Eileen Jones
Ilustração de Cat Sims |
Tradução / Para entender o que é empolgante e importante sobre o último álbum de Bob Dylan, Rough and Rowdy Ways, você precisa entrar no espírito estridente das principais músicas – as cinco que realmente importam. Todos elas parecem projetados para serem tocados em uma boteco lotado de pessoas que bebem muito. Elas são um antídoto para o que aflige uma população atomizada, intimidada e dominada pela COVID e que enfrenta dez tipos diferentes de desastres ao mesmo tempo, mas que é incapaz de se reunir ou se conceber como uma grande força rebelde no mundo.
Eu tenho ouvido o álbum obsessivamente por um mês e não sou de forma alguma um cultista de Bob Dylan.
Rough and Rowdy Ways, a primeira coleção de canções originais de Dylan em quase uma década, desde Tempest de 2012, encontra o cantor e compositor atuando no que parece ser um lugar, geograficamente falando, na orla da cidade: socialmente à beira da respeitabilidade, musicalmente em à beira do “bom gosto” e espiritualmente à beira do inferno. Em outras palavras, um boteco no interior norte-americano.
Lembra do boteco de Twin Peaks: The Return (2017), onde a comunidade se reunia no final de cada episódio. Ele tinha a mesma atmosfera cavernosa, perigosa, misteriosa, ligeiramente ameaçadora, mas, em última análise, revigorante, que acena às pessoas solitárias saindo da cidade enquanto as estradas se tornam rurais e as florestas mais densas.
Coisas terríveis aconteciam com frequência no boteco de David Lynch, o Bang Bang Bar. No Twin Peaks original, aquele gigante aparecia lá várias vezes para oferecer avisos de ameaça cósmica. E lembre-se em The Return, quando a angustiada Audrey de meia-idade (Sherilynn Fenn) faz a ritualística “Dança de Audrey” com a multidão solene assistindo? Enquanto ela se movia em transe pelo chão de uma forma sonhadora, lembrando sua juventude linda, sua realidade então se estilhaçou de forma que seu rosto horrorizado parecia flutuar em um caco de vidro no vazio. Ou foi toda a construção da realidade que sempre foi instável na cidade de Twin Peaks e, por extensão, na América?
Ainda assim, com toda a sua liminaridade assustadora, aquele boteco era um bom lugar para se estar. A música era ótima, sexy e assustadora – cheia de possibilidades noturnas. Havia um balcão longo e generoso onde velhos preocupados podiam contemplar o desperdício de suas vidas ou perceber com humor sombrio que ainda não morreram. Era um ponto de encontro vital para a comunidade, e a enorme e lotada pista de dança parecia espaçosa o suficiente para comportar toda a população da cidade, se necessário. Apesar de todo o seu requinte perigoso, o lugar tinha calor e vitalidade, sugerindo que se alguma coisa ruim tivesse que acontecer – e geralmente acontecia – seria melhor que acontecesse com todo o seu povo aglomerado ao seu redor.
O título do novo álbum de Dylan é um retorno a uma canção de 1929, “My Rough and Rowdy Ways”, do lendário e condenado astro country Jimmie Rodgers, que gravou músicas de sucessos enquanto morria de tuberculose. Mas parece projetado para falar conosco agora, em meio à devastação pandêmica.
Em uma entrevista recente, Dylan admitiu que temia que a América tivesse cruzado uma linha sem volta. Mas então, ao mesmo tempo, ele reconheceu que é um homem velho – ele tem 79 anos – e homens velhos tendem a viver no passado e contemplar a desgraça, enquanto é esperançoso lembrar: “Os jovens não têm essa tendência.”
Eu não teria a pretensão de escrever sobre este álbum se os críticos de música estivessem feito um bom trabalho, mas eles não estão. Eles tendem a se concentrar em certas canções que são bonitas e expressam um desejo de transcendência que é, indiscutivelmente, o lado mais leve e convencional das canções sombrias e rebeldes das tavernas. Os críticos demoram muito com o amor no lento e contemplativo “I Contain Multitudes”, por exemplo, nem que seja para mostrar o fato banal de que o título vem de “Song of Myself” de Walt Whitman.
Ou eles destacam “Key West (Philosopher Pirate)” como a obra-prima do álbum – o que talvez seja, em termos de algum tipo de musicalidade que eu não conheço, mas para meu ouvido comum e destreinado, não há nada para se animar ali. Ou então eles descrevem o final do álbum, um canto monótono de 17 minutos – a primeira música de Dylan a chegar ao topo das paradas da Billboard – chamado “Murder Most Foul”, inspirado no assassinato de John F. Kennedy. Ele divaga através da cultura pop do meio ao final do século XX com referências líricas fracas como “[Estamos] vivendo em um pesadelo na Elm Street” e “Eu sou apenas um bode expiatório como Patsy Cline”. Mas são essas canções ininterruptas que tornam o álbum a realização que é: “False Prophet”, “My Own Version of You”, “Black Rider”, “Goodbye Jimmy Reed” e “Crossing the Rubicon”.
O primeiro deles, “False Prophet”, traz o ritmo da pulsão do sangue que nos diz que viramos uma esquina bem-vinda para a meditativa “Eu Contenho Multidões” que vai em direção a um pisoteio rude. O grunhido vocal agradavelmente diabólico de Dylan, incrivelmente melódico para um homem de 79 anos, faz maravilhas com letras grandiosas como: “Você não me conhece, querida / Você nunca iria adivinhar / Não sou nada como minha aparência fantasmagórica poderia sugerir / Eu não sou um falso profeta / Eu apenas disse o que disse / Estou aqui apenas para trazer vingança sobre a cabeça de alguém.”
Em seguida, “My Own Version of You” é um título bastante manso para o que realmente está acontecendo na música: um relato da recriação física de um amante perdido com partes de corpos roubados de cadáveres, cantado por Dylan com um sabor horrível. “Durante todo o verão, até janeiro / Tenho visitado necrotérios e mosteiros / Procurando as partes necessárias do corpo / Membros e fígados e cérebros e corações...”
Como a maioria dessas músicas, é temperado com humor nas letras como, “Vou fazer você tocar piano como Leon Russell”, e com refrões como este: “Vou trazer alguém à vida, equilibrar as escalas / Não vou me envolver em nenhum detalhe insignificante.”
Minha canção favorita e a mais emblemática é a última delas, “Crossing the Rubicon”. O título se refere, é claro, ao general romano Júlio César “ultrapassando o ponto sem volta” em uma campanha militar de 49 A.C. quando ele cruzou o Rubicão em desafio à antiga lei romana e a uma ordem direta do Senado. Reivindicando os presságios favoráveis dos deuses como uma diretriz ao cometer a traição, arriscando seu exército e sua carreira e colocando a república em perigo ao mergulhá-la na guerra civil, ele liderou o exército, gritando: “A sorte está lançada!”
Talento em face de um desastre potencial é uma qualidade que Dylan evoca em todo o quinteto do álbum. Como vamos enfrentar nosso provável terrível destino? Como Dylan coloca com irônica grandiosidade em “My Own Version of You”, em um momento de decisão, “Eu escolho um número entre um e dois / E eu me pergunto:‘ O que Júlio César faria?’”
“Crossing the Rubicon” é um hino perfeito para a vida agora, que se tornou uma série perpétua de desafios insanos que temos que nos preparar para enfrentar diariamente. A música começa com um ímpeto impulsionador e se gabando de como a situação é ruim: “Cruzei o Rubicão no décimo quarto dia / Do mês mais perigoso do ano / No pior momento, no pior lugar.” Em seguida, o versículo termina com uma redução repentina na escala, até o nível do comentário típico sobre nossas escolhas mais questionáveis: “Isso é tudo que pareço ouvir.”
Os versos ocupam-se em mapear como estão as condições antes de assumir o grande risco e enfrentar a provável desgraça: “O que são esses dias sombrios que vejo? / Em um mundo tão torto / Não consigo resgatar o tempo / O tempo gasto tão ociosamente / Quanto mais pode durar? / Quanto tempo pode durar?”
Mas então, naquele ponto de desespero – você adivinhou – é hora de quebrar tudo: “Eu estava entre o Céu e a Terra / E cruzei o Rubicão.”
O que Dylan entende é que, para sobreviver na América hoje, as pessoas precisam ter uma noção de que suas vidas têm tamanho, escopo e poder. Mas como elas vão conseguir isso em uma sociedade projetada para fazer cada um de nós se sentir pequeno, fraco, isolado e, em última análise, insignificante?
Com Rough and Rowdy Ways, Bob Dylan nos chama de volta para um local perdido que talvez possa trazer a solução – um lugar para reuniões comemorativas orladas numa encantadora e misteriosa magia.
Sobre a autora
Eileen Jones é crítica de cinema da Jacobin e autora no Filmsuck, nos Estados Unidos. Ela também apresenta um podcast chamado Filmsuck.
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