Funções de investigar, acusar e julgar acabaram se confundindo no país
Ricardo Lewandowski
Ricardo Lewandowski
Os debates nas eleições de 2018 tiveram como pano de fundo o combate à corrupção e à marginalidade, em cujo âmbito também eram incluídas pessoas com preferências sexuais alternativas.
A maioria dos discursos verberava contra a leniência das autoridades e a brandura da legislação criminal, tidas como principais causas do aumento da delinquência.
Venceram os candidatos que melhor exploraram a sensação de insegurança da população, enraizada na violência endêmica, característica de nações desiguais e excludentes como a nossa. Triunfaram aqueles que defenderam o endurecimento das leis penais, a intensificação das ações da polícia e a expansão do porte de armas. Alguns advogaram abertamente a intervenção das Forças Armadas e a reedição dos atos de exceção.
Tal desfecho não suscitou maior surpresa porque boa parte dos eleitos apenas repercutiu o já atávico temor das massas, diuturnamente reforçado pelo noticiário sensacionalista veiculado pela mídia. O que mais causou espanto foi a incondicional adesão a esse ideário por parte de alguns integrantes do aparelho estatal, em especial do Judiciário, considerada a plena vigência da Constituição libertária de 1988. Subitamente proliferaram heróis e justiceiros, paladinos da lei e da ordem, ávidos por uns momentos de fama ou algumas migalhas de poder. À semelhança de lázaros redivivos, de repente emergiram do insípido anonimato das respectivas carreiras.
Uma das consequências mais nefastas dessa cultura punitivista consistiu no aumento exponencial da população carcerária, em sua maioria negra e parda, que supera atualmente a espantosa cifra de 700 mil presos, os quais sobrevivem amontoados em jaulas inapropriadas até para animais de zoológico. Nesse quesito, o Brasil ocupa a desonrosa posição de terceiro país que mais prende no mundo. E prende mal, pois cerca de 30% dos encarcerados são presos provisórios, que não conseguem ser ouvidos por um magistrado, mesmo transcorridos meses ou anos de sua detenção.
O alastramento da narrativa que preconiza o aumento da repressão e do encarceramento como saída para o problema da criminalidade levou ao desvirtuamento das atribuições dos distintos atores do sistema de segurança pública. Não raro, as funções de investigar, acusar e julgar acabaram se confundindo. Tal fato fragilizou o direito ao contraditório e à ampla defesa dos acusados, levando ainda à generalização de prisões sem culpa formada, muitas vezes baseadas em simples delações de corréus.
Ademais, ampliou o protagonismo de juízes, que se viram tentados a produzir provas e expedir medidas unilateralmente. Em paralelo, acarretou uma insólita militarização das investigações, por meio de “operações” batizadas com nomes esotéricos, levadas a efeito por agentes em uniformes de campanha, portando armamento pesado, ocasionalmente acompanhadas por promotores ou procuradores.
O Supremo Tribunal Federal, embora sofrendo críticas, incompreensões, ofensas e até ameaças à integridade física de seus membros, logrou impor uma certa correção de rumos a essa patologia institucional, sobretudo ao concluir recentemente pela integral vigência da presunção constitucional de inocência, reafirmando sua natureza de cláusula pétrea.
O Congresso Nacional também reagiu à altura, formalizando as audiências de custódia, institucionalizando o juiz das garantias e aprovando a lei de abuso de autoridade. Cabe agora à cidadania impedir a concretização de eventuais retrocessos, lançando mão dos instrumentos democráticos de que dispõe.
A maioria dos discursos verberava contra a leniência das autoridades e a brandura da legislação criminal, tidas como principais causas do aumento da delinquência.
Venceram os candidatos que melhor exploraram a sensação de insegurança da população, enraizada na violência endêmica, característica de nações desiguais e excludentes como a nossa. Triunfaram aqueles que defenderam o endurecimento das leis penais, a intensificação das ações da polícia e a expansão do porte de armas. Alguns advogaram abertamente a intervenção das Forças Armadas e a reedição dos atos de exceção.
Tal desfecho não suscitou maior surpresa porque boa parte dos eleitos apenas repercutiu o já atávico temor das massas, diuturnamente reforçado pelo noticiário sensacionalista veiculado pela mídia. O que mais causou espanto foi a incondicional adesão a esse ideário por parte de alguns integrantes do aparelho estatal, em especial do Judiciário, considerada a plena vigência da Constituição libertária de 1988. Subitamente proliferaram heróis e justiceiros, paladinos da lei e da ordem, ávidos por uns momentos de fama ou algumas migalhas de poder. À semelhança de lázaros redivivos, de repente emergiram do insípido anonimato das respectivas carreiras.
Uma das consequências mais nefastas dessa cultura punitivista consistiu no aumento exponencial da população carcerária, em sua maioria negra e parda, que supera atualmente a espantosa cifra de 700 mil presos, os quais sobrevivem amontoados em jaulas inapropriadas até para animais de zoológico. Nesse quesito, o Brasil ocupa a desonrosa posição de terceiro país que mais prende no mundo. E prende mal, pois cerca de 30% dos encarcerados são presos provisórios, que não conseguem ser ouvidos por um magistrado, mesmo transcorridos meses ou anos de sua detenção.
O alastramento da narrativa que preconiza o aumento da repressão e do encarceramento como saída para o problema da criminalidade levou ao desvirtuamento das atribuições dos distintos atores do sistema de segurança pública. Não raro, as funções de investigar, acusar e julgar acabaram se confundindo. Tal fato fragilizou o direito ao contraditório e à ampla defesa dos acusados, levando ainda à generalização de prisões sem culpa formada, muitas vezes baseadas em simples delações de corréus.
Ademais, ampliou o protagonismo de juízes, que se viram tentados a produzir provas e expedir medidas unilateralmente. Em paralelo, acarretou uma insólita militarização das investigações, por meio de “operações” batizadas com nomes esotéricos, levadas a efeito por agentes em uniformes de campanha, portando armamento pesado, ocasionalmente acompanhadas por promotores ou procuradores.
O Supremo Tribunal Federal, embora sofrendo críticas, incompreensões, ofensas e até ameaças à integridade física de seus membros, logrou impor uma certa correção de rumos a essa patologia institucional, sobretudo ao concluir recentemente pela integral vigência da presunção constitucional de inocência, reafirmando sua natureza de cláusula pétrea.
O Congresso Nacional também reagiu à altura, formalizando as audiências de custódia, institucionalizando o juiz das garantias e aprovando a lei de abuso de autoridade. Cabe agora à cidadania impedir a concretização de eventuais retrocessos, lançando mão dos instrumentos democráticos de que dispõe.
Sobre o autor
Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
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