1 de outubro de 2020

Guerra Comercial China-EUA: O verdadeiro "ladrão" finalmente desmascarado

Em 2018, Washington lançou a guerra comercial contra a China. As medidas incluíram o aumento acentuado das tarifas alfandegárias suportadas por certos produtos importados da China, mais barreiras às importações da China e sanções contra empresas chinesas visadas pela proibição do uso de insumos fabricados nos EUA. Em junho de 2019, quando os aumentos de tarifas atingiram novos setores, a China deixou de ser o maior parceiro comercial dos Estados Unidos.

por Zhiming Long, Zhixuan Feng, Bangxi li e Rémy Herrera


Volume 72, Issue 05 (October 2020)

Tradução / Resumidamente, lembremos que Marx admitia que o comércio internacional poderia melhorar, no curto prazo, a situação econômica dos países que dele (soberanamente) participassem, em particular permitindo o aumento do consumo a um custo menor, havia dito Ricardo. No entanto, Marx também acrescentou que, apesar desse ganho imediato, a troca opera às custas da economia menos industrializada e é desigual na medida em que consideramos as quantidades de trabalho incorporadas nas mercadorias trocadas e que medem os esforços produtivos realmente acordados pelos protagonistas da troca.[1] Isso se verifica se um país menos "desenvolvido" apresenta, nos setores de atividade considerados pelo comércio exterior, produtividade do trabalho inferior à de seu "parceiro", de modo que ele obtém menos horas de trabalho incorporadas nas mercadorias que importa em relação às horas que integram suas exportações. A relação das quantidades de trabalho demandadas das exportações e importações (isto é, o que mais tarde será chamado de “termos de troca fatoriais”) é, neste caso, desfavorável ao país menos “avançado”, quando visto pelo ângulo das respectivas contribuições em trabalho. Os marxistas, que se seguiram a Marx, começando com os teóricos do sistema mundial capitalista, mostrarão, mais tarde, que a amplitude das desigualdades entre os países pode depender do diferencial dos salários dos trabalhadores, mais baixos na periferia do que no centro, com produtividade igual.[2] 

Assim, ao revelar a natureza desigual do intercâmbio, Marx refutou a visão de um comércio internacional que leva a equalizar ou corrigir os efeitos das desigualdades e enfatizou os mecanismos de dominação e exploração que afetam as economias menos industrializadas e que levam a sua submissão aos países capitalistas ricos.[3] E se Marx pensava que "a liberdade comercial acelera a revolução social" e optou por "votar a favor do livre comércio", não deixou de insistir que este agrava as desigualdades entre os países, configura uma divisão internacional do trabalho de acordo com o interesses dos capitalistas mais poderosos e representa para a burguesia um instrumento de subordinação – razões pelas quais, sem aderir ao protecionismo, ele rejeitou as conclusões normativas dos economistas liberais.[4]

Será, então, que Marx nos ajuda a decifrar o lado oculto de certos aspectos das atuais relações sino-americanas? O enorme déficit comercial dos Estados Unidos (EUA) com relação à China foi o principal pretexto para o desencadeamento por Washington, a partir do primeiro semestre de 2018, do que se costuma chamar de “guerra comercial” contra Pequim. Além das acusações de "roubo" de propriedade intelectual – e outras cortesias[5] –, os motivos invocados pelo governo dos Estados Unidos referem-se à concorrência supostamente "injusta" de uma China que combinaria as vantagens das exportações impulsionadas por baixos salários com as de uma moeda nacional desvalorizada, por um lado, e, por outro, as vantagens de importações prejudicadas por subsídios às empresas nacionais e por fortes restrições regulatórias que impedem o acesso ao seu mercado interno. O déficit bilateral dos EUA não fornece prova irrefutável de que Donald Trump está correto ao dizer que "os chineses extraem [dos Estados Unidos] centenas de bilhões de dólares a cada ano e os injetam na China" (ao mesmo tempo em que afirma que o presidente Xi Jinping é um de seus “muito, muito bons amigos”[6])? A evolução recente da configuração das cadeias de valor que viram a China ocupar pouco a pouco um lugar decisivo nas redes mundiais de abastecimento de inúmeras atividades certamente tendem a tornar a análise mais complexa. Mas como se pode negar a evidência de que todos esses dólares estão de fato sendo transferidos do país deficitário para o país superavitário? 

Como se sabe, desde a década de 1980 (e mesmo da década de 1970) houve déficits comerciais bilaterais cada vez mais profundos, em detrimento dos Estados Unidos e em benefício da China. Isso é verdade independentemente do sistema contábil usado e apesar das divergências sobre os valores exatos dos déficits entre os dados dos EUA (do Departamento de Comércio dos EUA) e da China (da Administração Aduaneira da China). Essas diferenças de valores podem ser explicadas, entre outros motivos, pelos procedimentos utilizados para se levar em conta reexportações a partir de Hong Kong, custos de transporte e / ou despesas de viagem de cidadãos dos dois países. 

Esta deterioração só desacelerou - temporariamente, antes de voltar a acelerar - como resultado do impacto das crises que abalaram a economia dos EUA em 2001 (estouro da bolha da “nova economia”) e em 2008 (a chamada “crise subprime”, mas na realidade sistêmica, que produziu seus efeitos na China a partir de 2009 e especialmente em 2012) ou das valorizações do yuan (em 2005 e 2011) e após a crise financeira do verão de 2015 nas bolsas chinesas. Esse saldo se deteriorou primeiro lentamente na década de 1990, depois dramaticamente nos anos de 2000 e 2010. Ele ultrapassou a marca dos US $ 100 bilhões em 2002, dos US $ 200 bilhões em 2005, e dos US $ 300 bilhões em 2011, antes atingir, apenas para bens (excluindo serviços), o déficit recorde de US $ 419,5 bilhões em 2018. Nessa data, a China havia se tornado oficialmente o primeiro parceiro comercial dos EUA para o comércio de bens, com um total de US$ 659,8 bilhões: US$ 120,0 bilhões em exportações e US$ 539,5 bilhões em importações. Enquanto isso, o comércio de serviços teve um superávit a favor dos EUA de US$ 40,5 bilhões. 

Foi precisamente nesse ano que a guerra comercial foi lançada. Em janeiro, foram tomadas as primeiras medidas, que consistiram em aumentar drasticamente os direitos aduaneiros sobre alguns produtos importados da China (exemplos: equipamentos domésticos, painéis solares fotovoltaicos, etc.). A partir de março, seguiram-se novos aumentos nas barreiras às importações da China (metalurgia, automotiva, aeronáutica, robótica, tecnologias de informação e comunicação, equipamentos médicos, etc.). Então, em abril de 2018, vieram as sanções contra as empresas chinesas, que foram alvo da proibição da utilização de insumos made in EUA. 

Um ano depois, em junho de 2019, quando os aumentos de tarifas afetaram outros setores, a China não era mais o maior parceiro comercial dos Estados Unidos (foi suplantada pelos parceiros do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), México e Canadá). Mas, no final de 2019, o déficit comercial havia se reduzido a US$ 345,6 bilhões, valor inferior ao do final do segundo mandato de Barack Obama. Essa mudança era visível desde os primeiros meses de 2019.

Será, então, que Donald Trump está certo e está vencendo sua luta? A resposta a essa pergunta requer de antemão saber se, como afirmam os economistas do mainstream, o comércio entre os Estados Unidos e a China é justo. Mas é realmente esse o caso? 

A medida do comércio desigual

Ao custo de certas suposições e condições técnicas, se pode calcular os respectivos valores em trabalho dos bens e serviços trocados pelos Estados Unidos e China em seu comércio bilateral.[7] Isso é o que fizemos, usando dois métodos separados.[8] Um primeiro método consiste em estimar diretamente a troca desigual como a razão entre os conteúdos em trabalho integrados nos intercâmbios sinoamericanas: a China exporta uma quantidade de horas de trabalho realizadas pelos trabalhadores chineses e, em troca, importa outro número de horas trabalhadas realizadas, desta vez, pelos trabalhadores norte-americanos, às quais se soma o superávit da balança comercial, ou seja, um número adicional de horas desses mesmos trabalhadores norte-americanos correspondente ao saldo bilateral, visto da China. Precisamos também avaliar quantas horas de trabalho equivalem um dólar nos Estados Unidos e na China, pois nossos cálculos, feitos a preços correntes, devem converter as moedas entre si, utilizando o câmbio oficial. 

Os resultados que obtemos evidenciam, nas últimas quatro décadas, de 1978 a 2018, a existência de um intercâmbio desigual entre os Estados Unidos e a China, à custa desta e a favor daquele. As respectivas evoluções do conteúdo do trabalho integrado em bens transacionáveis foram muito diferentes nos dois países: vemos, para a China, um aumento acentuado até meados dos anos 2000, depois uma queda acentuada e finalmente uma estabilização no início da década. de 2010; mas, para os Estados Unidos, uma evolução bem mais moderada, em aumento contínuo. Descobrimos que, entre 1978 e 2018, uma hora de trabalho nos Estados Unidos foi trocada por quase 40 horas de trabalho chinês em média. No entanto, desde meados da década de 1990 - período de profundas reformas na China, especialmente em matéria fiscal e orçamentária -, observamos uma diminuição muito acentuada da desigualdade comercial, sem que esta desapareça completamente. Em 2018, 6,4 horas de mão de obra chinesa ainda eram trocadas por uma hora de mão de obra americana. A erosão dessa vantagem comercial dos Estados Unidos poderia então explicar a eclosão de sua guerra comercial contra a China? 

Nesse primeiro método, é a comparação da média dos tempos de trabalho necessários para a fabricação dos bens comercializados que pode avaliar diretamente o câmbio desigual. No entanto, a apropriação da riqueza produzida entre os países só se mede realmente por meio da transferência bilateral do tempo necessário do trabalho social, ou seja, dos valores internacionais. Estes últimos podem ser estimados empiricamente - embora seus cálculos não sejam fáceis. Além disso, pelo método anterior, só nos foi possível calcular o trabalho vivo diretamente incorporado nas exportações, enquanto o produto bruto inclui também o trabalho materializado nos diferentes meios de produção mobilizados. Assim, também adotamos um segundo método, baseado na Nova Interpretação da teoria do valor trabalho8, para superar as limitações do primeiro método acima mencionadas e examinar mais precisamente o alcance da troca desigual.[9] 

O cálculo da troca desigual está intimamente relacionado com a aplicação de métodos de insumo-produto porque implica a medição dos fluxos de bens negociados e dos valores subjacentes à divisão do trabalho entre os dois países. O valor que pode ser medido é, na verdade, a quantidade de trabalho total contido na mercadoria, que inclui a quantidade de trabalho direto e o trabalho “materializado” – este último resultante do trabalho contido em bens intermediários (ou processos intermediários de produção) no conjunto produção de mercadorias. A ideia para medir esse valor é, portanto, usar uma matriz insumo-produto para obter insumos de trabalho. No entanto, enquanto a troca desigual envolve comparações de preços, a unidade de trabalho é o tempo. Assim, a unidade de tempo do valor precisa ser convertida em uma unidade monetária, para a qual o esquema de medição de valor baseado na nova interpretação da teoria do valor-trabalho é uma solução possível. Uma cadeia de valor global é uma forma de divisão integrada do trabalho, implicando uma dupla dimensão (países x indústrias). Para representá-lo, as ferramentas mais adequadas são as tabelas de entradas-saídas multirregionais. Aqui, usamos essas tabelas detalhadas de fluxos de mercadorias com medições de valores contidos nas mercadorias para estimar os fluxos internacionais de valor e, finalmente, comparando estes últimos com os fluxos de moeda, os valores de troca desigual.

Neste quadro alternativo, avaliamos assim as quantidades de valores internacionais recém-criados nos diferentes setores de cada país, usando a expressão da taxa de câmbio em paridade do poder de compra para refletir a participação do produto de um país na produção mundial e reduzir o impacto das flutuações da taxa de câmbio real. Calculamos então a diferença entre os valores internacionais recém-criados por cada setor econômico de cada país e os preços no mercado mundial. No total, graças a uma matriz de comércio mundial construída a partir de tabelas de insumo-produto internacionais, para cada setor dos dois países, obtemos os valores das transferências de ou para outras atividades econômicas registradas, transferindo efetivamente os valores líquidos, ou seja, o extensão da troca desigual. Levando em conta os dados disponíveis, nossos cálculos só puderam ser realizados para o período 1995 e 2014, para 55 setores econômicos e para 43 países, incluindo os Estados Unidos e a China. Se nos concentrarmos nestes dois últimos países, cujas relações nos interessam neste artigo, os resultados que obtemos com este segundo método confirmam aqueles previamente obtidos graças ao primeiro método: houve de fato uma desigualdade no comércio sino-americano durante o período 1995-2014 e, no total, as transferências de valores internacionais ocorreram em grande parte para o benefício dos Estados Unidos. Expressa em dólares correntes, o montante dessa "redistribuição", no final do período (2014), era próximo a US $ 100 bilhões, ou quase 0,5% do valor adicionado norte-americano. 

A erosão da vantagem americana

Os resultados das estimativas de nosso segundo método também mostram é que os Estados Unidos (que detém a hegemonia mundial) estão encontrando cada vez mais dificuldades para manter sua vantagem e superar essa competição e, portanto, arcar com todas as implicações do livre comércio para o qual eles uma vez definiram as regras, para seu benefício. De fato, a China conseguiu reduzir significativamente a importância dessa troca desigual, reduzindo gradativamente a transferência de riqueza em seu prejuízo: de -3,7% para -0,9% do seu próprio valor adicionado entre 1995 e 2014. De 50 horas de trabalho chinês por uma hora de trabalho americano que trocava em 1995, passou para apenas sete em 2014. 

Somado a isso, as análises setoriais que podem ser extraídas da aplicação de nosso segundo método para calcular o comércio desigual são muito esclarecedoras. Elas mostram que, embora 43 dos 55 setores de atividade considerados por nosso estudo, entre 1995 e 2014, (ou seja, 78% deles) evidenciem transferências de valores dirigidos da China para os Estados Unidos (os mais significativos sendo o setor têxtil , vestuário e marroquinaria e móveis e insumos), outros 12 setores econômicos estão na origem das transferências de valores na direção oposta, ou seja, operando em detrimento dos Estados Unidos. Entre essas últimas atividade, e para em 2014, destacam-se os produtos de informática, eletrônicos e ópticos (com US$ 6,9 bilhões transferidos dos Estados Unidos para a China), agricultura e pecuária (US$ 3,1 bilhões), veículos motorizados, reboques e semirreboques (US$ 1,1 bilhão) ou ainda produtos farmacêuticos básicos e preparações farmacêuticas (US$ 422 milhões). 

O primeiro desses setores engloba um dos principais eixos da ofensiva lançada por Donald Trump o contra a China e contra os gigantes transnacionais americanos do "globalismo", especialmente aqueles que atuam na área das novas tecnologias de informação e comunicação, que ele critica por terem se deslocalizadas para a China e que ele tenta fazê-las retornar para os EUA. Se costuma considerar o presidente Trump um “louco”, esquecendo que ele é o produto e o representante eminente de uma das frações das altas finanças que atualmente dominam a economia americana: a fração “continentalista”, oposta àquela, mais poderosa ainda, dos "globalistas", encarnados pelo establishmen do Partido Democrata.[10] O segundo setor, o automobilístico, um dos pilares da economia americana, está fortemente abalado (e foi objeto de vários “resgates”) desde a crise de 2008. O terceiro setor, a agricultura e a pecuária, é um dos que mais sofreram duras retaliações chinesas, na forma de taxas alfandegárias impostas aos produtos agrícolas importados dos EUA (principalmente de estados grandes produtores de produtos agrícolas e que votam em Donald Trump nas eleições presidenciais, como Kansas, por exemplo). Essas restrições aumentaram a desvantagem americana. O quarto setor mencionado, entre aqueles em que os Estados Unidos têm as maiores fraquezas, produtos farmacêuticos básicos e insumos para manipulação farmacêutica, revelou recentemente e dolorosamente sua importância estratégica absolutamente vital durante a pandemia da covid19. Nessas condições, não se pode perguntar se o lançamento de uma guerra comercial não constituiria também uma tentativa dos EUA limitar as transferências de valores desses setores fundamentais pela China?

O desafio à hegemonia global  

Para além dos discursos retóricos dos fóruns políticos e das negociações diplomáticas decorativas, as questões econômicas que aqui nos preocupam são muito complexas. Diversos fatores imbricados explicam a tendência de queda observada na razão das trocas de trabalho incluídas no comércio bilateral, entre as quais as mais influentes, entre outras, estão, sem dúvida, as flutuações nas taxas de câmbio e as respectivas dinâmicas de produtividade que refletem, em particular, as mudanças nas diferenças produtivas e tecnológicas entre os dois países. 

O crescimento exponencial das exportações chinesas nos últimos 30 anos foi efetuado sobre a base de uma industrialização bem-sucedida (mas longa e difícil) e de um controle rigoroso da abertura ao sistema mundial, integrado no quadro de uma "estratégia de desenvolvimento" controlado do início ao fim.[11] É por isso que o conteúdo das exportações tem sido capaz de se modificar de modo a envolver, aos poucos, produções cada vez mais elaboradas, a ponto que hoje, bens e serviços de alto padrão. É por isso que o conteúdo das exportações pôde ser modificado, pouco a pouco, para que incorporasse produções cada vez mais elaboradas, a ponto de hoje bens e serviços de alta tecnologia representarem mais da metade do valor total das mercadorias exportado pela China. Graças às inovações tecnológicas realizadas em todas as áreas (incluindo robótica, energia nuclear, espaço), cada vez mais dominadas a nível nacional, as estruturas produtivas do país puderam evoluir de made in China para made by China. Ao longo de várias décadas, a taxa de crescimento da produtividade do trabalho (que se acelerou, em média, de 4,31% na década de 1980 para 7,28% na década de 1990, 11,72% nos anos 2000 e ainda 14,12% em 2010) permitiu acompanhar o aumento muito sustentado dos salários industriais (em termos reais), sem que o peso do “custo do trabalho” chinês em relação aos concorrentes do Sul (Coreia do Sul, México, Turquia, etc.) deteriorasse a competitividade das empresas nacionais, nem mesmo suas margens de lucro. As exportações – e os investimentos estrangeiros diretos, já que mais da metade dessas mesmas exportações são realizadas por transnacionais estrangeiras com sede na China –, pelo contrário, desempenham atualmente um papel coadjuvante no desenvolvimento do país. 

As guerras cambiais e comerciais invariavelmente andam juntas. Além do que, a guerra comercial contra a China foi lançada pelo governo estadunidense num contexto pré-existente onde, durante décadas, os Estados Unidos exerciam pressões extremamente fortes, por meio de sua moeda nacional (que é também a moeda de reserva internacional) em todas as demais economias do mundo. Com o objetivo de tentar melhorar a competitividade dos preços das exportações de um ou de outro dos dois países, a espiral descendente à fraqueza do dólar ou do yuan acelerou-se recentemente quando as autoridades monetárias chinesas reagiram às sanções norte-americanas permitindo sua moeda nacional se depreciar. Assim, o yuan foi "desvalorizado" em agosto de 2019. Mas era ele realmente desvalorizado antes disso? 

O boom das exportações, no qual o "modelo" de crescimento da China se baseou em parte (apenas em parte), cristalizou um importante ponto de tensão nas relações internacionais. O renminbi, cuja unidade monetária é o yuan, há muito estaria claramente desvalorizado, de acordo com a mídia nos Estados Unidos e em outros lugares. Essa suposta desvalorização estaria na origem da piora dos déficits comerciais dos Estados Unidos, pois as mercadorias chinesas exportadas, já muito baratas, teriam se tornado ainda mais competitivas nos mercados mundiais mediante um yuan mantido artificialmente depreciado. Daí a pressão redobrada de Washington no sentido da valorização da moeda chinesa frente ao dólar que levou, apesar da relutância e resistência de Pequim, às apreciações de 2005 e 2012: entre essas duas datas, ou seja, entre o momento em que as autoridades monetárias chinesas decidiram deixar de atrelar as variações de sua moeda nacional ao dólar (julho de 2005) e o da última apreciação (abril de 2012), o valor real do yuan valorizou 32% em relação ao dólar. 

Os debates entre economistas sobre o "valor justo" das moedas são controversos. No entanto, notamos que, entre os critérios discutidos, é sobretudo a relação entre o saldo em conta corrente e o PIB que é mais utilizada pelos diferentes consultores dos governos dos Estados Unidos (sob os presidentes Trump como Obama). A referência utilizada para definir a chamada taxa de câmbio de “equilíbrio” seria a razão entre o superávit ou déficit do balanço de pagamentos corrente e o PIB entre +/- 3 ou 4%. Se aplicarmos esse critério ao caso da China, dada a importância de suas relações bilaterais com os Estados Unidos, vemos que a relação chinesa caiu de mais de 10,6%, em 2007, para menos de 2,8% em 2011 e apenas 1,4% em 2012. E este critério continuou a ser cumprido desde então, situando-se um pouco acima de 3,5%, na “janela de oportunidade” dos EUA. Assim, no início da década de 2010, a China conseguiu reduzir a razão entre o saldo da conta corrente e o PIB a um nível considerado "razoável", ou seja, compatível com a taxa de câmbio do yuan em relação ao dólar. A participação das exportações no PIB está sob controle: depois de disparar para mais de 35% em meados da década de 2000, caiu abaixo de 20%, ou 10 pontos do PIB abaixo da média mundial (30% nos últimos dez anos). Na China, a relação exportações / PIB de menos de 20% é, agora, inferior ao da OCDE (28%) e ainda inferior ao da área do euro (45%). É também esse controle sobre o grau de abertura que garantiu à China condições relativamente mais estáveis em termos de taxas de câmbio (e taxas de inflação) do que em outros países. 

Consequentemente, a "desvalorização" do yuan não teria sido tão óbvia como foi dito – ao contrário da deterioração dos termos de troca da China, que é muito real e geralmente ignorada – quando nos referimos à "bentchmark" mais usada pela administração estadunidense. No entanto, isso não impediu os Estados Unidos, apesar dos gigantescos desequilíbrios gêmeos (déficits orçamentários e déficits comerciais) que caracterizam sua economia, de buscar o que muitos observadores chamaram de "guerra cambial", por meio da depreciação do dólar no mercado de câmbio estrangeiro, e de tentarem impor a Pequim os termos do que parece ser uma “capitulação”, cuja implicação, entre outras, é a desvalorização das reservas em dólares detidas pelas autoridades monetárias chinesas.[12] Mas são estes últimos que são acusados de endurecer esta guerra comercial para transformá-la em uma guerra cambial. 

Será porque a China conseguiu implantar um projeto de desenvolvimento não financeiro e não bélico, autônomo, eficaz e contestador do bloco de poder das altas finanças estadunidenses que, alimentado por capital fictício, os Estados Unidos oferece ao mundo suas crises e suas guerras? 

A hipótese que, portanto, formularemos é que, somada a uma guerra cambial que a precedeu, a guerra comercial lançada por Washington contra Pequim, no marco da nova “Guerra Fria” entre eles, poderia ser interpretada como uma tentativa do governo Trump de conter a deterioração lenta e constante da vantagem que os Estados Unidos conseguiram extrair de seu comércio com a China ao longo de (pelo menos) quatro décadas e, ao mesmo tempo, para manter sua hegemonia decadente. A observação que estabelecemos é que a China certamente angariou receitas dos superávits comerciais bilaterais, mas que esses ganhos foram compensados pelo fato, destacado pelos cálculos que medem a desigualdade comercial bilateral, de serem principalmente os Estados Unidos os beneficiados desse comércio em termos de tempo de trabalho incorporado na mercadoria comercializada. 

Embora esteja longe de ser certo que a atual guerra comercial de Donald Trump terá sucesso em dobrar a China como a de Ronald Reagan fez com o Japão na década de 1980, o estreito entrelaçamento comercial e monetário das duas maiores economias do mundo (uma superpotência em declínio, a outra emergente) apresenta riscos extremamente preocupantes para os Estados Unidos, bem como para a própria economia internacional. De fato, todos sabem que grande parte dos dólares arrecadados pela China com seus superávits comerciais voltam aos EUA na forma de compras maciças pelas autoridades monetárias chinesas de títulos do Tesouro emitidos pelos Estados Unidos com o objetivo de financiar seus próprios déficits comerciais. 

Portanto, vamos nos voltar para Donald J. Trump, com o devido respeito e cortesia, para perguntar simplesmente: "Senhor presidente, se tivermos que remover nossas máscaras por um breve momento, qual é então a identidade do verdadeiro 'ladrão' em tudo isso?"

Notas:

[1] A análise de Marx é infinitamente mais complexa do que a breve apresentação que fazemos aqui, limitados como estamos pelo espaço. Para um relato mais completo de seu pensamento sobre a questão em questão, convidamos o leitor a consultar, entre outros,: Rémy Herrera, “La Colonisation vue par Marx et Engels: évolutions (et limites) d’une réflexion commune,” em Le Colonialisme, Karl Marx e Friedrich Engels (Paris: Éditions Critiques, 2018), 7–73. Vamos apenas salientar que algumas das passagens mais importantes (e difíceis) da interpretação de Marx sobre os efeitos do comércio internacional podem ser encontradas em: Karl Marx, Le Capital, vol. 1, seção 8, cap. 31 (Paris: Éditions sociales, 1974), 195–201; Karl Marx, Le Capital, vol. 3, seção 4, cap. 20 (Paris: Éditions sociales, 1974), 341–42; Karl Marx, Fondements de la critique de l’économie politique e Matériaux pour l'"économie", em Œuvres – Économie II (Paris: Gallimard, 1968), 251, 489–97; e Karl Marx, Théories sur la plus-value (Paris: Éditions sociales, 1975), 636. 2 Veja Samir Amin (Accumulation on a World Scale, Nova Iorque: Monthly Review Press, 1974), e muitos outros, após Arghiri Emmanuel (Unequal Exchange, Nueva York: Monthly Review Press, 1972).

[2] Leia, entre outros, os artigos que Marx dedicou à colonização da Índia em: Karl Marx e Friedrich Engels (2018), Le Colonialisme, Paris: Éditions Critiques.

[3] Veja o discurso de Marx "Sobre a Questão do Livre Comércio" (9 de janeiro de 1848).

[4] Conforme os tweets presidenciais ou as declarações do vice-operativo Mike Pence, do conselheiro Peter Navarro.

[5] Leia o discurso intitulado “Remarks by President Trup at Signing of the U.S.-China Phase One Trade Agreement” publicado em 15 de janeiro de 2020, disponível em: whitehouse.gov.

[6] Sobre este tópico, ver: Bill Gibson (1980), “Unequal Exchange: Theoretical Issues and Empirical Findings”, Review of Radical Political Economics, vol. 12, nº 3, pág. 15-35; Michael Webber e S.P.H. Foot (1984), “A medição da troca desigual”, Environment and Planning A: Economy and Space, vol. Akiko Nakajima e Hirochi Izumi (1995), “Desenvolvimento econômico e troca desigual entre nações: análise dos EUA, Japão e Coreia do Sul”, Review of Radical Political Economics, vol. 27, n° 3, p. o Zhixuan Feng (2018), “Valor internacional, preço de produção internacional e troca desigual”, em Z. Feng et al. (eds.), Crescimento econômico e transição da estrutura industrial no leste da Ásia, Singapura: Springer.

[7] Zhiming Long, Rémy Herrera e Zhixuan Feng, “Transformando a perda de alguém em vitória? A Guerra Comercial dos EUA Contra a China em Perspectiva” (mimeógrafo, CNRS—UMR8174, Centre d’Économie de la Sorbonne, Paris; Universidade de Tsinghua, Pequim; Universidade de Nankai, Tianjin, 2020), 17.

[8] Veja em particular: Duncan Foley (2000), “Desenvolvimentos recentes na teoria do valor-trabalho,” Review of Radical Political Economics, vol. 32, n° 1, p.1-39; e Jie Meng (2015), “Dois tipos de MELT [Expressão Monetária por Tempo de Trabalho] e suas determinações: notas críticas sobre Moseley e a Nova Interpretação,” Review of Radical Political Economics, vol. 47, n° 2, p. 309-316. Este segundo método, como alternativa ao primeiro, é inspirado no modelo proposto por Andrea Ricci em “Unequal Exchange in the Age of Globalization,” Review of Radical Political Economics 51, no. 2 (2019), 225–45.

[9] Este segundo método, alternativo ao primeiro, é inspirado no modelo proposto por: Andrea Ricci (2019), “Unequal Exchange in the Age of Globalization,” Review of Radical Political Economics, vol. 51, n° 2, p. 225-245.

[10] Wim Dierckxsens e Andrés Piqueras, 200 Years of Marx: Capitalism in Decline (Hong Kong: International Crisis Observatory, Our Global U, 2019).

[11] Rémy Herrera e Zhiming Long, “The Enigma of China’s Growth,” Monthly Review 70, no. 7 (dezembro de 2018): 52–62; Rémy Herrera, Zhiming Long e Tony Andréani, “Sobre a natureza do sistema econômico chinês”, Monthly Review 70, no. 5 (outubro de 2018): 32–43.

[12] Veja: Martin Wolf (2010), Financial Times, 12 de outubro de 2010, disponível em: http://www.ft.com/cms/s /0/fe45eeb2-d644-11df81f0-00144feabdc0.html.

Zhiming Long é professor associado da Universidade de Tsinghua, em Pequim. Zhixuan Feng é professor assistente na Universidade Nankai em Tianjin. Bangxi Li é professor associado da Universidade de Tsinghua, em Pequim. Rémy Herrera é pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica em Paris.

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