9 de outubro de 2020

Não, os nazistas não eram socialistas

A ideia de que os nazistas eram socialistas é transparentemente absurda. Infelizmente, também é uma ideia que figuras proeminentes da direita, como o senador Rand Paul, adotaram. Então, vamos todos dizer juntos agora: não, os nazistas não eram socialistas. Eles eram, na verdade, anti-socialistas comprometidos.

Scott Sehon



Bandeiras nazistas na Alemanha de Hitler. (Wikimedia Commons)

Tradução / “Àmedida que uma discussão online se prolonga”, afirma a Lei de Godwin, “a probabilidade de uma comparação envolvendo nazistas ou Hitler é maior”. Quando atacam os socialistas democráticos com fake news, espera-se que essa tática esteja limitada em disputas histéricas no Twitter.

Mas não. O senador Rand Paul (R-KY), em seu livro The Case Against Socialism de 2019, declara: “Hitler era um socialista”.

Dá vontade de apenas revirar os olhos e seguir em frente. Mas, como a ideia de que os nazistas eram socialistas contagia o pensamento de muitas pessoas razoáveis, é bom saber exatamente como responder. A versão mais curta é: não, os nazistas não eram socialistas.

Ignorância ou má fé?

Osenador Paul começa ridicularizando a esquerda por negar que os nazistas eram socialistas: “Portanto, apesar dos nazistas terem literalmente a palavra’socialista’ em seu nome – Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães – a esquerda fez um esforço conjunto para rotular os nazistas como ‘extrema-direita’.”

O argumento de Paul aqui vai da premissa inegável de que os nazistas tinham “socialista” como parte de seu nome para concluir que os nazistas eram, de fato, socialistas. Para que essa inferência funcione, Paul precisa de uma premissa intermediária como a seguinte: se uma organização tem um adjetivo em seu nome, então a organização está corretamente descrita por esse adjetivo.

Mas se o senador Paul realmente acreditasse nisso, então ele seria forçado a concluir que a Alemanha Oriental comunista e a atual Coréia do Norte são consideradas democracias, pois a República Democrática Alemã e a República Popular Democrática da Coréia do Norte têm o adjetivo “democrático” como parte de seu nome. Eu não acho que ele acredita nisso.

O senador Paul então aponta para três outras evidências. Primeiro, Paulo cita o plano de vinte e cinco pontos que o incipiente Partido Nazista elaborou em 1920. Ele começa com este ponto: “Exigimos a nacionalização de todas as indústrias (anteriores) associadas (trustes). (A essência do socialismo – propriedade estatal dos meios de produção.)”

As palavras em itálico depois desse ponto são do próprio autor, adicionadas como comentário, sugerindo que os nazistas estavam defendendo a propriedade estatal dos meios de produção. Mas uma tradução mais direta do alemão original seria: “Exigimos a nacionalização de todas as empresas (truste) anteriormente socializadas”.

Assim, ao invés da nacionalização de todas as empresas, o documento fala apenas sobre certos tipos de trustes, sem ser muito explícito quanto à natureza ou extensão dessas entidades. É difícil dizer exatamente o que os nazistas tinham em mente aqui, mas não era um apelo a uma expansão da propriedade estatal dos meios de produção.

O último item citado por Paulo é o de número dezessete dos vinte e cinco pontos, e parece ser o mais explicitamente socialista: “Exigimos uma reforma agrária adequada às nossas necessidades, disposição de uma lei para a libere a expropriação de terras para os fins de utilidade pública, abolição dos impostos sobre a terra e prevenção de toda especulação fundiária.”

No entanto, em um documento assinado pelo próprio Hitler, os nazistas acrescentaram, explicitamente, um ponto explicativo em 1930. Ainda, bem antes de chegarem ao poder, esta declaração afirma o cerne da posição nazista:

Em face de interpretações desonestas do Ponto 17 por oponentes do partido, a seguinte declaração é necessária: uma vez que o NSDAP se baseia na propriedade privada, é evidente que a palavra “expropriação” apenas se refere à criação de possibilidade legal de desapropriar, quando necessário, terras adquiridas de forma injusta ou que não estejam sendo administradas de acordo com o interesse do bem comum. Conseqüentemente, isso é principalmente dirigido contra empresas de especulação imobiliária judaicas.

Quando os nazistas falaram sobre expropriação, eles queriam dizer tomar propriedades pertencentes aos judeus; eles eram totalmente a favor da propriedade privada para outros.

Muito possivelmente, o senador Paul simplesmente ignorava esse adendo crucial. Ou talvez ele soubesse disso, sabia que minava seu argumento básico, e simplesmente optou por não mencioná-lo.

A segunda evidência do senador Paul parece se originar de um meme que foi divulgado em círculos conservadores há alguns anos, apresentando uma foto de Hitler com uma suposta citação começando com “somos socialistas…”. Uma simples verificação de veracidade no meme já mostra que a informação é falsa, em parte porque a citação não era de Hitler, mas de Gregor Strasser.

Paul entende isso, mas ele ainda usa o mesmo texto do meme e diz: “Da mesma forma, o nazista Gregor Strasser falou de seus companheiros nazistas: ‘Somos socialistas. Somos inimigos, inimigos mortais, do atual sistema econômico capitalista, com sua exploração econômica sobre os mais fracos, com sua injustiça salarial, com sua avaliação imoral dos indivíduos de acordo com a riqueza e dinheiro em vez de responsabilidade e realização, e estamos determinados, sob todas circunstâncias, para abolir este sistema!’”

Mas, como o snopes.com postou, Gregor Strasser é um nazista peculiar para ser citado neste ou em qualquer ponto.

Strasser era de fato um nazista, com visões nacionalistas e anti-semitas totalmente repreensíveis que ele misturou com algumas idéias econômicas tradicionalmente esquerdistas. E ele era um nazista do alto escalão, e comandou o departamento de propaganda do partido e suas operações diárias por um tempo.

Mas quaisquer idéias esquerdistas que ele tivesse foram totalmente rejeitadas por Hitler no final dos anos 1920. Strasser renunciou a qualquer posição de autoridade dentro do partido no final de 1932, antes dos nazistas chegarem ao poder em 1933, e ele foi literalmente assassinado pelos nazistas na “Noite das Facas Longas” no início de 1934, quando Hitler tinha centenas de oponentes políticos executados extrajudicialmente – incluindo, principalmente, toda a ala do partido pró-Strasser.

Se o melhor que o senador Paul pode fazer para representar os nazistas como socialistas é citar um nazista cujas opiniões fizeram com que ele e outros como ele fossem expulsos do partido e assassinados – e cujas opiniões reacionárias são consideradas completamente desprezíveis por todas as grandes correntes de socialistas hoje – então ele não está argumentando corretamente.

Mais uma vez, temos as mesmas duas possibilidades em relação ao senador: ou ele não demorou cinco minutos para descobrir quem era Strasser, ou decidiu varrer essa informação para debaixo do tapete – talvez pensando que os socialistas teriam preguiça de verificar.

A terceira fonte de Paul para sua afirmação de que Hitler é um socialista é um artigo no Independent de George Watson. Watson baseia suas afirmações quase inteiramente em algumas coisas que Hitler supostamente disse a seu ex-conselheiro Otto Wagener.

As lembranças de Wagener foram publicadas postumamente em alemão em 1978 em um livro com um título que se traduz como Hitler de perto: Notas de um Confidente 1929-1932. Por que apenas em 1932? Porque Wagener foi logo depois removido de sua posição de autoridade e até mesmo detido na “Noite das Facas Longas”. Wagener escreveu o texto enquanto prisioneiro de guerra em 1946.

Wagener relata que Hitler disse que via todo o nacional-socialismo baseado em Karl Marx. Essa é uma afirmação estranha da parte de Wagener, dado o documento que mencionei acima assinado por Hitler, segundo o qual o Partido Nazista “se baseia na propriedade privada” – não é uma ideia caracteristicamente marxista.

De modo mais geral, se a melhor evidência que temos de que o governo nazista era socialista se resume a alguns comentários esparsos que Hitler supostamente fez em particular, antes de assumir o poder, e para alguém que foi expulso do partido, então essa é uma evidência bastante fraca.

Em comparação, suponha que houvesse um livro publicado na década de 1990 por alguém alegando que Ronald Reagan havia dito em 1977 que suas ideias centrais eram baseadas nos escritos de Leon Trotsky, mas que o autor deste livro foi expulso do Partido Republicano no início de 1981 e não desempenhou nenhum papel adicional na administração de Reagan. Tomaríamos isso como evidência decisiva – ou como qualquer evidência – de que a presidência de Reagan nos anos 80 era trotskista?

O oposto do socialismo

Em vez de confiar no que eles supostamente disseram, vejamos o que os nazistas de fato fizeram enquanto estavam no poder.

Para começar, os nazistas prenderam os 81 parlamentares do Partido Comunista Alemão devidamente eleitos e os prenderam em campos de concentração administrados pelos nazistas. Os nazistas também prenderam 26 dos 120 social-democratas eleitos.

Isso não foi por acaso – ao evitar que esses representantes estivessem presentes no Parlamento alemão, os nazistas conseguiram aprovar a Lei de Habilitação, que deu a Hitler o poder ditatorial, pois foram apenas esses partidos de esquerda que ousaram se opor a Hitler.

Depois de terem o poder absoluto, se os nazistas fossem realmente socialistas, você poderia esperar que eles agissem como socialistas. Em particular, a característica definidora clássica de um socialismo é a propriedade coletiva dos meios de produção. Os nazistas aumentaram a propriedade coletiva nacionalizando recursos privados? Não. Na verdade, eles fizeram o oposto.

Em um artigo de 2010 na Economic History Review, Germà Bel relata que “o governo nazista na Alemanha dos anos 1930 implementou uma política de privatização em grande escala” que envolvia a venda de “propriedade pública em várias empresas estatais” que operavam nos setores de “aço, mineração, bancos, estaleiro, linhas de navios e ferrovias”.

O senador Paul alega que houve pouca propriedade coletiva sob os nazistas, mas afirma que “as indústrias eram propriedade privada apenas no nome”. Ele diz: “O controle do Estado sobre a indústria era tão completo que, na realidade, os proprietários foram essencialmente privados do controle privado de suas propriedades”. Como evidência para essa afirmação, Paul parece citar o economista de meados do século Ludwig von Mises:

“Sob o nacional-socialismo havia, como Mises colocou, ‘um sistema superficial de propriedade privada… mas os nazistas exerciam controle central ilimitado de todas as decisões econômicas’. Com o lucro e a produção ditados pelo Estado, a indústria funcionava como se o governo tivesse confiscado todos os meios de produção, impossibilitando a previsão e o cálculo econômico.”

Digo que o senador Paul “parece” citar Mises porque a fonte das palavras entre as aspas está longe de ser clara. A única nota de rodapé no parágrafo de Paul é para um artigo de Chris Calton postado no site do Mises Institute, e as primeiras seis palavras da citação, “um sistema superficial de propriedade privada”, são na verdade apenas de Calton, sem nenhuma sugestão de que Mises disse elas.

A situação piora. O resto da suposta citação, alegando que “os nazistas exerceram controle central e ilimitado de todas as decisões econômicas”, não pode ser encontrada em nenhum lugar do artigo de Calton, nem no livro de Mises ao qual Calton se refere em seu artigo. Uma pesquisa no Google revela essas palavras apenas no próprio livro de Rand Paul.

Acontece que a afirmação mais clara de Paul sobre o controle nazista da economia foi, aparentemente, apenas algo que o senador inventou e falsamente atribuiu a Ludwig von Mises.

Fontes mais informadas fornecem uma imagem diferente. Embora a autoridade fosse altamente centralizada na Alemanha nazista, esse controle não era de forma alguma tão amplo quanto afirma o senador Paul. Em um artigo no Journal of Economic History, Christoph Buchheim e Jonas Scherner escrevem: “A noção de que a propriedade da empresa privada durante o Terceiro Reich havia sido preservada apenas em um sentido nominal e que na realidade quase nada havia restado da autonomia das empresas como atores econômicos é gravemente deturpado.”

Buchheim e Scherner continuam observando que as empresas alemãs, mesmo aquelas relacionadas à produção de guerra, “ainda tinham amplo espaço para seguir seus próprios planos de produção”. Além disso, “a liberdade de contrato foi respeitada” e “mesmo com respeito aos seus próprios projetos de investimento relacionados à guerra e à autarquia, o Estado normalmente não usava o poder para garantir o apoio incondicional da indústria”.

Os autores concluem que “as economias da Alemanha e dos Aliados ocidentais ainda eram bastante semelhantes, pois todos eram basicamente capitalistas”.

Uma injúria vazia, não uma alegação séria

Por que conservadores como o senador Paul continuam repetindo a afirmação de que os nazistas eram socialistas? A motivação óbvia é simplesmente caluniar aqueles que defendem o socialismo, e não há calúnia maior do que associar alguém a Hitler.

Mas, ao invés de oferecer argumentos sérios para sustentar essa afirmação, o senador Paul oferece um raciocínio de má qualidade, põe de lado fatos inconvenientes e, aparentemente, até faz citações. Ou talvez ele apenas diria que está tentando apresentar “fatos alternativos” sobre a Alemanha nazista.

Em uma reviravolta irônica, o senador Paul afirma em um capítulo anterior que os governos socialistas devem contar com um “ministério de propaganda” para distrair as pessoas com afirmações falsas. Não consigo pensar em uma descrição mais adequada para explicar o objetivo do seu próprio livro.

Sobre o autor

Scott Sehon é professor de filosofia na Bowdoin College e autor de "Free Will and Action Explanation". Atualmente ele está trabalhando em um livro chamado "Socialism for Smart People".

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