27 de outubro de 2020

Chile, de um outubro a outro

O povo chileno apoiou massivamente o "Apruebo" no plebiscito do domingo passado. Os resultados, explica Luis Thielemann, demonstram a disposição das classes populares em alcançar seus interesses por meio da política plebéia: votos e barricadas.

Luis Thielemann Hernández


Uma bandeira gigante nos protestos de 25 de outubro de 2019 em Santiago. (Foto: Marcelo Hernandez / Getty Images)

O Chile expressa um dos casos mais bem-sucedidos do processo ideológico empreendido pelo neoliberalismo vitorioso dos anos 1990. Um processo que, entre outras questões, buscou banir a compreensão de classe dos problemas sociais. Mas, como a água, a luta de classes segue seu curso, embebe tudo e se torna evidente. É sobre a sinceridade da brutal desigualdade do país, de como a agonia da maioria empobrecida paga a farra e o luxo da minoria mais rica, e o fato de terem chamado isso de "milagre chileno" e o terem vendido como um modelo de sucesso. Pero tanto va el cántaro explotador a la paciente agua que al final ésta se cabrea, se politiza y rompe cualquier contenedor de su propia esclavitud ultramoderna.

Uma das comunas mais populosas e também mais pobres de Santiago, Puente Alto, foi governada há duas décadas por um setor rebelde da direita chilena. De 2000 a 2012, seu prefeito foi Manuel José Ossandón Irarrázaval, dois sobrenomes que denotam a linhagem oligárquica do agora senador pelo distrito de Santiago Oriente, onde fica Puente Alto. Desde 2012, o prefeito da comuna é seu golfín, Germán Codina. Em 2016, o direitista Codina foi reeleito para o governo comunal com 81% dos votos. Mas apenas um ano depois, em 2017 e no mesmo município, o candidato à presidência pela Frente Amplio, coligação eleitoral à esquerda da então presidente Bachelet e que seria derrotado por Piñera, obteve a primeira maioria, com 31 % de votos.

No plebiscito de domingo, 25 de outubro de 2020, em Puente Alto, votaram três vezes mais pessoas do que em 2016 e pouco mais de um terço do total de votos do primeiro turno presidencial de 2017. Dessa votação maciça, um esmagador 88 % o fizeram a favor da mudança da Constituição de Pinochet, de 1980. O número do "Apruebo" em Puente Alto é três vezes o que Codina obteve em 2016, e também o que Piñera obteve no segundo turno presidencial de janeiro de 2018.

O que aconteceu em Puente Alto é semelhante ao que aconteceu em lugares como La Pintana ou El Bosque, também comunas pobres do sul de Santiago, nas quais a participação eleitoral aumentou consideravelmente, e nas quais o "Apruebo" também superou a 85% do total de votos. Rompendo com os tradicionais comportamentos eleitorais até então nos bairros mais pobres das grandes cidades chilenas, a mobilização eleitoral de ontem expressou uma direção clara a favor da mudança constitucional e a intenção de manter politicamente a ofensiva popular iniciada com a revolta de outubro de 2019, que teve suas principais bases nesses mesmos bairros.

Apesar de o presidente Piñera ter tentado publicar a história de que o plebiscito era a alternativa que havia promovido em novembro de 2019 aos partidos diante da ameaça de impeachment imposta pela revolta nas ruas (narrativa que teve um estranho eco em certas esquerdas); sua irrelevância política e sua ilegitimidade em massa não dão credibilidade às suas palavras. Tampouco foi capaz de impor novamente o respeito (nove dos últimos doze meses o Chile viveu em um estado de exceção que ainda está em vigor), e isso apenas internalizou o entendimento da maioria de que tanto a revolta quanto o plebiscito são contra seu governo.

Mas, além disso, a evidente face classista do voto "Apruebo" e sua fortaleza nos bairros mais rebeldes de 2019, em corpos ainda perfurados por projéteis policiais, junto com a lembrança da declaração de guerra do presidente aos protestos, destruíram qualquer possibilidade levar a sério a história de um Piñera republicano em outubro de 2019. Para a maioria, o plebiscito foi uma conquista das lutas de rua do ano passado. E não iam perder a possibilidade de assegurar o que, até ontem, nada mais era do que a vitória simbólica de uma revolta muito custosa em vidas e estabilidade. Era preciso assinar a derrota de Piñera e da ordem social e política da Transição pactuada com a Ditadura, e assim aconteceu.

O "Rechazo"

Os resultados do lado perdedor - o “Rechazo” - também nos permitem tirar algumas conclusões sobre a força do movimento popular desencadeado pela ofensiva desde outubro passado. Os únicos lugares onde ganhou o "Rechazo", além da base militar na Antártica e uma pequena cidade ao norte na fronteira com a Bolívia, foram as três comunas mais ricas de Santiago: Vitacura, Lo Barnechea e Las Condes. Nesses locais, assim como na maioria dos distritos historicamente conservadores, a participação eleitoral diminuiu ou se manteve nos últimos anos.

Onde a revolta não foi importante nem mobilizou grandes setores da população, como nas áreas rurais ou pequenas cidades do sul do país (especialmente em La Araucanía), a participação eleitoral ficou bem abaixo das últimas eleições e, apesar de serem áreas historicamente de direita, o "Rechazo" venceu. Embora seja arriscado tirar conclusões com os dados disponíveis e sem ser um especialista, os bolsões conservadores estão notoriamente desmobilizados e é provável que tenham experimentado um enorme grau de desmoralização nos dias anteriores ao plebiscito. Isso foi notório no discurso do governo e dos diversos porta-vozes e campanhas do “Rechazo”, convocando desesperadamente suas bases para votar.

O pinochetismo não poderia repetir a manifestação em massa de 1988. É provável que uma parte de sua força histórica, como a identidade de fundo da direita chilena, tenha sido desmobilizada por medo da COVID-19. Mas a derrota cultural do lado conservador também é notória. A revolta de outubro de 2019 foi abrangente, não apenas mais um distúrbio de rua. Virou o país de cabeça para baixo, abriu honestamente a crise do "país modelo" e baixou as cartas das prioridades públicas. É até possível imaginar que, dado o tom da luta social do ano passado, alguns membros da direita tiveram medo de votar (se viram Piñera mudar seu distrito eleitoral do centro de Santiago para a rica comuna de Las Conta, ter medo das funas não deve ter parecido totalmente irracional.)

O pinochetismo acabou, a oligarquia mais cruel do continente está despida de legítima historicidade, agora só tem a sua força - que não é pouca - mas nada mais.

Esta é também uma expressão da impossível igualdade universal do voto. Os resultados das eleições têm diferentes importâncias de acordo com os interesses de classe dispostos na cena. É verdade que as eleições não resolvem a luta de classes, mas também é verdade que fazem parte dela. A tradicional desvalorização do momento eleitoral que a esquerda radical chilena vive há décadas deve ser eliminada, dado o peso eleitoral extra - social, histórico, experiencial na recomposição do movimento popular - que os resultados de domingo têm. O ato eleitoral ocorrido no dia 25 de outubro, incluindo a grande festa de rua em bairros populares de diferentes cidades, nos fala sobre uma mudança de ânimo das classes forçada por um ano de intensa luta social. A desmoralização de grande parte da direita deve ter uma consideração histórica importante. Talvez, como um sinal da crise de uma forma conservadora que deixou de ser uma força política.

O "Apruebo"

A massiva participação popular a favor do “Apruebo”, avassaladora em comunas urbanas onde a revolta teve o apoio massivo da população e a violência atingiu uma intensidade sem precedentes, também nos fornece conclusões de importância política ao observar alguns dados conhecidos até agora. O voto "Apruebo", nos bairros onde ficou acima de 80%, foi alimentado principalmente pelo voto de mulheres, jovens trabalhadores, a esmagadora maioria dos desempregados e estudantes (em ambos os casos, 9 em cada 10 eleitores). O "Apruebo" ficou especialmente baixo entre aposentados, donas de casa e evangélicos, embora em todas essas categorias tenha saído vencedor. É evidente que os setores sociais mais mobilizados pela revolta - jovens, estudantes e trabalhadores, das classes populares - também foram os mais mobilizados eleitoralmente.

O fato de o voto feminino ter sido mais propenso a mudanças do que o voto masculino também mostra o peso do movimento feminista na última década. A politização das mulheres nas lutas dos últimos anos, principalmente a partir do feminismo de maio de 2018, e seu protagonismo na última revolta, são, sem dúvida, um fator na massificação do voto das mulheres pelo "Apruebo" em relação ao dos homens. Esse fato ilumina o fator das lutas sociais das últimas décadas na maior mobilização eleitoral de certos grupos.

A politização desses setores não começou há um ano, mas há pelo menos dez anos. O caso dos estudantes, protagonistas da origem da revolta, já foi apontado. Mas, para além disso, em quase todas as comunas onde ocorreram conflitos socioambientais nos últimos anos, o «Apruebo» venceu com uma votação acima da média nacional e com taxas de participação históricas. Comunas como Freirina, Petorca ou Huasco ocupam os primeiros lugares dessa lista, pois suas comunidades participaram dos conflitos mais radicais da última década em resistência aos negócios destrutivos nos territórios e seus ecossistemas.

A dicotomia que alguns grupos colocam entre a persistência do protesto de rua e o avanço eleitoral e as instituições majoritárias mobilizadas na revolta não parece ter maior respaldo. Além disso, corresponde a uma tradição da região, um aprendizado histórico abjeto e reafirmado na experiência atual, segundo a qual os explorados conquistam seus direitos com uma combinação de manifestações de rua e mobilização eleitoral. Nesse sentido, os resultados de domingo nos bairros mais mobilizados pela revolta mostram o desenvolvimento da disposição de uma importante faixa das classes populares em atingir seus interesses com a política plebéia: votos e barricadas.

E agora?

Mas, embora sua resistência heróica nas manifestações de rua (bem como sua capacidade tática disciplinada para conter a violência) tenha mostrado um crescimento notável a limites sobre-humanos no ano passado, a parte que corresponde às forças institucionais segue em débito. Longe do desenvolvimento político de uma ponta afiada da maioria expressa nas ruas e nas urnas, até domingo, os partidos de esquerda chilenos continuaram a observar a sociedade com as vendas do período de transição. 

Como si no hubiese mediado el rabo de nube popular de 2019, continuaram a imaginar que havia uma «outra metade» do Chile que não aderiu à revolta e pela qual tinha um respeito muito semelhante ao medo (algo racional em um país cuja esquerda foi praticamente exterminada há menos de cinquenta anos e onde os que o fizeram obtiveram o apoio nas urnas de mais de quatro em cada dez chilenos em 1988). Até aquele momento, mostrava-se como mera proposta de alternativa democrática à constituição ditatorial de Pinochet; sem ousar assumir com firmeza o programa de reivindicações explicitamente levantado pelas maiorias em revolta há um ano. Mas os resultados de domingo forçam uma mudança de perspectiva.

No domingo terminou o campeonato que unia o campo popular. A esquerda não poderá mais continuar simplesmente convocando o "Apruebo" para sustentar sua unidade com as maiorias na rebelião constituinte. É chegado o momento de montar um programa que lhe permita distinguir-se da classe política da transição, convocar a esmagadora maioria no domingo para superar a mera negação do pinochetismo e partir para a afirmação de uma nova sociedade. Apesar de todos os apelos por um programa de unidade antineoliberal da esquerda chilena, que permita uma alternativa eleitoral institucional forte referenciada no movimento popular, este ponto é alcançado com um vácuo. É o vazio da vitória, um abismo estratégico para a esquerda.

O que as maiorias mobilizaram no domingo, 25 de outubro de 2020, que se multiplicaram por cinco aquelas que há um ano encheram o centro de Santiago em meio à revolta, está em todas as ruas da cidade. Há um programa ressoando em todos os subúrbios da periferia e surgindo em todos os cantos do centro da cidade, mesmo nos bairros dos ricos. Deve haver uma proposta não só para a Constituição, mas para converter a maioria em uma revolta no poder nas instituições, por meio de uma vintena de eleições que o Chile terá em dois anos. Não pode mais haver chantagem de uma imaginária “outra metade” do país relutante em mudar. Deve ser ouvido o incontornável mandato de uma jovem maioria, diversa mas ancorada no lado popular da luta de classes, por um país que vence o neoliberalismo.

Talvez seja útil olhar novamente para o caso de Puente Alto e a contradição de uma comuna que vota massivamente pela mudança social e mantém altos níveis de manifestações de rua, mas continua votando em prefeitos conservadores. Se olharmos para o nível do solo, entre as ruas da periferia de Santiago e outras grandes cidades, a incoerência que se encontra no eixo ideológico fica embaçada. Surge outra coerência, básica mas honesta, dada por um voto disposto a mobilizar em seu próprio interesse como trabalhadores pobres, ao mesmo tempo que é indiferente à racionalidade da política formal da Transição moribunda.

As periferias das cidades chilenas são habitadas por monstros deste claro-escuro, que conseguiram satisfazer uma parte suficiente de um interesse popular ainda fragmentado. É o desenvolvimento político das periferias mais exploradas das cidades chilenas que exige uma política que corresponda a ele. O caminho percorrido, da revolta selvagem à esmagadora maioria eleitoral, torna urgente a necessidade de uma grande esquerda no auge da disputa secular já aberta e em curso. Uma esquerda para tempos que não são de revolução, mas de reconquista do direito à política plebéia.

Encolher o campo dos mais ricos, ampliar o raio de ação e o poder do povo organizado e construir gradativamente uma subjetividade das classes trabalhadoras que supere o capitalismo. Essa promessa, suspensa com sangue, da esquerda chilena em 1973, constitui seu desafio para o século XXI.

Sobre o autor

Luis Thielemann Hernández é historiador, acadêmico universitário e editor da Revista ROSA.

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