David Harvey
A direita tem se apropriado do conceito de liberdade como algo próprio, utilizando-o como arma na repressão da luta de classes contra os socialistas. “A submissão daquilo que é individual para controle do Estado, impostos pelo socialismo ou comunismo, é algo a ser evitado”, eles diziam, a qualquer custo.
Minha resposta foi no sentido de que não devemos desistir da concepção de liberdade individual por ser parte do que é, de fato, o projeto socialista de emancipação. A conquista de libertação e liberdade é uma ambição central desses projetos emancipatórios. No entanto, demanda-se a construção coletiva da sociedade para que haja essas conquistas, de modo que cada pessoa tenha oportunidades e possibilidades adequadas de vida, e por fim, que cada um possa realizar com suas devidas potencialidades.
Marx e a liberdade
Marx tinha algumas coisas bem interessantes a dizer sobre esse assunto. Uma dessas é: "o reino da liberdade só começa, de fato, quando o domínio da necessidade é deixado para trás." A liberdade é insignificante se você não tem o que comer, se o acesso a um sistema de saúde adequado lhe é negado ou se negam coisas como o direito à moradia, ao transporte, à educação, e coisas do tipo. O papel do socialismo é de garantir essas necessidades básicas para que as pessoas sejam livres em poder fazer exatamente o que querem.
O ponto final da transição socialista é um mundo cujas capacidades e poderes individuais sejam inteiramente libertos do querer, das necessidades, e de outras restrições político-sociais. Ao invés de permitir que a direita monopolize a noção de liberdade individual, precisamos resgatar a ideia de liberdade através do socialismo.
No entanto, Marx já apontava que a liberdade é uma faca de dois gumes. Os trabalhadores em uma sociedade capitalista, segundo ele, são livres em um duplo-sentido. Eles podem oferecer sua força de trabalho livremente dentro do mercado a quem quer que seja, assim como podem oferecer quaisquer condições de contrato, sendo livres também para negociar.
Mas, ao mesmo tempo, estão presos, pois foram “libertos” de qualquer forma de controle e de acesso aos meios de produção. Portanto, para que possa viver, o trabalhador entrega a sua força de trabalho ao capitalista, constituindo uma divisória em sua liberdade.
Para Marx, essa é uma contradição central da liberdade sob o capitalismo. No capítulo “O Dia de Trabalho” em O Capital, ele coloca da seguinte forma: o capitalista é livre para dizer ao trabalhador: ‘’eu quero emprega-lo pagando o menos possível e para realizar, precisamente, em maior quantidade de horas, o trabalho que eu especificar. É isso que eu exijo ao contrata-lo.’’ E o capitalista é livre para fazer isso em uma sociedade mercantil pois, como sabemos, a sociedade mercantil é sobre demandar isso ou aquilo.
Por outro lado, o trabalhador também é livre para dizer, ‘’Você não tem o direito de me fazer trabalhar 14 horas por dia e nem o de fazer o que bem entender com a minha força de trabalho, especialmente quando isso encurta ou põe em risco o meu tempo de vida, minha saúde e meu bem-estar. Só estou apto a realizar um dia de trabalho justo se for com um pagamento diário justo’’.
Dada a natureza da sociedade mercantil, tanto o capitalista quanto o trabalhador estão certos em termos daquilo que exigem. Então, diz Marx, ambos estão igualmente certos perante as leis de trocas que predominam no mercado. Entre direitos iguais, e então ele diz, a força é que decide. Entre o capital e o trabalho, a luta de classes é quem decide essa questão. O resultado está no poder de relação entre capital e trabalho, no qual em algum ponto pode se tornar coercivo e violento.
Uma faca de dois gumes
A ideia de liberdade como uma faca de dois gumes é muito importante para se olhar com mais detalhes. Uma das melhores elaborações sobre isso é um texto de Karl Polanyi. Em seu livro A Grande Transformação, Polanyi diz que há boas e más formas de liberdade.
Dentre as más formas listadas, algumas eram a liberdade de explorar o colega de forma ilimitada; de realizar ganhos desordenados sem consultar a comunidade para tal serviço; de manter as invenções tecnológicas para benefício público; de lucrar com as calamidades públicas ou calamidades naturais que foram induzidas, algumas a partir de serviços de engenharia para benefício privado.
Mas, Polanyi continua, a economia de mercado sob a prosperidade dessas liberdades também produziu liberdades de alto preço: liberdade de consciência, de expressão, de encontro, de associação, de escolher o próprio emprego.
Embora possamos valorizar essas liberdades por si mesmas, elas são, em grande medida, subprodutos da mesma economia que também é responsável pelas liberdades perversas. A resposta de Polanyi a essa dualidade parte de uma leitura curiosa, dada a vigência hegemônica do pensamento neoliberal e a forma como a liberdade nos é apresentada através do poder político existente.
Ele disserta da seguinte maneira: “A passagem da economia de mercado pode se tornar o início de uma era de liberdades sem precedentes.’’ Agora, esse é um fragmento bem chocante — dizer que a liberdade real começa após deixarmos o mercado econômico para trás. Ele continua:
Liberdades jurídicas e reais podem ser feitas de maneiras mais amplas e gerais do que antes. Regulação e controle podem conquistar a liberdade não para poucos, mas para todos — a liberdade não como recurso de privilégios, corrompendo a sua fonte, mas como um direito prescrito, se estendendo para além dos limites estreitos da esfera política na organização íntima da própria sociedade. Assim, serão as velhas liberdades e os direitos cívicos em adição às novas liberdades geradas pelo lazer e pela segurança que a sociedade industrial oferece a todos. Tal sociedade pode propiciar para ser tanto justa quanto livre.
Liberdade sem Justiça
Agora, esta ideia de sociedade baseada em justiça e liberdade, justiça e libertação, me aparenta ter sido a agenda política do movimento estudantil da década de 60, e da então conhecida geração de 68. Houve muita difusão generalizada tanto por justiça quanto por liberdade: liberdade contra a coerção do Estado, liberdade contra a coerção imposta pelo capital corporativo, liberdade contra a coerção mercantil, mas também contendo demandas por justiça social.
A resposta politica do capitalismo na década de 70 foi interessante. Os trabalhos que surgiram através dessas disputas foram nesses termos: “Nós concedemos liberdades a você trabalhador, ainda que com algumas ressalvas, mas você esquece a justiça social.”
Ceder as liberdades foi algo circunscrito. Para maioria significava a liberdade de escolha no mercado. O livre-mercado e a liberdade sem regulação estatal foram as respostas para essa questão. Mas com a justiça social esquecida. Isso seria o acordo da competição do mercado, na qual supostamente era tão organizada para assegurar que todos recebam o que merecem. A consequência, no entanto, foi o desencadear das muitas más liberdades (e.g. a exploração dos outros) em nome das liberdades virtuosas.
Esta virada foi algo que Polanyi claramente reconheceu. O caminho para o futuro que ele previa é bloqueado por um obstáculo moral, observa ele, e o obstáculo moral foi algo que ele chamou de “utopismo liberal”. Eu creio que ainda encaramos os problemas colocados por essa utopismo liberal. É uma ideologia que perpassa na mídia e nos discursos políticos.
O utopismo liberal do Partido Democrata é um dos empecilhos para a conquista da liberdade real. "Planejamento e controle",’ Polanyi escreveu, "estão sendo colocados como uma privação da liberdade. A livre iniciativa e a propriedade privada se declaram como essências da liberdade". Foi sobre essa base que os principais ideólogos do neoliberalismo se construíram.
Para além do mercado
Para mim, esse é um dos principais problemas do nosso tempo. Nós vamos superar as liberdades cujas limitações são impostas pelo mercado e pela regulação de nossas vidas através da lei da oferta e demanda, ou iremos aceitar, como Margaret Thatcher coloca, que não há alternativa? Nos tornamos livres do controle estatal, mas escravos do mercado. Para ela não há alternativa, pois não há outras formas de liberdade. É isso que a direita prega e é o que muitas pessoas tem acreditado.
Este é o paradoxo de nossa situação atual: em nome da liberdade, nós aderimos efetivamente uma ideologia utópica liberal que é uma barreira para a conquista da liberdade real. Eu não acho que é possível um mundo de liberdade quando alguém que quer ter uma boa educação precisa pagar uma imensa quantia de dinheiro para isso e acaba tendo dívidas estudantis ao longo do caminho para o seu futuro.
Na Inglaterra, quem garantiu uma grande proporção de moradias na década de 60 foi o setor público; eram moradias sociais. Durante minha juventude, aquelas moradias sociais eram garantias de necessidade básica por um preço popular. Então veio a Margaret Thatcher e privatizou tudo, dizendo basicamente: “Vocês serão ainda mais livres se conquistarem sua própria propriedade e vocês podem inclusive se tornar parte da democracia de cidadãos proprietários.”
E assim, ao invés de 60% das moradias serem parte do setor público, de repente nos deparamos com a situação em que cerca de 20%, — ou talvez menos,— das moradias são públicas. Moradia se torna mercadoria, e mercadoria que posteriormente se torna parte das atividades especulativas. Na medida em que a moradia se torna um veículo de especulação, o preço da propriedade sobe, ocasionando também o aumento no custo da habitação sem sequer melhorar a condição de moradia.
Estamos construindo cidades e casas de tal modo que providenciamos a liberdade para as classes altas ao mesmo tempo que se restringe a liberdade para o resto da população. Creio que isso significa o famoso comentário de Marx: o domínio da necessidade, na verdade, precisa ser superado de modo que o reino da liberdade seja conquistado.
O reino da liberdade
É desta forma que a liberdade mercantil limita as possibilidades, e através desse ponto de vista, eu acredito que a perspectiva socialista é fazer o que Polanyi sugere; ou seja, nós coletivizarmos a questão do acesso à liberdade, do acesso à moradia. Nós revertemos o fato de antes ser mercantilizado, para se tornar de domínio público. Moradia em domínio público é o nosso slogan. Essa é uma das ideias básicas do socialismo no sistema contemporâneo — de transformar os itens essenciais em domínio público.
Com frequência se diz que para atingir o socialismo, precisamos deixar a nossa individualidade e abdicar de nossos bens. De certa forma, sim, pode ser verdade; mas o ponto é, como Polanyi insistiu, a maior liberdade a ser conquistada é superar as realidades cruéis do individualismo imposto pelo livre-mercado.
Li Marx dizendo que a tarefa é de maximizar o reino da liberdade individual, mas isso só pode ocorrer quando conseguirmos lidar com o domínio da necessidade. A tarefa de uma sociedade socialista não é a de regular tudo o que está nela; de forma alguma. A tarefa da sociedade socialista é a de garantir que todas as necessidades básicas sejam atendidas — providenciadas gratuitamente — para que as pessoas possam fazer exatamente o que querem e quando querem.
Se você perguntar agora, para qualquer um, “quanto você tem de tempo livre?” a resposta típica é “eu quase não tenho tempo livre. É sempre gasto com isto, aquilo e etc.”. Se a liberdade real está um mundo em que temos tempo livre para fazer o que quisermos, então o projeto de emancipação socialista propõe que isso seja uma missão política central. É algo que podemos e devemos trabalhar no horizonte.
Este é um trecho do novo livro de David Harvey The Anti-Capitalist Chronicles, publicada pela Pluto Press.
Colaborador
David Harvey é um ilustre professor de antropologia e geografia no Centro de Pós-Graduação da City University of New York. Seus últimos livros são The Ways of the World e The Anti-Capitalist Chronicles.
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