guerra corrompeu uma sociedade honesta e trabalhadora oferecendo dinheiro fácil nos territórios ocupados, permitindo que grupos messiânicos entrassem na política israelense e, sobretudo, transformando Israel numa entidade ocupante e opressora nos novos territórios. O mito de que Israel democrático enfrentou problemas em 1967, mas permaneceu uma democracia é propagado mesmo por alguns notáveis acadêmicos palestinos e pró-palestinos – mas sem fundamento histórico.

Israel antes de 1967 não era uma democracia 

Antes de 1967, Israel não podia, sem dúvida alguma, ser representado como uma democracia. Tal como vimos em capítulos anteriores, o estado sujeitou um quinto dos seus cidadãos a um regime militar baseado nos draconianos regulamentos britânicos de emergência obrigatórios que negavam aos palestinos quaisquer direitos civis ou humanos básicos.

Os governadores militares locais eram os donos absolutos das vidas destes cidadãos: podiam conceber leis especiais para eles, destruir-lhes as casas e meios de subsistência e enviá-los para a prisão sempre que lhes apetecesse. Só em finais dos anos 50 surgiu uma forte oposição judia a estes abusos, que finalmente aliviou a pressão sobre os cidadãos palestinos.

Para os palestinos que viveram em Israel antes da guerra e aqueles que viveram na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza no pós 1967, este regime permitiu mesmo ao soldado mais raso nas Forças Armadas de Israel (IDF) reinar e arruinar as suas vidas. Não tinham qualquer defesa se um qualquer soldado, ou unidade ou comandante decidisse deitar abaixo as suas casas, ou mantê-los durante horas num posto de controle, ou prendê-los sem julgamento. Não podiam fazer nada.

A todo o momento desde 1948 até hoje, houve grupos de palestinos a passar por tal experiência.

O primeiro grupo a sofrer debaixo de tal jugo foi a minoria palestina dentro de Israel. Começou nos dois primeiros anos do estatuto de estado quando foram empurrados para guetos como a comunidade palestina de Haifa a viver na montanha Carmel, ou expulsos das cidades que tinham habitado há décadas como Safad. No caso de Isdud, toda a população foi expulsa para a Faixa de Gaza.

No campo, a situação foi ainda pior. Os vários movimentos Kibbutz cobiçaram as aldeias palestinas de solos férteis. Isto incluía o Kibbutzim socialista, Hashomer Ha-Zair, alegadamente empenhado na solidariedade binacional. Muito depois de os conflitos de 1948 terem terminado, os habitantes de Ghabsiyyeh, Iqrit, Birim, Qaidta, Zaytun e muitos outros foram ludibriados para deixarem as suas casas por um período de duas semanas, em que o exército reclamava que precisava das suas terras para treinamentos, para descobrirem quando regressaram que as suas aldeias tinham sido destruídas ou entregues a alguém. Este estado de terror militar é ilustrado pelo massacre de Kafr Qasim de outubro de 1956, quando, na véspera da operação do Sinai, quarenta e nove cidadãos palestinos foram mortos pelo exército israelense. As autoridades alegaram que eles regressavam tarde a casa do trabalho nos campos quando um recolher obrigatório tinha sido imposto na aldeia. No entanto, esta não foi a verdadeira razão.

Provas posteriores mostram que Israel tinha seriamente considerado a expulsão dos palestinos de toda aquela região chamada Wadi Ara e do triângulo em que a aldeia se situa. Estas duas áreas – a primeira um vale que liga Afula no leste e Hadera na costa do Mediterrâneo; a segunda que se expande para o interior oriental de Jerusalém — foram anexadas para Israel sob os termos do acordo de tréguas de 1949 com a Jordânia.

Como temos visto, Israel acolheu sempre mais território, mas não um aumento de população palestiniana. Assim, em todas as conjunturas, quando o estado de Israel se expandiu, procurou maneiras de restringir a população palestina nas zonas recém-anexadas.

A operação “Hafarfert” (“toupeira”) foi o nome de código de um conjunto de propostas para a expulsão de palestinos quando rebentou uma nova guerra com o mundo árabe. Hoje muitos acadêmicos pensam que o massacre de 1956 foi um ensaio geral para ver se as pessoas da área podiam ser intimidadas a partir.

Os autores do massacre foram levados a tribunal graças à diligência e tenacidade de dois membros do Knesset: Tawaq Tubi do Partido Comunista e Latif Dori do Partido de Esquerda Sionista, Mapam. No entanto, os comandantes responsáveis pela área e a própria unidade que cometeu o crime foram poupados recebendo somente penas muito leves. Isto foi mais uma prova de que o exército tinha permissão para sair impune com os assassinatos nos territórios ocupados.

A crueldade sistemática não mostra apenas a sua face num acontecimento maior como um massacre. As piores atrocidades também podem ser identificadas na presença diária e rotineira do regime. Os palestinos em Israel ainda não falam muito acerca desse período antes de 1967 e os documentos desse tempo não revelam tudo. Surpreendentemente, é na poesia que encontramos uma indicação de como era viver sob regime militar. Natan Alterman foi um dos mais famosos e importantes poetas da sua geração. Tinha uma coluna semanal chamada “A Sétima Coluna” onde comentava acontecimentos sobre os quais tinha lido ou ouvido falar. Às vezes omitia detalhes sobre a data ou mesmo sobre o local do acontecimento, mas dava ao leitor informação suficiente para perceber a que é que se estava a referir. Frequentemente exprimia os seus ataques de forma poética:

A notícia apareceu brevemente por dois dias e desapareceu. E ninguém parece importar-se e ninguém parece saber. Na distante aldeia de Um al-Fahem,
crianças — digo, cidadãos do estado – brincavam na lama e uma delas pareceu suspeita a um dos nossos bravos soldados que
Lhe gritou: Para!
Uma ordem é uma ordem
Uma ordem é uma ordem, mas o palerma do rapaz não se levantou, correu
Por isso o nosso bravo soldado atirou, não admira E acertou e matou o rapaz.
E ninguém falou disso.

Numa ocasião ele escreveu um poema sobre dois cidadãos palestinos que foram baleados em Wadi Ara. Noutro momento, contou a história de uma mulher palestina muito doente que foi expulsa com os seus dois filhos, de três e seis anos, sem qualquer explicação e forçados a atravessar o rio Jordão. Quando ela tentou regressar, ela e os filhos foram presos e postos numa prisão em Nazaré.

Alterman esperava que o seu poema sobre a mãe fizesse mexer corações e espíritos ou, pelo menos, conseguir alguma resposta oficial. No entanto, uma semana mais tarde, escreveu:

Este que escreve, enganou-se
Que a história fosse negada ou explicada Mas nada, nem uma palavra.

Há mais provas que Israel não era uma democracia antes de 1967. O estado prosseguiu uma política de atirar-para-matar refugiados que tentassem reaver a sua terra, colheitas e criação de animais e encenou uma guerra colonial para derrubar o regime de Nasser no Egito. As suas forças de segurança estavam também de dedo no gatilho matando mais de cinquenta cidadãos palestinos entre 1948 e 1967.

A subjugação de minorias em Israel não é democrática 

A prova dos nove de qualquer democracia é o nível de tolerância que é capaz de estender às minorias que aí vivem. Neste respeito, Israel está bem longe de ser uma verdadeira democracia.

Por exemplo, depois dos novos avanços territoriais foram aprovadas várias leis que asseguram uma posição superior para a maioria: as leis que regulamentam a cidadania, as leis referentes à posse da terra e, sobretudo, a lei do retorno.

Esta última concede cidadania automática a todos os judeus do mundo, onde quer que eles ou elas tenham nascido. Esta lei em particular é flagrantemente antidemocrática, pois foi acompanhada por uma total rejeição do direito ao retorno palestino – reconhecido internacionalmente pela Resolução 194 de 1948 da Assembleia Geral das Nações Unidas. Esta rejeição não permite aos cidadãos palestinos de Israel juntar-se aos seus familiares mais próximos ou aos que foram expulsos em 1948. Negar a pessoas o direito ao retorno à sua pátria e, ao mesmo tempo, dar este direito a outros que não têm ligação à terra é um modelo de prática antidemocrática.

A juntar a isto, houve mais uma camada de negação dos direitos do povo palestino. Quase todas as discriminações contra os cidadãos palestinos de Israel são justificadas pelo fato de que eles não cumprem o serviço militar. A associação entre direitos democráticos e deveres militares é mais bem compreendida se revisitarmos os anos formativos em que os decisores políticos estavam a decidir sobre como tratar um quinto da população.

O pressuposto de onde partiam era que os cidadãos palestinos não queriam juntar-se ao exército de modo algum e que essa assumida recusa, por sua vez, justificava a política discriminatória contra eles. Isso foi posto à prova em 1954 quando o ministro israelense da defesa decidiu convocar os cidadãos palestinos elegíveis para recrutamento para integrarem o exército. Os serviços secretos asseguraram ao governo que haveria uma ampla rejeição da chamada. Para sua grande surpresa, todos aqueles que foram convocados apresentaram-se no escritório de recrutamento com a bênção do Partido Comunista, a maior e mais importante força política na comunidade naquela altura. Mais tarde os serviços secretos explicaram que a principal razão tinha a ver com o fato de os jovens se aborrecerem com a vida no campo e o seu desejo de ação e aventura.

Apesar deste episódio, o ministério da defesa continuou a vender uma narrativa que pintava a comunidade palestina como sendo relutante a servir no exército.

Inevitavelmente, oportunamente os palestinos viraram-se contra o exército israelense que se tinha tornado o seu perpétuo opressor, mas a exploração governamental disto como pretexto para fazer discriminação lança grande dúvida sobre a pretensão do estado de ser uma democracia.

Se se for cidadão palestino e não se servir no exército, os seus direitos à assistência do governo enquanto trabalhador, estudante, progenitor ou parte de casal são duramente restringidos. Isto afeta em particular a habitação assim como o emprego, sendo que 70% de toda a indústria israelense é considerada sensível em matéria de segurança e por isso fechada a estes cidadãos como local para procurarem trabalho.

O pressuposto subjacente do ministro da defesa era não apenas que os palestinos não queriam servir no exército, mas que eram potencialmente um inimigo interno em que não se podia confiar. O problema com este argumento é que em todas as guerras mais importantes entre Israel e o mundo árabe, a minoria palestina não agiu como esperado. Não formaram uma quinta coluna nem se levantaram contra o regime. Contudo, isto não os ajudou: até aos dias de hoje, eles são vistos como um problema “demográfico” que tem de ser resolvido. A única consolação é que ainda hoje grande parte dos políticos israelenses não acredita que a maneira de resolver “o problema” seja pela transferência ou expulsão dos palestinos (pelo menos não em tempo de paz).

A política de terra de Israel não é democrática

A reclamação de ser uma democracia também é questionável quando se examina a política orçamental em torno da questão das terras. Desde 1948, os conselhos locais e as câmaras municipais palestinas têm recebido muito menos fundos do que os seus homólogos judeus. A carência de terra ligada à falta de oportunidades de emprego cria uma realidade socioeconômica anormal. Por exemplo, a mais rica comunidade palestina, a aldeia de Me'ilya na alta Galileia está mesmo assim em maiores dificuldades do que a cidade judia mais pobre no Negev. Em 2011, o Jerusalem Post informava que “o rendimento médio judeu era 40 a 60% mais elevado do que o rendimento médio árabe entre os anos 1997 e 2009.”

Hoje, mais de 90% da terra é detida pelo Fundo Nacional Judeu ((JNF). Os proprietários não podem fazer transações com cidadãos não judeus e a prioridade à terra pública é para uso em projetos nacionais, o que significa que novos colonatos judeus são construídos enquanto praticamente não há novos povoados palestinos. Assim, a maior cidade palestina Nazar é, apesar de ter triplicado a sua população desde 1948, não se expandiu um quilômetro quadrado, enquanto a cidade em desenvolvimento construída acima, a Nazaré Alta, triplicou em tamanho com terra expropriada dos proprietários palestinos.

Outros exemplos desta política podem ser vistos em aldeias palestinas em toda a Galileia, revelando a mesma história: como diminuíram em 40%, por vezes mesmo 60% desde 1948 e como novos colonatos judeus têm sido construídos na terra expropriada.

Em outros sítios iniciaram-se tentativas completas de “Judaicização”. Depois de 1967, o governo israelense começou a preocupar-se com a falta de judeus a viver no norte e no sul do estado e assim planejou aumentar a população nessas áreas. Tal mudança demográfica necessitava do confisco de terra palestina para a construção dos colonatos judeus.

O pior foi a expulsão dos cidadãos palestinos destes colonatos. Esta violação cega do direito de um cidadão de viver onde deseja continua hoje e todos os esforços produzidos por organizações não governamentais de direitos humanos em Israel para desafiar este apartheid têm até agora terminado sem qualquer sucesso.

O Supremo Tribunal em Israel só conseguiu questionar a legalidade desta política em uns poucos casos individuais, mas não em princípio. Imagine-se se no Reino Unido ou nos Estados Unidos, cidadãos judeus ou católicos fossem proibidos de viver em certas aldeias, bairros ou mesmo cidades completas? Como é que tal situação se pode reconciliar com a noção de democracia?

A ocupação não é democrática

Assim, dada a sua atitude em relação a dois grupos palestinos - os refugiados e a comunidade em Israel - o estado judeu não pode de forma alguma ser considerado uma democracia.

Mas o desafio mais óbvio a esse pressuposto é a atitude cruel de Israel para com um terceiro grupo palestino: os que têm vivido sob o seu domínio direto ou indireto desde 1967 em Jerusalém Oriental, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Da infraestrutura legal implementada no início da guerra ao inquestionável poder absoluto do exército dentro da Cisjordânia e fora da Faixa de Gaza, à humilhação diária de milhões de Palestinos, a “única democracia” no Oriente Médio age como ditadura da pior espécie.

A principal resposta israelense do ponto de vista diplomático e acadêmico a esta última acusação é que todas estas medidas são apenas temporárias – mudarão se os palestinianos, onde quer que eles estejam, se portarem “melhor”. Mas se se pesquisar, já para não mencionar as vidas nos territórios ocupados, percebe-se como estes argumentos são ridículos.

Os políticos israelenses, como se tem visto, estão determinados em manter a ocupação durante tanto tempo quanto o estado judaico permanecer intacto. É parte daquilo que o sistema político considera que o status quo é sempre melhor que qualquer mudança. Israel controlará a maior parte da Palestina e, como isso incluirá sempre uma população palestina substancial, só poderá ser feita por meios não democráticos.

Além disso, apesar de todas as evidências em contrário, o estado de Israel reivindica que a ocupação é inteligente. Aqui o mito é que Israel veio com boas intenções para conduzir uma ocupação benévola, mas foi forçado a tomar uma atitude mais dura por causa da violência palestina.

Em 1967, o governo tratou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza como uma parte natural do “Eretz Israel,” a terra de Israel e esta atitude manteve-se assim desde então. Quando se olha para o debate sobre este assunto entre os partidos de direita e de esquerda em Israel, as suas discordâncias têm sido sobre como atingir este objetivo, não sobre a sua validade.

Entre o grande público, no entanto, houve um genuíno debate entre aquilo a que se pode chamar os “redentores” e os “guardiões”. Os “redentores” acreditavam que Israel tinha recuperado o antigo coração da sua pátria e não podia sobreviver no futuro sem ele. Por outro lado, os “guardiões” argumentavam que os territórios deviam ser trocados pela paz com a Jordânia, no caso da Cisjordânia e com o Egito no caso da Faixa de Gaza. No entanto, este debate público teve pouco impacto no modo como os principais políticos estavam a imaginar a maneira de governarem os territórios ocupados.

A pior parte desta suposta “ocupação inteligente” têm sido os métodos do governo para dirigir os territórios. Primeiro, a área foi dividida em espaços “árabes” e potencialmente “judeus”. As áreas densamente povoadas com palestinos tornaram-se autônomas, geridas por colaboradores locais sob regime militar. Este regime só foi substituído por uma administração civil em 1981.

As outras áreas, os espaços “judeus”, foram colonizados com colonatos judeus e bases militares. Esta política tinha por objetivo deixar a população, quer na Cisjordânia quer na Faixa de Gaza em enclaves desligados, sem espaços verdes nem qualquer possibilidade de expansão urbana.

As coisas só pioraram quando, muito pouco depois da ocupação, Gush Emunim começou a estabelecer-se na Cisjordânia e na Faixa de Gaza reivindicando que estava a seguir um mapa bíblico de colonização em vez do mapa governamental. À medida que penetravam nas áreas palestinas densamente povoadas, o espaço deixado para a população local era cada vez mais apertado.

Aquilo que qualquer projeto de colonização precisa é de terra – nos territórios ocupados isto foi conseguido apenas com a expropriação massiva de terra, deportando pessoas dos locais onde tinham vivido há gerações e confinando-as em enclaves com habitats difíceis.

Quando se voa sobre a Cisjordânia pode-se ver claramente os resultados cartográficos desta política: cinturões de colonatos que dividem a terra e talham as comunidades palestinas em comunidades pequenas, isoladas e desligadas. Os cinturões de judaicização separam aldeias de aldeias, aldeias de cidades e, às vezes, dividem a própria aldeia.

Isto é o que os acadêmicos chamam nada menos que uma geografia de desastre, dado que estas políticas tornaram-se também um desastre ecológico: secar fontes de água e destruir algumas das partes mais bonitas da paisagem palestina.

Além de que os colonatos tornaram-se viveiros onde o extremismo judeu cresceu descontroladamente, sendo os palestinos as principais vítimas.

Assim, o colonato em Efrat destruiu o local da herança mundial do Vale Wallajah perto de Belém e a aldeia de Jafneh, perto de Ramallah, que era famosa pelos seus canais de água doce, perdeu a sua identidade como atração turística. Estes são apenas dois pequenos exemplos de centenas de casos semelhantes.

Destruir as casas dos palestinos não é democrático 

A demolição de casas não é um fenômeno novo na Palestina. Tal como muitos dos mais bárbaros métodos de punição coletiva usados por Israel desde 1948, foi primeiro concebido e exercido pelo governo britânico durante a Grande Revolta Árabe de 1936-39.

Este foi o primeiro levantamento palestino contra a política pró-sionista do mandato britânico e o exército britânico demorou três anos para consegui-lo sufocar. Nesse processo, demoliram cerca de duas mil casas durante as várias repressões coletivas infligidas contra a população local.

Israel demoliu casas desde praticamente o primeiro dia da sua ocupação militar da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. O exército fez explodir centenas de casas todos os anos em resposta aos vários atos executados por membros de famílias.

De violações menores do regime militar à participação em atos violentos contra a ocupação, os israelitas eram rápidos a enviar os bulldozers para apagar não apenas um edifício físico, mas também um foco de vida e existência. Na grande área de Jerusalém (como dentro de Israel) as demolições eram também um castigo pela extensão sem licença de uma casa que já existia ou pelo não pagamento de contas.

Outra forma de punição coletiva que voltou recentemente ao reportório israelita é bloquearem casas. Imagine que todas as portas e janelas da sua casa estão bloqueadas com cimento, argamassa e pedras, de modo a que não possa entrar ou retirar qualquer coisa que não tenha conseguido retirar a tempo. Tenho procurado bastante nos meus livros de história para encontrar exemplos semelhantes, mas não encontrei provas de uma medida tão cruel que tenha sido praticada noutro local.

Esmagar a resistência palestina não é democrático 

Por fim, debaixo da “ocupação inteligente”, os colonos têm sido autorizados a formar grupos justiceiros para assediar as pessoas e destruir as suas propriedades. Estes bandos têm alterado os seus métodos ao longo dos anos.

Durante os anos 80, usaram terror a sério – desde ferir líderes palestinos (um deles perdeu as pernas num ataque) até fazer explodir as mesquitas em Haram al-Sharif em Jerusalém.

Neste século, empenharam-se no assédio diário aos palestinos: arrancando as árvores, destruindo as suas colheitas e atirando aleatoriamente contra as suas casas e veículos. Desde 2000, houve pelo menos cem ataques deste tipo por mês nalgumas áreas como Hebron onde os quinhentos colonos, com a colaboração passiva do exército israelita, importunaram os habitantes locais que viviam perto de modo ainda mais brutal.

Desde o início da ocupação foram dadas duas opções aos Palestinos: aceitar a realidada de prisão permanente numa mega prisão durante muito tempo ou enfrentar o poder do exército mais forte do Médio Oriente. Quando os palestinianos resistiram – como fizeram em 1987, 2000, 2006, 2012, 2014 e 2016 — foram alvejados como soldados ou unidades de um exército convencional. Assim, aldeias e cidades foram bombardeadas como se fossem bases militares e a população civil desarmada foi alvejada como se fosse um exército no campo de batalha.

Hoje, nós sabemos demasiado sobre a vida sob ocupação, antes e depois de Oslo, para se levar a sério a reivindicação de que a não resistência assegurará menos opressão. As prisões sem julgamento vividas por tantas pessoas ao longo dos anos; a demolição de milhares de casas; a matança e os ferimentos de inocentes; a drenagem de poços de água – são tudo testemunhos de um dos mais duros regimes dos nossos dias.

A Amnistia Internacional todos os anos documenta de uma maneira muito completa a natureza da ocupação. O seguinte é extraído do relatório de 2015:

Na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, as forças israelitas fizeram mortes ilegais de civis palestinianos, incluindo crianças e detiveram centenas de Palestinos que protestavam ou que se opunham à continuação da ocupação militar por parte de Israel, mantendo centenas em detenção administrativa. Foram frequentes as torturas e outros maus tratos os quais foram cometidos com impunidade.

As autoridades continuaram a promover colonatos ilegais na Cisjordânia e restringiram drasticamente a liberdade de movimentos dos Palestinianos, aumentando as restrições no meio duma escalada de violência desde Outubro, que incluiu ataques a civis israelitas por palestinos e claras execuções extrajudiciais por forças israelitas. Colonos israelitas na Cisjordânia atacaram palestinianos e as suas propriedades com total impunidade. A Faixa de Gaza permaneceu debaixo dum bloqueio militar israelita que impôs uma repressão colectiva aos seus habitantes. As autoridades continuaram a demolir lares palestinianos na Cisjordânia e no interior de Israel, particularmente em aldeias beduínas na região do Negev/Naqab, expulsando à força os seus moradores.

Vamos ver isto por fases. Primeiro, assassinatos – aquilo que o relatório da Amnistia chama de “mortes ilegais”: cerca de quinze mil Palestinos foram mortos “ilegalmente” por Israel desde 1967. Entre eles duas mil crianças.

Aprisionar palestinos sem julgamento não é democrático 

Outro aspeto da “ocupação inteligente” é a detenção sem julgamento. Um em cinco palestinianos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza passou por essa experiência.

É interessante comparar esta prática israelita com políticas americanas semelhantes no passado e atualmente, quando críticos do movimento boicote, desinvestimento e sanções (BDS) reclamam que as práticas dos Estados Unidos são muito piores. De facto, o pior exemplo americano foi a detenção sem julgamento de cem mil cidadãos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, com trinta mil detidos mais tarde debaixo do chamado “combate ao terrorismo”

Nenhum destes números chega sequer perto do número de palestinianos que experimentaram tal processo: incluindo os muito novos, os velhos e os presos a longo prazo.

Prisão sem julgamento é uma experiência traumática. Não se saber de que se é acusado, não se ter contacto com um advogado e praticamente nenhum contacto com a família são apenas alguns aspetos que o afetarão como preso. De forma mais brutal, muitas destas prisões são usadas como meio de pressionar as pessoas a colaborarem. Espalhar boatos ou envergonhar pessoas pela sua alegada ou verdadeira orientação sexual são também métodos frequentemente usados para potenciar cumplicidade.

No que se refere a torturas, o fidedigno website Middle East Monitor publicou um artigo pungente descrevendo as duas centenas de métodos usados pelos israelitas para torturar palestinianos. A lista baseia-se num relatório das Nações Unidas e num relatório de uma organização de direitos humanos israelita B'Tselem. Entre outros métodos, incluem-se espancamentos, acorrentar presos a portas ou a cadeiras durante horas, lançar-lhes água fria ou quente, separar dedos e torcer testículos.

Israel não é uma democracia

O que temos de confrontar aqui, portanto, não é apenas a reivindicação de Israel manter uma ocupação inteligente mas sim a sua pretensão de ser uma democracia. Tal comportamento em relação a milhões de pessoas debaixo do seu regime é pura chicana política.

Contudo, embora grandes sectores das sociedades civis em todo o mundo neguem a Israel a sua pretensão de democracia, as suas elites políticas, por uma variedade de razões, continuam a tratá-lo como membro do clube exclusivo de estados democráticos. Em grande medida a popularidade do movimento BDS reflecte as frustrações das sociedades cujas políticas governamentais são favoráveis a Israel.

Para muitos Israelitas estes contra-argumentos são irrelevantes na melhor das hipóteses e mal intencionados na pior das hipóteses. O estado israelita agarra-se à visão de que é um ocupante benevolente. O argumento de “ocupação inteligente” refere que, de acordo com a opinião do cidadão judeu médio em Israel, os palestinianos estão em muito melhor situação debaixo da ocupação e não têm razão para lhe resistir, muito menos pela força. Se se for um apoiante não crítico de Israel no estrangeiro, aceitam-se bem estes pressupostos.

Há, no entanto, secções da sociedade israelita que reconhecem a validade de algumas das reclamações que aqui se fazem. Nos anos 90, com vários graus de convicção um número significativo de académicos, jornalistas e artistas judeus exprimiu as suas dúvidas sobre a definição de Israel como democracia.

É preciso coragem para desafiar os mitos fundacionais da sua própria sociedade e estado. É por isso que bastantes deles mais tarde recuaram desta corajosa posição e regressaram à linha geral.

No entanto, durante algum tempo, durante a última década do último século, produziram obras que desafiaram a assunção de um Israel democrático. Retrataram Israel como pertencendo a uma comunidade diferente: a das nações não democráticas. Um deles, o geógrafo Oren Yiftachel da Universidade Ben-Gurion descreveu Israel como uma etnocracia, um regime que governa um estado étnico misto com uma preferência legal e formal por um grupo étnico sobre todos os outros. Outros foram mais além, rotulando Israel de estado apartheid ou de estado colonial.

Resumindo, qualquer que tenha sido a descrição que estes acadêmicos fizeram, "democracia" não estava entre elas.

Colaborador

Ilan Pappe é um historiador israelense e ativista socialista. É professor no College of Social Sciences and International Studies na Universidade de Exeter, diretor do European Centre for Palestine Studies da Universidade, e co-diretor do Exeter Centre for Ethno-Political Studies. Autor da recente obra Dez Mitos sobre Israel.

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