Jair Bolsonaro esperando para falar na 74ª sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 24 de setembro de 2019, em Nova York. Johannes Eisele / AFP / Getty Images |
Tradução / Todo mês de setembro, por tradição, o Brasil tem a primeira palavra na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York. Isso ocorre porque, como Desmond Parker, chefe de protocolo das Nações Unidas, explicou em 2010, "muito cedo, quando ninguém queria falar primeiro, o Brasil sempre ofereceu-se para discursar primeiro. E assim conquistaram o direito de falar primeiro na Assembleia Geral". Essa prática, em vigor desde 1955, nem sempre faz sentido intuitivo. Com uma influência internacional flutuante ao longo dos anos, pode parecer mais ou menos surpreendente ver o chefe de estado brasileiro no palco antes, por exemplo, do Secretário-Geral ou do presidente dos Estados Unidos. (Como líder do país anfitrião, o presidente dos EUA fala em segundo).
Este ano, no entanto, parecia inteiramente apropriado que Jair Bolsonaro falasse primeiro. Com uma estratégia de governo que depende de provocações pueris contra seus adversários para galvanizar sua base raivosa de apoio on-line, Bolsonaro personifica a ferocidade vazia que define o debate político em 2019. Ele também está no centro de uma tempestade de condenação global há várias semanas. Como um aluno malcriado chamada para o escritório do diretor, Bolsonaro estava devendo muita explicação perante a comunidade internacional.
Nos últimos meses, como é sabido, incêndios na floresta amazônica, quase dois terços do qual se encontra em território brasileiro, provocaram indignação maciça contra o governo Bolsonaro. Ha muitos anos, Bolsonaro vem lamentando as rigorosas proteções ambientais brasileiras e as demarcações de terras indígenas. O fato do desmatamento disparar drasticamente durante seus primeiros meses no cargo não surpreendeu ninguém. Como observam Tyler James Olsen e Brian Dorman, “a maioria desses incêndios são iniciados por pequenos agricultores ou fazendeiros quando preparam áreas da floresta virgem para pasto ou quando limpam porções já desmatadas para uso contínuo, empregando técnicas agrícolas de queimada.” Leis ambientais robustas só valem se saírem do papel. O atual governo não aparenta ter interesse algum em aplicar as devidas proteções. Líderes internacionais, jornalistas, ativistas, e pessoas comuns de todo o mundo se perguntaram por que o presidente do Brasil não estava fazendo mais para apagar as chamas.
Eventualmente, observadores internacionais chegaram à conclusão de que Bolsonaro ou não queria ou não era tecnicamente incapaz de fazer qualquer coisa produtiva. Como escrevi em agosto, “embora o governo Bolsonaro tenha sido uma emergência para brasileiros comuns desde seu início, os incêndios na Amazônia finalmente provocaram a intensa condenação mundial que Bolsonaro merecia há muito tempo. Em resposta, Bolsonaro tem manifestado um nacionalismo prejudicado, descartando críticas como sabotagem ‘colonialista’.”
Essa linguagem defensiva prefigurou o discurso de Bolsonaro na Assembléia Geral, na qual ele alegou representar um “um novo Brasil, que ressurge depois de estar à beira do socialismo”. De fato, o socialismo, essa ameaça perene do miasma direitista, supostamente empurrou o país para uma “situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”.
Lembrando a ameaça comunista de outrora, no início de seu discurso, Bolsonaro invocou a Revolução Cubana, ressaltando que “já nos anos 60, agentes cubanos foram enviados a diversos países para colaborar com a implementação de ditaduras. Há poucas décadas tentaram mudar o regime brasileiro e de outros países da América Latina. Foram derrotados!” Enquanto Bolsonaro falava, a câmera de televisão focava diretamente na delegação cubana. Os representantes da ilha nem se quer olhavam para o presidente brasileiro, focando nas suas anotações. Eles, é claro, ouviram tais discursos antes.
Não havia nada original no resto do discurso. Avaliando a situação na Venezuela, Bolsonaro observou que “o socialismo está dando certo na Venezuela! Todos estão pobres e sem liberdade!” O discurso, aparentemente escrito em grande parte pelo ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, também contou com uma dose pungente de teoria da conspiração, invocando a noção absurda de que o Foro de São Paulo, a conferência transnacional de partidos políticos latino-americanos de esquerda e centro-esquerda, apresenta um perigo existencial a ser enfrentado agressivamente, para que todo o continente não vire a Venezuela de Nicolas Maduro ou o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva (como se não houvessem diferenças profundas entre esses exemplos). No que se refere à questão indígena, Bolsonaro achou necessário declarar o que é óbvio para todos, exceto, talvez, os membros do seu governo: “nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós”.
Tentando negar o consenso entre os indígenas brasileiros de que Bolsonaro é uma ameaça sem precedente aos seus interesses, o presidente afirmou que “a visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o Cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia. Infelizmente, algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas”.
Como talvez fosse óbvio para todos na plateia, o fato do Bolsonaro não conseguir apresentar nenhum líder indígena para fornecer apoio simbólico ao seu governo expõe a fragilidade do argumento de que nem todos os indígenas brasileiros criticam seu governo. Sobre esse assunto e outros, Bolsonaro esperava que seu público ignorasse todas as notícias avassaladoras que ouviram e leram sobre seu país desde janeiro. Tudo está ótimo, ele insistia raivosamente, demonstrando zero interesse em dialogar de fato com a comunidade internacional. Pelo contrário: ele quer que observadores estrangeiros preocupados com a situação brasileira deixam de intrometer.
O discurso de Bolsonaro ilustra a falência intelectual da direita brasileira hoje, uma aglomeração social que respondeu a quase uma década e meia de governos petistas com um profundo, e até agora inabalável, saudosismo pela clareza simplória da Guerra Fria. Ao atacar de forma dramática os espectros do socialismo, globalismo e perseguição religiosa, Bolsonaro também tentou se inserir dentro de uma constelação de líderes de extrema direita ao redor do mundo.
Mas, ao contrário de Donald Trump, cujas palhaçadas de mau gosto são sinais claros de cinismo e desprezo por até mesmo seus apoiadores, Bolsonaro parece realmente acreditar que ele vive em um momento histórico diferente, no qual chefes de governo do terceiro mundo podiam confiar que uma atitude ferrenha contra a esquerda iria angariar apoio unânime no exterior. Mas como a cobertura global do discurso de Bolsonaro deixou claro, o presidente brasileiro é hoje um pária internacional que incendiou a boa vontade internacional em relação ao Brasil, construída durante os governos basicamente bem-sucedidos do PT.
Dado que Bolsonaro na Assembleia Geral soava como um ditador militar de meio século atrás, talvez valha a pena refletir sobre um discurso icônico proferido no mesmo local no auge da Guerra Fria. Discursando na ONU em 1964, Ernesto “Che” Guevara, representando o governo revolucionário cubano, destacou que “os povos da África se veem obrigados a suportar que neste continente se oficialize a superioridade de uma raça sobre a outra, que se assassine impunemente em nome desta superioridade racial. As Nações Unidas não farão nada para impedir isto?”
Ele também criticou diretamente a hipocrisia das autoridades norte-americanas em relação aos direitos civis no Estados Unidos e no exterior: “Os EUA intervêm na América invocando a defesa de suas instituições livres. Chegará o dia em que esta Assembleia adquirirá ainda mais amadurecimento e demandará ao governo norte-americano garantias para a vida da população negra e latino-americana que vive neste país, norte-americanos de origem ou adotivos, a maioria deles.” Finalmente, Che denunciou a inação da ONU, afirmando que “o imperialismo quer converter esta reunião em um vago torneio oratório em vez de resolver os graves problemas do mundo; nós devemos impedir isto.”
O famoso discurso do argentino revolucionário nos mostra que, mesmo diante da extrema polarização ideológica da Guerra Fria, era possível que líderes sérios combinassem uma defesa clara de sua visão de mundo com prescrições políticas concretas. Bolsonaro falha neste quesito de forma retumbante. Sua insistência em atacar moinhos de vento deixa clara a renúncia de seu governo de fazer um papel sério em assuntos internacionais. Fica claro seu compromisso com a insensatez. Sob seu governo, o Brasil se tornou um reino eremita ideológico, inflexível em sua falta de seriedade.
O trabalho de solidariedade internacional nesse momento deve envolver a elevação e capacitação de vozes dissidentes no Brasil, um projeto que pode ser reforçado pelo isolamento progressivo do próprio Bolsonaro. É impressionante, com menos de um ano de mandato, a falta de amizades do presidente no plano internacional. Sem contar Trump, são raríssimos os líderes estrangeiros que falam algo positivo sobre Bolsonaro ou que querem ser vistos com ele. O isolamento do Bolsonaro é ainda mais pronunciada em comparação com uma década atrás, quando Lula era uma verdadeira celebridade internacional a quem Barack Obama chamou de "o cara" e "o político mais popular da Terra".
Sendo que Brasil almeja tanto visibilidade e respeitabilidade internacional — sem falar do investimento estrangeiro que acompanha uma boa reputação internacional — as performances absurdas de Bolsonaro em encontros importantes como a Assembleia Geral há de o prejudicar em casa. Oportunistas de direita que o apoiaram no ano passado em momento ascensão, como João Doria, governador de São Paulo, denunciaram duramente seu discurso, um sinal de que mais ataques provavelmente estão a caminho. Seria perigoso supor que as repetidas humilhações de Bolsonaro diante de públicos estrangeiros são politicamente letais, mas um oponente sem aliados lá fora é sem dúvida mais fácil de derrotar em casa.
Colaborador
Andre Pagliarini foi professor assistente visitante de história moderna da América Latina na Brown University em 2018-19 e começará uma palestra no Dartmouth College neste outono. Atualmente, ele está preparando um livro sobre o nacionalismo brasileiro do século XX.
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