14 de setembro de 2019

Por que o crescimento do gasto público não explica a crise fiscal?

O ajuste fiscal brasileiro está se autodestruindo

Esther Dweck, Guilherme Mello e Pedro Rossi

Folha de S.Paulo

Teto de gastos: cerca de 80% das despesas do governo federal têm seu crescimento anual limitado pela inflação. Pedro Ladeira/Folhapress

Nosso artigo “Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?”, publicado no dia 14 de setembro na Folha de São Paulo, teve grande repercussão ao contrapor as ideias defendidas em artigo anterior.

Desde então, aprofundou-se o debate sobre o papel da política fiscal na crise econômica e nas alternativas para superá-la, com argumentos que corroboraram e fortaleceram os nossos, assim como argumentos críticos e contrários.

Diante da relevância do tema, houve a criação de uma página no site da Folha só para discussão sobre o Teto de Gastos, reduzindo a carência de espaço para esse debate.

Há cinco anos, o diagnóstico dominante é que a culpa da crise brasileira é do gasto público e a solução passa pelo corte dos gastos e a redução do Estado.

Nesse mesmo período, atravessamos um quadro de recuperação econômica mais lenta da história, altas taxas de desemprego, aumento da desigualdade e empobrecimento de parcela significativa da população.

Esse quadro é semelhante ao que ocorreu no mundo desenvolvido após a crise de 2008/2009 e o debate mundial está mais adiantado do que no Brasil.

Em contraposição à visão de uma parcela dos economistas brasileiros e repercutindo argumentos que têm sido abordados em outros países, nosso artigo original trouxe três ideias centrais sobre o gasto público no Brasil: 1) o diagnóstico da situação fiscal brasileira está equivocado —o crescimento do gasto público não é o fator causador da crise econômica, tampouco é o principal responsável pelo crescimento recente da dívida pública; 2) o corte de gastos não gera crescimento, ao contrário, tende a agravar o quadro de lenta recuperação; e 3) a política fiscal atual, com cortes permanentes da despesa pública, tem consequências sociais e distributivas graves, acentuando o quadro de extrema desigualdade.

Do debate que se seguiu, há vários pontos que merecem destaque, como a relação entre situação fiscal e inflação, a capacidade do Estado brasileiro de realizar investimentos e distribuir renda, a dimensão dos multiplicadores fiscais, o efeito do investimento público sobre as decisões privadas, dentre outros.

Todos esses pontos são muito relevantes e devem ser objeto de artigos específicos. Neste artigo, dialogaremos com uma crítica que ganhou destaque no debate público: a de que um suposto crescimento acelerado do gasto público teve um papel decisivo no aumento recente da dívida pública.

A crise e a queda de receitas explicam a variação do resultado primário

Conforme já afirmamos, o crescimento dos gastos públicos tem apresentado uma trajetória de desaceleração nos últimos períodos.

Essa desaceleração ocorreu não apenas nas despesas totais, mas também entre as despesas obrigatórias, contrariando as afirmações incorretas de Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Marcelo Gazzano, que de fato confundiram velocidade e aceleração.

A desaceleração ocorreu tanto nas despesas obrigatórias do Governo Federal, como demonstrado por Laura Carvalho, quanto do Governo Geral, como já demonstramos em outro artigo.

Para entender as causas que deram origem ao déficit primário brasileiro, é necessário analisar o comportamento das receitas e despesas ao longo do tempo, observando suas tendências e as alterações no ritmo de crescimento de cada variável.

Analisar apenas a variação absoluta ou a taxa média de crescimento de cada variável em um momento específico do tempo ignora as mudanças de tendência, tornando a análise incapaz de captar as verdadeiras causas na variação do resultado.

Se dois corpos se movem em velocidades parecidas, mas em determinado momento um deles sofre um choque e desacelera, o aumento da distância entre eles é explicado pelo fato novo, o choque, não pelo fato de um deles ter mantido a velocidade e trajetória iniciais.

Isso vale para explicar o resultado primário: despesas e receitas cresciam, mesmo que em ritmo decrescente, até uma crise econômica derrubar as receitas. Ou seja, o que explica o aumento do déficit primário é a crise e a queda de receitas, não o crescimento das despesas, que desacelerou.

Para mostrar como a mudança no resultado primário no âmbito federal no período recente está mais relacionada à queda da receita do que a um aumento das despesas, realizamos uma decomposição da variação do resultado primário do governo federal sobre o PIB, cuja metodologia está disponível em outro artigo.

Para isso, nos valemos de duas séries de dados: os disponíveis no site da Secretaria do Tesouro Nacional (original) e os dados ajustados pela metodologia desenvolvida por Rodrigo Orair e Sergio Gobetti (ajustados).

Separamos os condicionantes do resultado primário em três efeitos: a) o crescimento real da receita líquida; b) o crescimento real da despesa total; e c) o efeito líquido do crescimento real do PIB.

O resultado pode ser visto no gráfico abaixo, em que a periodização busca explicitar o momento em que o resultado primário federal tornou-se deficitário.

Com base nos dados originais, no período entre 2007-2013, o resultado primário médio permaneceu em patamar similar a 2006.

Isso ocorreu devido ao crescimento real da receita líquida, que contribuiu em média com 0,69 p.p. do PIB para aumentar o primário, o que praticamente compensou o crescimento real da despesa, que contribuiu com 0,72 p.p. do PIB para reduzir o primário.

As taxas de crescimento das receitas e das despesas, no entanto, se contraíram profundamente no período de 2014-2018.

Por um lado, as despesas desaceleram, passando de uma contribuição para redução do primário de 0,72.p.p. do PIB para 0,33 p.p. do PIB ao ano, entre 2014-2018, uma redução de 0,39 p.p. do PIB ao ano.

Por outro lado, o crescimento real da receita torna-se negativo, passando de uma contribuição de 0,69 p.p. ao ano para aumentar o primário, para uma contribuição de 0,33 p.p. do PIB no sentido da redução do primário, uma queda de 0,99 p.p. do PIB ao ano.

Caso se considere os dados ajustados de receitas e despesas, é possível perceber que a contração das despesas foi ainda maior do que o observado nos dados originais, passando de uma contribuição no período inicial de 0,74 p.p. do PIB para a redução do primário, para apenas 0,24 p.p. do PIB no período final, uma redução de 0,5 p.p. do PIB ao ano.

Nesse caso, mesmo uma avaliação estática da contribuição relativa das receitas e despesas para o déficit primário revela o maior peso da expressiva queda das receitas para explicar o resultado primário do período.

Portanto, reafirmamos ipsis literis o que dissemos no primeiro artigo: “o suposto crescimento acelerado dos gastos públicos não explica a evolução da dívida”.

Na realidade, os dados comprovam não apenas que os gastos desaceleraram, como que o maior impacto para explicar do déficit primário a partir de 2014 é a queda da receita.
 
O ajuste fiscal brasileiro está se autodestruindo

Com base em um diagnóstico equivocado, de que os gastos são culpados pela deterioração fiscal, predomina na visão do governo e de alguns economistas uma proposta de política equivocada: os gastos devem ser cortados, uma vez que as receitas caíram. Aqui há um problema macroeconômico e outro de ordem social.

Do ponto de vista macro, as receitas caíram, em grande parte, por conta da queda do crescimento do PIB. Análises recentes corroboram esse ponto. De acordo com cálculos de Manoel Pires, Bráulio Borges e Gilberto Borça Jr, o fato de a economia estar abaixo do seu potencial está subtraindo cerca de 2 p.p. do PIB da arrecadação recorrente e, portanto, do resultado primário do governo geral.

Em artigo publicado no site da Folha, João P. Romero também apresenta a diferença entre a trajetória Receita Federal Líquida, caso tivesse mantido a tendência média de 1997 até 2013, e os valores efetivamente observados.

Nossa análise também é reforçada por cálculos de Sergio Gobetti, Rodrigo Orair e Frederico Dutra que apresentam a decomposição da variação do resultado primário estrutural, medida que ajusta o resultado fiscal para os efeitos do ciclo econômico. Essa análise vai apenas até 2016, mas é possível ver que, nos anos de 2015 e 2016, houve um esforço fiscal discricionário majoritariamente pelo lado da despesa, que contribuiu para um aumento do resultado estrutural.

Há no Brasil, portanto, sinais de um círculo vicioso. Uma redução das despesas, em particular as de elevado multiplicador, tende a produzir um menor crescimento do PIB, gerando um impacto negativo nas receitas e nos resultados fiscais, levando a novas reduções das despesas, como ocorreu esse ano.

Para estabilizar o indicador da dívida, é necessária uma combinação de no mínimo três variáveis: juros, crescimento do PIB e resultado primário. Os que propõe a possibilidade de que novos cortes nas despesas, numa economia em lenta recuperação, irão garantir uma trajetória sustentável da dívida, assumem que esse corte não irá interferir no crescimento econômico a longo prazo.

Em termos técnicos, assumem que não existe um efeito histerese. Diversos estudos recentes, como os de Larry Summers, apontam que um ajuste fiscal contracionista pode gerar uma perda permanente da capacidade de retomar um crescimento vigoroso, em linha com o que há muito é defendido na corrente heterodoxa.

Em situações de desemprego e baixa ocupação da capacidade produtiva, períodos em que os multiplicadores fiscais são maiores, a ampliação dos gastos públicos pode contribuir para o crescimento da economia. A elevação dos gastos pode ser feita de forma a manter o orçamento equilibrado e ainda sim ter efeitos positivos sobre a economia.

Para isso, além da compensação parcial por efeitos positivos do crescimento do PIB sobre a arrecadação, pode haver uma recomposição da tributação ao nível antes da crise, tanto por revisão de desonerações quanto pela taxação dos mais ricos.

Como observou Nelson Barbosa, os economistas que não reconhecem que o momento atual é bem distante do pleno emprego, revelam algum desconhecimento do tema, diante dos diversos indicadores de amplo hiato do produto, que deveriam servir de referência para análise do mainstream.

Já do ponto de vista social, faz pouco sentido a prestação de serviços públicos ficar sujeita aos ciclos econômicos. A garantia de direitos humanos, por exemplo, depende de recursos do orçamento público que são mais necessários (e não menos) em momentos de crise. Não é por acaso que junto com a crise e a austeridade fiscal, tivemos um aumento da mortalidade infantil, da miséria e do desmatamento na Amazônia legal.

Melhorar a qualidade da atuação do Estado brasileiro, aumentando a sua eficácia e progressividade, deve sempre ser objeto do nosso debate. Porém, diante do quadro econômico atual, reduzir o gasto público em áreas sociais e em investimentos pode apresentar um custo econômico e social muito maior do que a suposta economia de recursos.

Já há, no Brasil e no resto do mundo, um debate construtivo em torno de ideias capazes de reverter o cenário de lenta recuperação mundial com crescente desigualdade. É fundamental atualizar o debate econômico brasileiro e superar as visões mais dogmáticas que ainda persistem.

Sobre os autores

Esther Dweck é professora do IE-UFRJ e ex-secretária de Orçamento Federal, Fernando Maccari Lara é professor da Unisinos, Guilherme Mello é professor do IE-Unicamp, Julia Braga é professora da Faculdade de Economia da UFF, e Pedro Rossi é professor do IE-Unicamp

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