27 de setembro de 2019

Ortodoxia com complexo de vira-lata

Temos fracassos, mas também sucessos em nossa história de investimento público

Nelson Barbosa


Teto de gastos: cerca de 80% das despesas do governo federal têm seu crescimento anual limitado pela inflação. Pedro Ladeira/Folhapress

O debate sobre aumentar ou não investimento público atiçou a ortodoxia com complexo de vira-lata em nosso debate econômico.

Como os leitores sabem, sou favorável à flexibilização do teto de gasto para recuperar investimento público neste momento, mesmo com emissão de dívida, mas alguns analistas apontaram quatro pontos que merecem reflexão.

Primeiro: ao manter o teto de gasto haverá nova contração fiscal em 2020, que por sua vez derrubará ainda mais a Selic e isso elevará o gasto privado. Assim, seria melhor concentrar todas as medidas expansionistas do lado monetário.

Resposta: todos economistas aprendem que, diante da incerteza, é melhor diversificar em vez de concentrar todas as apostas em um só ativo ou política econômica.

Sim, Selic menor aumenta a atividade econômica (com defasagens), mas no atual contexto de produto abaixo do potencial e inflação abaixo da meta, estímulo complementar focado no investimento ajudará na recuperação mais rápida do emprego, com efeito positivo sobre a produtividade mais à frente.

Segundo: quando a economia opera no seu potencial, o produto está limitado pelo lado da oferta e, portanto, qualquer estímulo fiscal simplesmente diminuirá o gasto privado real (crowding out), sem elevar renda ou emprego.

Resposta: não estamos em pleno emprego e, portanto, a lógica acima não se justifica mesmo dentro da visão ortodoxa. Apesar disso alguns colegas insistem no erro, retrucando que não estamos em recessão, mas isso revela desconhecimento do tema.

Para calcular o impacto da política fiscal sobre a renda, o que interessa é se a economia está abaixo ou não do seu potencial, não se a economia está crescendo. Um país pode ter crescimento e, ainda assim, muitos recursos ociosos, como acontece hoje no Brasil.

Terceiro, o “vira-latismo”: não devemos aumentar o investimento público porque brasileiro não sabe fazer isso. Apesar de parecer ofensiva, essa crítica é válida, pois temos longo histórico de desperdícios pelo Estado.

Resposta: sim, temos fracassos, mas também sucessos em nossa história de investimento público.

Devemos aprender com os dois e discutir como investir melhor em vez de desistir de investir. Mais importante, como hoje a despesa de capital do governo é insuficiente para manter a infraestrutura existente, não é difícil identificar projetos que merecem recursos.

Permanece o desafio do tamanho inicial da dívida pública, mas deixo esse quarto ponto para outra coluna, porque antes preciso tratar de um debate recente na “casa das economistas”.

Há quase duas semanas, Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica) e outros dois autores publicaram um texto defendendo que o governo deveria cortar gastos. Em contraponto, Esther Dweck (ex-secretária do Orçamento Federal) e outros quatro autores publicaram artigo com visão alternativa.

O segundo texto continha um erro contábil: confundir critério de dívida bruta (emissão líquida) com critério de dívida líquida (resultado primário). O erro foi corrigido na versão online do artigo, mas gerou um Erramos por parte da Folha.

Diante desse fato, como escreveu Laura Carvalho ontem, cabe apontar que o artigo de Lisboa também tinha um erro, só que matemático: confundir velocidade com aceleração, ao dizer que houve “crescimento acelerado dos gastos obrigatórios” nos últimos anos.

Os dados do Tesouro mostram o contrário: sim, houve crescimento real, mas com desaceleração em 2011-14, e novamente em 2015-18. Por isonomia, sugiro que a Folha também publique um Erramos sobre tal equívoco.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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