9 de março de 2019

A quem a reforma da Previdência privilegia?

Retornamos a um nível de desigualdade dos tempos de milagre econômico

Lena Lavinas


A proposta de reforma da Seguridade Social ora em pauta bate sistematicamente na tecla de que vem para pôr fim a uma velha e persistente dimensão das nossas desigualdades: iniquidades de renda na inatividade.

Já se sabe que algo que se repete a marteladas acaba por virar verdade, qualquer que seja seu conteúdo, ainda mais em tempos em que crenças ganham ares de integridade moral.

O fato é que, ao contrário do que reza a cartilha dos agora arautos da luta contra a desigualdade, é justamente entre aposentados e pensionistas que o índice de Gini — que mede a desigualdade, novamente em alta vertiginosa no Brasil nos anos recentes — é o menor. E, claro, isso não é por acaso, mas resultado da elevada efetividade de um regime de repartição como o nosso em redistribuir entre gerações.

Recente estudo de Daniel Duque, do Ibre-FGV, sobre a evolução do índice de Gini medido pela renda familiar per capita, revelou que ele alcançou 0,62 ao final de 2018, seu maior patamar desde o primeiro trimestre de 2012, quando começa a série da PNAD Contínua.

Ou seja, retornamos a um nível de desigualdade que prevalecia em tempos de milagre econômico sob um regime autoritário, quando o crescimento se dava fortalecendo a concentração de renda. A prosperidade de então, quando o PIB atingia taxas de crescimento invejáveis, era apropriada por poucos em razão da compressão dos salários e da ausência de políticas sociais redistributivas. Esse cenário muda a partir da promulgação da nova Constituição e da redemocratização do país.

O quadro hoje é outro. A desigualdade se agrava, porém num contexto de crise aguda e renitente, em que a completa flexibilização das regras de contratação no mercado de trabalho já vigente, além de não redimir as altas taxas de desemprego, ainda precariza o emprego e inibe, assim, a recuperação dos salários.

Analisando o índice de Gini exclusivamente para as pessoas ocupadas na faixa 14-59 anos, ou seja, aquelas que recebem rendimentos por alguma atividade exercida, ele alcança 0,59 no último trimestre de 2018. Já o Gini dos aposentados e pensionistas com 60 anos ou mais, nesse mesmo período, mantém-se em 0,39. Para quem não sabe, é a menor medida de desigualdade que temos, um recorde!

Uma constatação se impõe, portanto: não é verdade que nosso Seguro Social só faz reproduzir, na inatividade, as desigualdades estruturais do nosso mercado de trabalho. Isso é frase feita, mais uma daquelas que viram (falsa) verdade.

Regimes de repartição simples como a nossa Previdência pública conseguem atenuar desigualdades na velhice dos trabalhadores — tenham sido eles remunerados ou não, porque quem não vive de renda do mercado financeiro ou de patrimônio não tem outra opção senão trabalhar, quando consegue.

Como se dá tal redistribuição? No nosso caso, ao estender a cobertura previdenciária àqueles que não tiveram condições de contribuir de forma regular, como os produtores rurais em regime de economia familiar, uns 8,5 milhões de beneficiários entre homens e mulheres. Em segundo lugar, ao assegurar aos idosos pobres um Benefício de Prestação Continuada, no valor de um salário mínimo. São cerca de 1,5 milhão de pessoas. Ou seja, universalizando direitos, a partir de princípios de solidariedade entre gerações. Outros fatores atuaram nessa direção, como o tempo de contribuição para obtenção de um benefício integral ser de 15 anos, um incentivo.

Tudo isso está em risco na proposta de reforma da Seguridade Social do governo Bolsonaro. Camponeses terão de contribuir senão não terão benefícios, idosos pobres vão ser discriminados ao terem idade mínima cinco anos acima daquela que valerá para homens, e oito anos, no caso das mulheres.

Então, aposta comigo: eliminar o que redistribui pode reduzir privilégios ou tende a potencializá-los? Bingo!

Sobre a autora
Lena Lavinas é professora do Instituto de Economia da UFRJ

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