5 de setembro de 2019

O brilhante Immanuel Wallerstein foi anticapitalista até o fim

O falecido intelectual Immanuel Wallerstein nos deixou uma mensagem importante: embora seja urgente a necessidade de elegermos líderes progressistas, as soluções para os males do capitalismo não serão encontradas em um único país.

Nicole M. Aschoff 


Immanuel Wallerstein fala com a imprensa no Ministério das Relações Exteriores do Equador, em 1º de agosto de 2011. Cancillería del Ecuador / Flickr

Tradução / Em 31 de agosto nos deixou, aos oitenta e oito anos, Immanuel Wallerstein - um sociólogo imensamente influente e um intelectual radical. Nunca conheci Wallerstein pessoalmente. Eu o assistia em conferências acadêmicas de tempos em tempos, sempre acompanhado por sua esposa, Beatrice, que fazia questão de sentar na primeira fileira em suas palestras. No entanto, Wallerstein foi uma influência gigante no meu desenvolvimento intelectual.

Wallerstein era o último sobrevivente do grupo carinhosamente apelidado de "Gangue dos Quatro" - um conjunto de intelectuais dedicados ao estudo (e à abolição) do capitalismo global, que também incluía Samir Amin, Andre Gunder Frank e meu orientador de doutorado, Giovanni Arrighi. Giovanni e Wallerstein passaram muitos anos juntos no Fernand Braudel Center - um instituto fundado por Wallerstein na Universidade de Binghamton, nos EUA. Ouvi muitas histórias, muitas vezes hilárias, sobre a unida comunidade de acadêmicos radicais que floresceu por lá.

Vou deixar que outras pessoas contem essas histórias. Para mim, Wallerstein deixa como legado uma maneira de pensar - uma abordagem que ele chamava de "análise de sistema-mundo" - que, em sua essência, permanece tão atraente hoje quanto quando comecei a ler o primeiro volume de O Sistema-Mundo Moderno.

A análise de sistemas-mundo se cristalizou no final de 1968. Ao redor de todo o mundo pessoas tomavam as ruas, lutando contra as agressões militares dos EUA e por uma renovação e reconfiguração dos princípios fundamentais da Revolução Russa. O levante mundial durou pouco, mas seu legado foi inesperadamente poderoso, principalmente no meio universitário.

No final dos anos sessenta, uma insatisfação generalizada com os modos de pensar dominantes se espalhou entre os intelectuais radicais. De fato, a análise de sistemas-mundo era apenas uma de várias estruturas de análise dissidentes (teoria da dependência, economia política internacional, sociologia histórica) que surgiram nessa época.

Para Wallerstein, a análise de sistemas-mundo era tanto uma empreitada intelectual quanto protesto político:

A análise de sistemas-mundo... não é uma teoria, mas um protesto contra questões negligenciadas e epistemologias enganosas. É um apelo à mudança social; de fato, é um apelo ao “des-pensar” das premissas da ciência social do século XIX. É uma tarefa intelectual que é e que precisa ser também uma tarefa política, porque a busca pelo verdadeiro e pelo bem é uma busca única.

O ano de 1968 foi fundamental, mas o apelo de Wallerstein por uma nova abordagem também estava enraizado em sua própria trajetória intelectual. Após um período no exército e um mestrado na Universidade de Columbia, Wallerstein foi para a África no início dos anos 50. Por vinte anos ele viajou pelo continente observando os movimentos de massa que lutavam pela descolonização.

Wallerstein vinha de uma família politicamente consciente e havia se envolvido com ativismo na cidade de Nova York, mas suas pesquisas em Gana e na Costa do Marfim mudaram a maneira como ele via o mundo. Ele creditou seus estudos africanos "por abrir meus olhos para as questões políticas candentes no mundo contemporâneo e para as questões acadêmicas sobre como analisar a história do sistema-mundo moderno. A África foi responsável por desafiar as partes mais estupidificantes da minha educação."

Esse despertar intelectual foi solidificado em um chamado pelo rompimento com as suposições que dominavam a academia desde o século XIX. Em particular, Wallerstein argumentava contra as fronteiras disciplinares e, por extensão, metodológicas e epistemológicas que definiam e dominavam as ciências sociais. Sua argumentação, que não foi calorosamente recebida na época, era que "as três arenas presumidas da ação humana coletiva - a arena econômica, a política e a social ou sociocultural, não são arenas autônomas da ação social. Eles não possuem 'lógicas' separadas".

Ao invés de modelos de pesquisa que isolavam vários "fatores", ou que se baseavam em comparações de Estados-nações conceituados como caixas de dados discretas seguindo trajetórias independentes, Wallerstein insistia que a economia mundial era um sistema único e interconectado, conectado por uma divisão de trabalho compartilhada e um conjunto único de restrições - o capitalismo.

Porém, ao caracterizar a economia mundial moderna como uma economia-mundo capitalista, Wallerstein não estava defendendo uma abordagem de cima para baixo, na qual um modelo fixo ou um conjunto de regras é usado para descrever e analisar a realidade. Em vez disso, ele insistia que o capitalismo era um sistema histórico, com começo e fim. Para compreendê-lo - e às suas normas e funções – precisávamos examinar sua evolução no tempo e no espaço.

Wallerstein instava os estudiosos a abandonar suposições retrógradas sobre os estágios históricos e a inevitabilidade do "progresso" e, em vez disso, a desafiar os paradigmas dominantes, desenvolvendo hipóteses e estruturas de análise sistêmicas que capturassem a complexidade do capitalismo como um sistema global e histórico.

Wallerstein foi um estudioso prolífico, propondo muitas de suas próprias hipóteses sobre a natureza do sistema-mundo capitalista em dezenas de livros e artigos. Não concordo com muitos desses argumentos - e o mesmo acontece com outros membros da "Gangue dos Quatro", acadêmicos de Binghamton e membros da seção sobre Política Econômica do Sistema Mundo da Associação Sociológica Americana.

Mas Wallerstein nunca insistia que todos deveriam concordar com ele, ele adorava o debate.

Em última análise, uma abordagem de sistemas-mundo não é sobre sustentar esta ou aquela hipótese sobre as estruturas e instituições do capitalismo global. Trata-se, isso sim, de reconhecer que estamos conectados através do tempo e do espaço – que não podemos compreender o que está acontecendo em um lugar do mundo sem situarmos esse lugar dentro de um quadro global, sem reconhecer a natureza global do capitalismo moderno.

A esse respeito, a análise de sistemas-mundo permanece tão relevante hoje quanto em qualquer outro momento. Ela nos fornece as ferramentas para compreendermos os sobressaltos e os engasgos de nossa economia financeirizada; da turbulência política que envolve Londres, Hong Kong e tantos outros lugares; da carapaça ideológica em ruínas do neoliberalismo.

Uma abordagem de sistemas-mundo também oferece uma lição útil: embora seja urgente a necessidade de elegermos líderes progressistas, as soluções para os males do capitalismo não serão encontradas em um único país.

O nacionalismo é uma rua sem saída. Em vez de fechar as fronteiras e colocar trabalhadores locais contra os trabalhadores de outros países, devemos exigir programas e plataformas que reconheçam nosso destino em comum. Reformas em nível nacional são essenciais, com certeza, mas conquistas duradouras contra as mudanças climáticas e as vorazes corporações multinacionais só podem ser alcançadas no nível do sistema como um todo.

O corolário de nosso destino compartilhado é a força de nossa luta compartilhada. O capital já tem sido global por centenas de anos, mas o mesmo se dá com a luta contra o capitalismo, mesmo que em um grau muito menor. Hoje, apesar dos desafios serem antigos, essa luta tem um novo potencial, recém-descoberto.

Wallerstein foi, ao longo de toda a vida, um participante nessa luta. Sua obra acadêmica, ousada e criativa, foi um protesto político contra o status quo intelectual. À medida que nos esforçarmos para criar algo melhor, vamos nos lembrar dele - e usaremos as ferramentas que ele nos deixou.

Colaborador

Nicole Aschoff faz parte do conselho editorial da Jacobin. Ela é autora de The Smartphone Society: Technology, Power, and Resistance in the New Gilded Age e The New Prophets of Capital.

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