19 de setembro de 2019

O topo acima de todos

Ajuste fiscal via corte de gastos e benefícios sociais mostra o plano do governo

Laura Carvalho


Jair Bolsonaro durante a solenidade de sanção da Lei 3715/19, que altera o estatuto do desarmamento. Marcos Corrêa/PR

Diante do drástico quadro orçamentário de 2020, imposto pelo teto de gastos, a equipe econômica do governo pretende aproveitar-se do desastre anunciado para livrar-se de diversas obrigações constitucionais que impedem um corte maior de despesas, como a correção do salário mínimo pela inflação e a vinculação de receitas para a saúde e a educação.

Como destacaram os autores do artigo intitulado "Por que cortar gastos não é solução para o Brasil ter crescimento vigoroso", publicado nesta Folha no último sábado (14), um ajuste fiscal focado em gastos e benefícios sociais reduz justamente a dimensão redistributiva do Estado brasileiro.

Em vez de trabalhar para eliminar o caráter regressivo da tributação, o plano da equipe econômica parece ser o de tornar o Estado brasileiro concentrador de renda em seu conjunto por meio da "desvinculação, desobrigação e desindexação" de despesas.

Como mostram os pesquisadores Fernando Gaiger Silveira, Fernando Rezende, José Roberto Afonso e Jhonatan Pereira no Working Paper n. 115 do International Policy Center for Inclusive Growth, os benefícios sociais reduzem a desigualdade de renda no Brasil —medida pelo índice de Gini— em 5,5%. Já os gastos sociais com saúde e educação reduziriam essa medida em 18%.

Os autores mostram ainda que o efeito redutor de desigualdades dessas despesas aumentou entre as Pesquisas de Orçamento Familiar de 2003 e a última do IBGE, de 2009, sobretudo por conta da expansão do gasto nessas áreas ao longo dos anos 2000. Em 2003, o efeito negativo sobre o índice de Gini era de só 2,4% no caso de benefícios sociais e 13,1% para gastos em saúde e educação.

A redução de desigualdade gerada pelos gastos e benefícios sociais em seu conjunto em 2009 —ainda que com exceções que incluem, por exemplo, as despesas previdenciárias do regime próprio de servidores públicos— foi bem maior do que o necessário para compensar o aumento de desigualdade gerado por nosso sistema tributário, por exemplo.

Isso porque os tributos indiretos sobre o consumo e a produção, que atingem uma proporção maior da renda dos mais pobres, aumentam a desigualdade em 3,5%, enquanto os impostos diretos, sobre a renda e o patrimônio, a reduzem em 2,6%.

Além disso, parar de corrigir o salário mínimo pela inflação, deixando-o perder valor real, não afeta apenas o piso de diversos benefícios sociais destinados aos mais pobres, mas também o piso salarial do mercado formal de trabalho. A tese de doutorado de Bruno Komatsu, orientada por Naercio Menezes Filho, estima que entre 2007 e 2011, 68,6% da redução na desigualdade salarial entre homens deveu-se a aumentos do salário mínimo.

Por fim, em meio à recuperação mais lenta da história das crises, a adoção de medidas que ampliam nossas abissais desigualdades afasta também qualquer possibilidade de retomada mais rápida da economia. Afinal, os mais pobres consomem uma parcela muito maior de sua renda do que os mais ricos, fazendo com que cada real tributado no topo da distribuição e transferido para a base por meio de benefícios sociais tenha um efeito multiplicador sobre a renda e o emprego.

Com as taxas de juros mais baixas, não faltam agendas alternativas compatíveis com a estabilidade da razão dívida-PIB no curto prazo, que reduzem desigualdades e estimulam o crescimento. Quando escolhe a via dos cortes de gastos e benefícios sociais, a equipe econômica deixa muito claro a que veio: atender os interesses do topo de nossa pirâmide distributiva.

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

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