Para economistas, ociosidade da economia e reservas internacionais evitariam o aumento da inflação
Maurício Furtado e Ricardo Barboza
Folha de S.Paulo
Maurício Furtado e Ricardo Barboza
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O presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto. - Pedro Ladeira/Folhapress |
“Neste momento o Banco Central é passageiro, o piloto é o fiscal”, disse recentemente Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central. Ainda que não tenha sido a sua intenção, a declaração gerou alguns burburinhos sobre uma possível situação de dominância fiscal no Brasil.
Vira e mexe algum economista ressuscita o tema da dominância fiscal por aqui. Em 2002, ninguém menos do que Olivier Blanchard, um dos maiores macroeconomistas do planeta e ex-economista chefe do FMI, fez um artigo afirmando que o Brasil atravessava, naquele período, uma situação de dominância fiscal.
Em 2016, diversos economistas bastante influentes no debate econômico nacional, como André Lara Resende e Monica de Bolle, afirmaram que o país estava, naquele momento, sob dominância fiscal.
Atualmente, não é raro encontrar análises, relatórios ou artigos de opinião que mencionam, de forma explícita ou enrustida, os riscos de dominância fiscal para a economia brasileira. Uma busca rápida no Google mostra diversas citações (algumas "freestyle") sobre o tema só nas últimas semanas.
Sem dúvida, há um denominador comum nisso tudo: uma fragilidade fiscal latente no país, que se manifestou fortemente em 2002, e que voltou à tona nos últimos anos, a partir da piora observada nas contas públicas, seja em termos de fluxo (déficit) ou de estoque (dívida).
Há, contudo, problemas nesse debate quase permanente. Primeiro, pois nem sempre é claro o que se quer dizer com dominância fiscal, mesmo entre alguns de seus proponentes. Segundo, porque muito pouco se discute sobre as particularidades da economia brasileira, que modificam a discussão de curto prazo sobre dominância fiscal no Brasil. Terceiro, porque quase nada se fala sobre o que poderia ser feito para evitar que esse monstro finalmente dê as caras no país — como sugerem as sistemáticas ameaças. Neste artigo, tentaremos endereçar estes três problemas.
Como o assunto é delicado, e usualmente debatido com modelos econômicos pouco triviais, tentaremos aqui expor a nossa visão sobre a questão da forma mais didática possível. Vamos começar explicando o que significa dominância fiscal.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que governos trabalham com uma “restrição orçamentária”. Todo ano, o governo arrecada tributos, executa suas despesas, paga juros sobre a dívida passada e emite nova dívida. Quando o pagamento de juros e os gastos públicos são superiores à arrecadação, o governo emite nova dívida, aumentando o estoque da dívida pública.
Para que a dinâmica da dívida pública seja sustentável — isto é, para que o estoque da dívida pública não tenda a crescer indefinidamente em relação ao PIB —, o governo precisa adotar políticas que tenham por objetivo estabilizá-la, respeitando sua “restrição orçamentária”. Usualmente, adotam-se políticas fiscais - de controle dos gastos públicos primários e de tributação — para controlar a dívida.
Acontece, contudo, que a taxa de juros afeta as despesas do governo, segundo mostra a restrição orçamentária, o que gera uma relação umbilical entre a política monetária e a política fiscal. Sim, acredite leitor, essas duas políticas não são independentes, como muitas vezes se supõe.
Em condições normais, as economias (grupo que inclui a economia brasileira) vivem no chamado mundo de dominância monetária. Nesse mundo, a política monetária fica responsável pela estabilização da economia, combatendo os diversos choques que perturbam o sistema econômico, fazendo-o retornar para o seu equilíbrio (isto é, com PIB no potencial e inflação na meta).
Acontece que como a política monetária é livre para estabilizar a economia, e a política monetária afeta a situação fiscal, então a política fiscal fica “subordinada” à política monetária e precisa cuidar da cozinha fiscal, estabilizando a dívida pública, de modo que essa não saia do controle. Nesse mundo de dominância monetária, diz-se que a política monetária é ativa e a política fiscal é passiva.
Em termos concretos, a passividade da política fiscal significa que governos administram o seu superávit primário a depender da dinâmica da dívida pública. Por exemplo, aumentam o superávit primário se a dívida pública aumenta. Nesse mundo, os agentes econômicos privados acreditam que pioras correntes da dívida pública (por eles detida) serão contrabalançadas pela geração de superávits primários futuros. Nesse caso, a política fiscal está ancorada.
O problema acontece quando a política fiscal desancora, isto é, quando o governo deixa de utilizar a política fiscal para estabilizar a dívida pública e os agentes econômicos deixam de acreditar que o governo será capaz de gerar os superávits primários futuros requeridos para estabilizá-la. Nesse caso, como a política fiscal deixou de ser passiva, entra-se em regime de dominância fiscal, e a política monetária não pode mais dar-se ao luxo de ignorar o que se passa com a dívida pública no manejo da taxa de juros.
Em regime de dominância fiscal — ao contrário do que ocorre sob dominância monetária — é o valor real da dívida pública que se ajusta ao fluxo esperado de superávits primários futuros. Se a trajetória esperada de superávits primários for insuficiente para estabilizar a dívida pública, o valor real da dívida se reduz e a estabilidade da dívida é atingida por esse mecanismo de ajuste patrimonial. Nessa situação, ajustar o valor real da dívida, em bom português, significa fazer a inflação subir (e a taxa de juros real ex-post cair).
Podemos então dizer que dominância fiscal é uma situação na qual um governo, incapaz de servir sua dívida, levaria a inflação a fazer o serviço que ele não faz, isto é, adequar o valor da dívida àquilo que consegue realizar do ponto de vista de seus gastos e receitas.
Mas como o valor real da dívida se ajusta e faz o trabalho que o governo não foi capaz de fazer? Parece mágica, mas não é. Todos precisamos entender os mecanismos que fariam a inflação estranhamente aparecer para lidar com os problemas fiscais. Sem explicitar os mecanismos, o leitor pode ter a sensação de que a inflação surgiria “do nada”, o que não é o caso.
Em economias fechadas — em que não há interação econômica com os demais países do mundo —, a inflação apareceria porque a desancoragem fiscal faria com que os agentes econômicos migrassem de títulos da dívida pública para ativos reais, como bens de capital, bens duráveis e imóveis, o que pressionaria a demanda agregada, ocasionando inflação.
Já em economias abertas — que interagem economicamente com os demais países do mundo —, os agentes migrariam para ativos reais e para ativos externos, o que, além do aumento da demanda agregada, também teria como consequência uma depreciação da taxa de câmbio, ocasionando, pelas duas vias, um aumento da inflação.
Sem dúvida, há um denominador comum nisso tudo: uma fragilidade fiscal latente no país, que se manifestou fortemente em 2002, e que voltou à tona nos últimos anos, a partir da piora observada nas contas públicas, seja em termos de fluxo (déficit) ou de estoque (dívida).
Há, contudo, problemas nesse debate quase permanente. Primeiro, pois nem sempre é claro o que se quer dizer com dominância fiscal, mesmo entre alguns de seus proponentes. Segundo, porque muito pouco se discute sobre as particularidades da economia brasileira, que modificam a discussão de curto prazo sobre dominância fiscal no Brasil. Terceiro, porque quase nada se fala sobre o que poderia ser feito para evitar que esse monstro finalmente dê as caras no país — como sugerem as sistemáticas ameaças. Neste artigo, tentaremos endereçar estes três problemas.
Como o assunto é delicado, e usualmente debatido com modelos econômicos pouco triviais, tentaremos aqui expor a nossa visão sobre a questão da forma mais didática possível. Vamos começar explicando o que significa dominância fiscal.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que governos trabalham com uma “restrição orçamentária”. Todo ano, o governo arrecada tributos, executa suas despesas, paga juros sobre a dívida passada e emite nova dívida. Quando o pagamento de juros e os gastos públicos são superiores à arrecadação, o governo emite nova dívida, aumentando o estoque da dívida pública.
Para que a dinâmica da dívida pública seja sustentável — isto é, para que o estoque da dívida pública não tenda a crescer indefinidamente em relação ao PIB —, o governo precisa adotar políticas que tenham por objetivo estabilizá-la, respeitando sua “restrição orçamentária”. Usualmente, adotam-se políticas fiscais - de controle dos gastos públicos primários e de tributação — para controlar a dívida.
Acontece, contudo, que a taxa de juros afeta as despesas do governo, segundo mostra a restrição orçamentária, o que gera uma relação umbilical entre a política monetária e a política fiscal. Sim, acredite leitor, essas duas políticas não são independentes, como muitas vezes se supõe.
Em condições normais, as economias (grupo que inclui a economia brasileira) vivem no chamado mundo de dominância monetária. Nesse mundo, a política monetária fica responsável pela estabilização da economia, combatendo os diversos choques que perturbam o sistema econômico, fazendo-o retornar para o seu equilíbrio (isto é, com PIB no potencial e inflação na meta).
Acontece que como a política monetária é livre para estabilizar a economia, e a política monetária afeta a situação fiscal, então a política fiscal fica “subordinada” à política monetária e precisa cuidar da cozinha fiscal, estabilizando a dívida pública, de modo que essa não saia do controle. Nesse mundo de dominância monetária, diz-se que a política monetária é ativa e a política fiscal é passiva.
Em termos concretos, a passividade da política fiscal significa que governos administram o seu superávit primário a depender da dinâmica da dívida pública. Por exemplo, aumentam o superávit primário se a dívida pública aumenta. Nesse mundo, os agentes econômicos privados acreditam que pioras correntes da dívida pública (por eles detida) serão contrabalançadas pela geração de superávits primários futuros. Nesse caso, a política fiscal está ancorada.
O problema acontece quando a política fiscal desancora, isto é, quando o governo deixa de utilizar a política fiscal para estabilizar a dívida pública e os agentes econômicos deixam de acreditar que o governo será capaz de gerar os superávits primários futuros requeridos para estabilizá-la. Nesse caso, como a política fiscal deixou de ser passiva, entra-se em regime de dominância fiscal, e a política monetária não pode mais dar-se ao luxo de ignorar o que se passa com a dívida pública no manejo da taxa de juros.
Em regime de dominância fiscal — ao contrário do que ocorre sob dominância monetária — é o valor real da dívida pública que se ajusta ao fluxo esperado de superávits primários futuros. Se a trajetória esperada de superávits primários for insuficiente para estabilizar a dívida pública, o valor real da dívida se reduz e a estabilidade da dívida é atingida por esse mecanismo de ajuste patrimonial. Nessa situação, ajustar o valor real da dívida, em bom português, significa fazer a inflação subir (e a taxa de juros real ex-post cair).
Podemos então dizer que dominância fiscal é uma situação na qual um governo, incapaz de servir sua dívida, levaria a inflação a fazer o serviço que ele não faz, isto é, adequar o valor da dívida àquilo que consegue realizar do ponto de vista de seus gastos e receitas.
Mas como o valor real da dívida se ajusta e faz o trabalho que o governo não foi capaz de fazer? Parece mágica, mas não é. Todos precisamos entender os mecanismos que fariam a inflação estranhamente aparecer para lidar com os problemas fiscais. Sem explicitar os mecanismos, o leitor pode ter a sensação de que a inflação surgiria “do nada”, o que não é o caso.
Em economias fechadas — em que não há interação econômica com os demais países do mundo —, a inflação apareceria porque a desancoragem fiscal faria com que os agentes econômicos migrassem de títulos da dívida pública para ativos reais, como bens de capital, bens duráveis e imóveis, o que pressionaria a demanda agregada, ocasionando inflação.
Já em economias abertas — que interagem economicamente com os demais países do mundo —, os agentes migrariam para ativos reais e para ativos externos, o que, além do aumento da demanda agregada, também teria como consequência uma depreciação da taxa de câmbio, ocasionando, pelas duas vias, um aumento da inflação.
É importante frisar que, sob dominância fiscal, a inflação aparece por razões fiscais e isso independe de qualquer ação do Banco Central. É importante ter isso claro, então vamos repetir. É irrelevante falar que o Banco Central não vai deixar a inflação subir e vai aumentar o juro, pois sob dominância fiscal, essa inflação não depende dele. Nessa situação, o piloto é efetivamente o fiscal e o Banco Central se torna passageiro, tal como afirmara (mesmo sem querer) o presidente do Banco Central do Brasil.
Na verdade, como a inflação tem natureza fiscal, se o Banco Central elevar a taxa de juros para combater o aumento dos preços, ele vai piorar as coisas, fazendo a inflação ficar ainda mais alta. Isto porque, juros mais altos pioram a trajetória da dívida pública, requerendo superávits primários mais altos para estabilizá-la.
Como já dissemos antes, se o superávit primário não fizer o trabalho, a inflação terá que subir ainda mais para fazê-lo. É por essa razão que muitas vezes o leitor já ouviu alguns economistas falando que ter o lado fiscal em ordem é uma pré-condição para o Banco Central conseguir fazer o seu trabalho de controle da inflação.
A rigor, por mais paradoxal que pareça, sob dominância fiscal, se o Banco Central não quer que a inflação suba, deveria manter as taxas de juros baixas! Quanto mais reduzidos os juros, menor o serviço da dívida pública e menor seria a inflação requerida para reduzir o valor real da dívida!
Agora que o leitor entende o que significa o conceito de dominância fiscal, vale mencionar algumas interpretações apressadas sobre esse tema que não entendemos como corretas.
Primeiro, em nossa percepção é um erro pensar que dominância fiscal gera hiperinflação. Dominância fiscal gera tão somente a inflação requerida para corroer o valor real da dívida e compatibilizá-la ao fluxo esperado de superávits primários futuros. Para transitar de um regime de dominância fiscal para uma situação hiperinflacionária são necessárias muitas hipóteses adicionais.
Segundo, é um erro achar que não se pode entrar em dominância fiscal quando se tem uma relação dívida/PIB menor do que a observada em outros países (como Japão, Itália etc). Em tese, caso se espere irresponsabilidade fiscal, então isso seria suficiente para entrar em dominância fiscal, mesmo com baixos níveis de dívida.
Terceiro, não é verdade que altos níveis de dívida/PIB resultem necessariamente em dominância fiscal. Se os agentes econômicos acreditam que o governo será capaz de gerar os superávits primários necessários para ancorar as expectativas acerca da trajetória fiscal, o alto nível de endividamento não implica em dominância fiscal. O Japão é o exemplo clássico. Porém muitos países desenvolvidos no pós-pandemia, como os Estados Unidos, irão engrossar a lista dos países altamente endividados, mas com trajetória não-explosiva, e taxas de inflação sob controle.
Feita a discussão anterior sobre o que significa dominância fiscal, podemos tratar um pouco do Brasil, e entender por que cargas d’água a temática da dominância fiscal voltou a ser mencionada no debate econômico nacional. Há razões para o morto insepulcro ter novamente despertado.
A situação fiscal do Brasil é muito ruim: 2020 teve o pior déficit público da história e a dívida pública deve saltar cerca de 20 p.p. Parte dessa piora decorreu, inclusive, do uso ativo da política fiscal para minimizar (corretamente) os efeitos da pandemia. Nessa situação, é bem provável que a relação dívida/PIB ultrapasse 100% do PIB nos próximos anos.
Isso tudo, segundo o modo de pensar que explicamos nesse texto, deveria fazer o superávit primário futuro aumentar. E isso só pode ser feito com menos gastos e/ou aumentando tributos.
Acontece que a despesa pública no Brasil é rígida e, portanto, difícil de cortar. Por outro lado, a carga tributária é alta para um país emergente - o que cria resistências a aumentá-la ainda mais. Além disso, o contexto político é conturbado e reformas podem ser difíceis de aprovar. Como se não bastasse, há pressões para o teto de gasto cair, o que ampliaria ainda mais o gasto (ao invés de reduzi-lo), ou mesmo de criar despesas permanentes por fora do teto (como o tal Renda Cidadã).
É natural, portanto, a deterioração das expectativas fiscais. Ou seja, é nesse contexto que surge a discussão da possibilidade de dominância fiscal no Brasil. Neste ponto, entramos no segundo objetivo do artigo: existem mitigantes pouco destacados no debate público brasileiro, que sugerem que, caso o país mude de regime, a situação de curto prazo pode ser bem menos pior (mas ainda assim ruim) do que à primeira vista se imagina.
Em primeiro lugar, o elevado grau de ociosidade da economia brasileira impõe uma grande dificuldade para que o aumento da demanda cause uma elevação da inflação. Isso significa que parte da conexão entre dominância fiscal e inflação precisa ser qualificada no caso do Brasil. De fato, a migração dos recursos aplicados em títulos públicos para ativos reais teria que ser forte o suficiente para ocupar a grande ociosidade vigente na economia e gerar excesso de demanda, este sim o verdadeiro responsável por um aumento da inflação.
Ademais, mesmo que o excesso de demanda venha a ocorrer, parte do problema fiscal seria minorado pelo aumento da arrecadação (e do superávit primário) como consequência da ocupação da capacidade ociosa da economia, de modo que a inflação requerida para estabilizar a dívida pública seria menor.
Em segundo lugar, a situação externa da economia brasileira é extremamente folgada, o que sugere que a conexão entre dominância fiscal e migração para ativos externos também precisa ser qualificada. De fato, como o Brasil é credor externo líquido devido ao elevado nível de suas reservas internacionais, que se situa próximo a US$ 350 bilhões, desvalorizações cambiais geram ganhos patrimoniais bastante relevantes e melhoram a dívida líquida do setor público.
Portanto, o mecanismo de corrida para ativos externos, que leva a depreciações cambiais, ajuda a situação fiscal no caso do Brasil. Isso significa que o processo de depreciação cambial, decorrente de incertezas fiscais, tende a ser autocontido. Se a depreciação cambial é limitada, os impactos inflacionários, caso ocorram, tendem a ser limitados e transitórios.
O cenário seria outro se o governo brasileiro não fosse credor externo líquido, mas sim devedor externo líquido — como é o caso da Argentina, exemplo muito citado por alguns colegas para tratar do que pode vir a acontecer com a economia brasileira. Nesse caso, a desancoragem fiscal acarretaria uma fuga de capitais, que elevaria a dívida externa em moeda nacional, piorando ainda mais a situação fiscal, desencadeando um ciclo vicioso de fuga de capitais, depreciação cambial e piora fiscal.
Processos dessa natureza acarretam em surto inflacionário e podem culminar na perda de credibilidade da moeda nacional com risco hiperinflacionário. Esse não é, em nossa percepção, o cenário da economia brasileira e o exemplo da Argentina deveria ser evitado.
Em resumo, o risco inflacionário decorrente da desancoragem fiscal existe e deve ser levado a sério pelos responsáveis pela política econômica, mas é bem menos dramático do que sugerem alguns analistas que insistem em comparar a situação do Brasil com a de alguns de nossos vizinhos sul-americanos. Como argumentamos, existem importantes mitigadores no caso brasileiro que raramente são mencionados quando o tema da dominância fiscal vem à tona.
Feitas as qualificações sobre o risco de dominância fiscal no Brasil, é importante identificar quais políticas seriam adequadas ao momento atual do país, para além das medidas pelo lado das despesas primárias, como a manutenção ou a melhora de desenho e credibilidade do teto de gastos ou a reforma administrativa, que todo dia movimentam as páginas dos principais jornais de economia.
A primeira delas diz respeito à condução da política monetária. Se, tal como parece ser a preocupação atual, existe risco de dominância fiscal e, portanto, de um choque inflacionário por razões fiscais, o Banco Central tem que reconhecer o impacto que a política de juros exerce sobre a dinâmica fiscal. Isso significa que o Banco Central tem que praticar juros baixos — a rigor, mais baixos do que praticaria caso não houvesse risco de dominância fiscal. Essa prática reduziria sensivelmente a despesa com juros da dívida pública e melhoraria a trajetória da dívida, ajudando a ancorar a política fiscal.
Além disso, juros mais baixos implicam em um nível de câmbio mais depreciado. Como dissemos anteriormente, como o governo brasileiro é credor externo líquido, depreciações cambiais geram ganhos patrimoniais significativos com as reservas internacionais.
Portanto, ao contrário do discurso atual da autoridade monetária, o risco de dominância fiscal não deve ser utilizado para se justificar uma parada na queda da taxa básica de juros ou em eventual elevação da mesma, mas sim para reforçar a necessidade de praticar juros reduzidos. Como a inflação esperada está abaixo da meta, e a cada ata do Copom ela parece se distanciar ainda mais da meta no horizonte relevante, o Banco Central poderia reduzir a taxa de juros também por causa da situação fiscal. Se o fiscal é mesmo o piloto, o passageiro pode ajudar mais (ou atrapalhar menos) na condução do veículo.
Diga-se de passagem, as projeções de inflação recém divulgadas pelo Banco Central no último Relatório de Inflação, bem como as funções de resposta ao impulso da política monetária sobre a inflação, sugerem que há pelo menos mais 100 bps ("base points", ou 1 p.p.) de espaço de redução da taxa Selic no Brasil, de modo a fazer a inflação ficar na meta no horizonte relevante da política monetária.
Outra decorrência dessa análise é que o Banco Central deveria voltar à política de acúmulo de reservas internacionais, ou ao menos tentar não se desfazer delas. O custo de carregamento das reservas está extremamente reduzido e seus benefícios em termos de ancoragem fiscal — por meio do ganho patrimonial — estão bastante elevados. Se o preço do seguro está baixo e o risco do sinistro aumentou, é melhor tentar aumentar o valor segurado.
Para ser justo, o Banco Central do Brasil já tem acumulado mais reservas nos últimos meses, cujo montante passou de 339 bilhões de dólares em abril para 356 bilhões em agosto, a despeito do cenário de depreciação cambial (cenário em que bancos centrais tipicamente vendem — e não compram — reservas).
Por fim, mas não menos importante, está cada vez mais claro que a carga tributária, ainda que alta, terá que ser elevada no país. Existem dificuldades políticas em relação a essa agenda, mas não é claro que a dificuldade seja maior do que a agenda atual de novas limitações sobre gastos primários correntes.
Na verdade, como a inflação tem natureza fiscal, se o Banco Central elevar a taxa de juros para combater o aumento dos preços, ele vai piorar as coisas, fazendo a inflação ficar ainda mais alta. Isto porque, juros mais altos pioram a trajetória da dívida pública, requerendo superávits primários mais altos para estabilizá-la.
Como já dissemos antes, se o superávit primário não fizer o trabalho, a inflação terá que subir ainda mais para fazê-lo. É por essa razão que muitas vezes o leitor já ouviu alguns economistas falando que ter o lado fiscal em ordem é uma pré-condição para o Banco Central conseguir fazer o seu trabalho de controle da inflação.
A rigor, por mais paradoxal que pareça, sob dominância fiscal, se o Banco Central não quer que a inflação suba, deveria manter as taxas de juros baixas! Quanto mais reduzidos os juros, menor o serviço da dívida pública e menor seria a inflação requerida para reduzir o valor real da dívida!
Agora que o leitor entende o que significa o conceito de dominância fiscal, vale mencionar algumas interpretações apressadas sobre esse tema que não entendemos como corretas.
Primeiro, em nossa percepção é um erro pensar que dominância fiscal gera hiperinflação. Dominância fiscal gera tão somente a inflação requerida para corroer o valor real da dívida e compatibilizá-la ao fluxo esperado de superávits primários futuros. Para transitar de um regime de dominância fiscal para uma situação hiperinflacionária são necessárias muitas hipóteses adicionais.
Segundo, é um erro achar que não se pode entrar em dominância fiscal quando se tem uma relação dívida/PIB menor do que a observada em outros países (como Japão, Itália etc). Em tese, caso se espere irresponsabilidade fiscal, então isso seria suficiente para entrar em dominância fiscal, mesmo com baixos níveis de dívida.
Terceiro, não é verdade que altos níveis de dívida/PIB resultem necessariamente em dominância fiscal. Se os agentes econômicos acreditam que o governo será capaz de gerar os superávits primários necessários para ancorar as expectativas acerca da trajetória fiscal, o alto nível de endividamento não implica em dominância fiscal. O Japão é o exemplo clássico. Porém muitos países desenvolvidos no pós-pandemia, como os Estados Unidos, irão engrossar a lista dos países altamente endividados, mas com trajetória não-explosiva, e taxas de inflação sob controle.
Feita a discussão anterior sobre o que significa dominância fiscal, podemos tratar um pouco do Brasil, e entender por que cargas d’água a temática da dominância fiscal voltou a ser mencionada no debate econômico nacional. Há razões para o morto insepulcro ter novamente despertado.
A situação fiscal do Brasil é muito ruim: 2020 teve o pior déficit público da história e a dívida pública deve saltar cerca de 20 p.p. Parte dessa piora decorreu, inclusive, do uso ativo da política fiscal para minimizar (corretamente) os efeitos da pandemia. Nessa situação, é bem provável que a relação dívida/PIB ultrapasse 100% do PIB nos próximos anos.
Isso tudo, segundo o modo de pensar que explicamos nesse texto, deveria fazer o superávit primário futuro aumentar. E isso só pode ser feito com menos gastos e/ou aumentando tributos.
Acontece que a despesa pública no Brasil é rígida e, portanto, difícil de cortar. Por outro lado, a carga tributária é alta para um país emergente - o que cria resistências a aumentá-la ainda mais. Além disso, o contexto político é conturbado e reformas podem ser difíceis de aprovar. Como se não bastasse, há pressões para o teto de gasto cair, o que ampliaria ainda mais o gasto (ao invés de reduzi-lo), ou mesmo de criar despesas permanentes por fora do teto (como o tal Renda Cidadã).
É natural, portanto, a deterioração das expectativas fiscais. Ou seja, é nesse contexto que surge a discussão da possibilidade de dominância fiscal no Brasil. Neste ponto, entramos no segundo objetivo do artigo: existem mitigantes pouco destacados no debate público brasileiro, que sugerem que, caso o país mude de regime, a situação de curto prazo pode ser bem menos pior (mas ainda assim ruim) do que à primeira vista se imagina.
Em primeiro lugar, o elevado grau de ociosidade da economia brasileira impõe uma grande dificuldade para que o aumento da demanda cause uma elevação da inflação. Isso significa que parte da conexão entre dominância fiscal e inflação precisa ser qualificada no caso do Brasil. De fato, a migração dos recursos aplicados em títulos públicos para ativos reais teria que ser forte o suficiente para ocupar a grande ociosidade vigente na economia e gerar excesso de demanda, este sim o verdadeiro responsável por um aumento da inflação.
Ademais, mesmo que o excesso de demanda venha a ocorrer, parte do problema fiscal seria minorado pelo aumento da arrecadação (e do superávit primário) como consequência da ocupação da capacidade ociosa da economia, de modo que a inflação requerida para estabilizar a dívida pública seria menor.
Em segundo lugar, a situação externa da economia brasileira é extremamente folgada, o que sugere que a conexão entre dominância fiscal e migração para ativos externos também precisa ser qualificada. De fato, como o Brasil é credor externo líquido devido ao elevado nível de suas reservas internacionais, que se situa próximo a US$ 350 bilhões, desvalorizações cambiais geram ganhos patrimoniais bastante relevantes e melhoram a dívida líquida do setor público.
Portanto, o mecanismo de corrida para ativos externos, que leva a depreciações cambiais, ajuda a situação fiscal no caso do Brasil. Isso significa que o processo de depreciação cambial, decorrente de incertezas fiscais, tende a ser autocontido. Se a depreciação cambial é limitada, os impactos inflacionários, caso ocorram, tendem a ser limitados e transitórios.
O cenário seria outro se o governo brasileiro não fosse credor externo líquido, mas sim devedor externo líquido — como é o caso da Argentina, exemplo muito citado por alguns colegas para tratar do que pode vir a acontecer com a economia brasileira. Nesse caso, a desancoragem fiscal acarretaria uma fuga de capitais, que elevaria a dívida externa em moeda nacional, piorando ainda mais a situação fiscal, desencadeando um ciclo vicioso de fuga de capitais, depreciação cambial e piora fiscal.
Processos dessa natureza acarretam em surto inflacionário e podem culminar na perda de credibilidade da moeda nacional com risco hiperinflacionário. Esse não é, em nossa percepção, o cenário da economia brasileira e o exemplo da Argentina deveria ser evitado.
Em resumo, o risco inflacionário decorrente da desancoragem fiscal existe e deve ser levado a sério pelos responsáveis pela política econômica, mas é bem menos dramático do que sugerem alguns analistas que insistem em comparar a situação do Brasil com a de alguns de nossos vizinhos sul-americanos. Como argumentamos, existem importantes mitigadores no caso brasileiro que raramente são mencionados quando o tema da dominância fiscal vem à tona.
Feitas as qualificações sobre o risco de dominância fiscal no Brasil, é importante identificar quais políticas seriam adequadas ao momento atual do país, para além das medidas pelo lado das despesas primárias, como a manutenção ou a melhora de desenho e credibilidade do teto de gastos ou a reforma administrativa, que todo dia movimentam as páginas dos principais jornais de economia.
A primeira delas diz respeito à condução da política monetária. Se, tal como parece ser a preocupação atual, existe risco de dominância fiscal e, portanto, de um choque inflacionário por razões fiscais, o Banco Central tem que reconhecer o impacto que a política de juros exerce sobre a dinâmica fiscal. Isso significa que o Banco Central tem que praticar juros baixos — a rigor, mais baixos do que praticaria caso não houvesse risco de dominância fiscal. Essa prática reduziria sensivelmente a despesa com juros da dívida pública e melhoraria a trajetória da dívida, ajudando a ancorar a política fiscal.
Além disso, juros mais baixos implicam em um nível de câmbio mais depreciado. Como dissemos anteriormente, como o governo brasileiro é credor externo líquido, depreciações cambiais geram ganhos patrimoniais significativos com as reservas internacionais.
Portanto, ao contrário do discurso atual da autoridade monetária, o risco de dominância fiscal não deve ser utilizado para se justificar uma parada na queda da taxa básica de juros ou em eventual elevação da mesma, mas sim para reforçar a necessidade de praticar juros reduzidos. Como a inflação esperada está abaixo da meta, e a cada ata do Copom ela parece se distanciar ainda mais da meta no horizonte relevante, o Banco Central poderia reduzir a taxa de juros também por causa da situação fiscal. Se o fiscal é mesmo o piloto, o passageiro pode ajudar mais (ou atrapalhar menos) na condução do veículo.
Diga-se de passagem, as projeções de inflação recém divulgadas pelo Banco Central no último Relatório de Inflação, bem como as funções de resposta ao impulso da política monetária sobre a inflação, sugerem que há pelo menos mais 100 bps ("base points", ou 1 p.p.) de espaço de redução da taxa Selic no Brasil, de modo a fazer a inflação ficar na meta no horizonte relevante da política monetária.
Outra decorrência dessa análise é que o Banco Central deveria voltar à política de acúmulo de reservas internacionais, ou ao menos tentar não se desfazer delas. O custo de carregamento das reservas está extremamente reduzido e seus benefícios em termos de ancoragem fiscal — por meio do ganho patrimonial — estão bastante elevados. Se o preço do seguro está baixo e o risco do sinistro aumentou, é melhor tentar aumentar o valor segurado.
Para ser justo, o Banco Central do Brasil já tem acumulado mais reservas nos últimos meses, cujo montante passou de 339 bilhões de dólares em abril para 356 bilhões em agosto, a despeito do cenário de depreciação cambial (cenário em que bancos centrais tipicamente vendem — e não compram — reservas).
Por fim, mas não menos importante, está cada vez mais claro que a carga tributária, ainda que alta, terá que ser elevada no país. Existem dificuldades políticas em relação a essa agenda, mas não é claro que a dificuldade seja maior do que a agenda atual de novas limitações sobre gastos primários correntes.
Ademais, ainda que a carga tributária seja elevada, é bastante notório que diversos segmentos mais ricos da sociedade pagam pouco tributo no Brasil, de forma que o aumento da carga tributária pode ser feito elevando sua progressividade, algo altamente desejável para uma sociedade tão desigual quanto à brasileira.
Antes de finalizar, é importante dizer que, na prática, é muito difícil fazer um teste empírico para saber se uma economia, de fato, já se encontra em dominância fiscal. No Brasil, não há nada que sugira que esse seja efetivamente o caso, mesmo com o presidente da autoridade monetária afirmando que o fiscal agora é o piloto da política macroeconômica do país. Mas o risco não pode ser descartado, pois tudo depende das expectativas sobre a política fiscal, variável que sempre pode mudar rapidamente.
Em suma, esse texto procurou deixar claro o que significa o conceito de dominância fiscal, quais são as especificidades do Brasil e o que poderia ser feito para a economia brasileira mitigar o risco dessa situação — melhorando a situação das contas públicas no Brasil e levando o morto insepulcro da dominância fiscal mais uma vez de volta para a tumba.
Sobre os autores
Maurício Furtado
Economista e mestre em macroeconomia pela PUC-Rio.
Ricardo Barboza
Professor da Coppead-UFRJ e mestre pela PUC-Rio
Professor da Coppead-UFRJ e mestre pela PUC-Rio
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