13 de fevereiro de 2021

O verdadeiro Terceiro Mundo

"Terceiro Mundo" nem sempre foi um termo pejorativo. Suas origens estão em um projeto revolucionário pós-colonial que buscava encontrar um caminho para o desenvolvimento além dos campos da Guerra Fria.

Robert Maisey


Jawaharlal Nehru da Índia, Kwame Nkrumah do Gana, Abdel Nasser do Egipto, Sukarno da Indonésia e Josip Broz Tito da Jugoslávia reúnem-se na Conferência de Bandung de 1955. (Crédito: Wikimedia Commons)

Tradução / Em 1955, delegações de pouco mais de 30 países recém-independentes se reuniram na cidade indonésia de Bandung para uma conferência sobre coexistência pacífica e cooperação internacional fora da estrutura de “dois campos” da Guerra Fria.

Bandung era um local simbólico: a cidade havia sido abandonada e totalmente queimada pela população local em 1946, em protesto contra os planos britânicos de devolvê-la ao domínio colonial holandês após a derrota do Japão imperial. Reconstruída sob os auspícios do regime anti-imperialista indonésio de Sukarno, agora abrigava o primeiro florescimento do que viria a ser conhecido como Terceiro Mundo.

O Terceiro Mundo não era um termo pejorativo, como mais tarde veio a ser usado, mas um ambicioso projeto político baseado em uma aliança moral de Estados anti-imperialistas que buscavam uma agenda de desenvolvimento econômico, soberania nacional e coexistência pacífica. Como essas novas nações não tinham influência militar ou econômica, concentraram suas energias em fornecer assistência mútua entre si e às regiões que ainda lutavam para emergir do colonialismo. O grupo de Estados do Terceiro Mundo também buscou democratizar a Organização das Nações Unidas, usando seu voto em bloco para evitar que ela se tornasse mais um veículo para o imperialismo das Grandes Potências.

O centro político do projeto do Terceiro Mundo se moveu ao redor do globo, traçando os focos da luta anti-imperialista: do Cairo a Belgrado, a Argel, a Havana. Hoje, o simbolismo duradouro do projeto está na maneira como ele galvanizou apoio àqueles que lutavam pela liberdade no Vietnã, Angola, África do Sul, Palestina e inúmeros outros.

No entanto, a principal questão nas mentes dos líderes do Terceiro Mundo não era necessariamente a luta armada, mas a economia política. Como eles poderiam buscar a industrialização com o propósito de elevar o padrão de vida de seu povo em uma economia mundial ainda essencialmente estruturada em torno de relações imperiais de dominação?

O problema do capital

O principal problema enfrentado por todos os Estados do Terceiro Mundo, independentemente de seus nuances políticos, era como acumular as reservas básicas de capital das quais depende a industrialização avançada.

Economias estruturadas em torno da agricultura e extração de recursos — ou seja, produção de commodities básicas para exportação para o Ocidente industrializado — foram o resquício mais significativo do domínio imperial. Como resultado, esses países foram obrigados a importar de volta bens manufaturados, incluindo maquinário básico para suas próprias indústrias produtoras, resultando em uma crise desastrosa em seus termos comerciais. O que eles exportavam era sempre necessariamente menos valioso do que aquilo que precisavam importar. Embora os métodos coloniais diretos de controle tenham sido abolidos, a manutenção deste acordo por meio da influência política e econômica das antigas potências imperiais foi denominada “neocolonialismo” pelo presidente ganês Kwame Nkrumah, um dos primeiros teóricos do Terceiro Mundo.

Capital poderia ser acessado na forma de ajuda ou empréstimos de instituições financeiras internacionais ou diretamente de países mais ricos, mas este método representava um risco para a soberania nacional: os Estados seriam forçados a criar políticas para o benefício de seus credores internacionais, ao invés das necessidades imediatas de suas próprias populações. O capital também poderia ser acessado convidando-se o investimento estrangeiro direto, mas, visto que a maioria dos investidores estrangeiros já possuía capacidade de manufatura de alto valor em seu país de origem, esse investimento tendia a reforçar a dependência do Terceiro Mundo da produção de commodities de baixo valor; parafraseando o economista coreano Ha-Joon Chang, as corporações internacionais se voltavam ao Terceiro Mundo para fazer lascas de madeira ou batatas fritas (wood chips or potato chips), não microchips.

Isso deixou os Estados do Terceiro Mundo sujeitos principalmente às demandas dos investidores financeiros e de seus clientes de exportação, e cada vez menos às demandas de suas populações. O esvaziamento da democracia decorrente da política estatal sendo publicamente elaborada de acordo com as exigências dos interesses financeiros está agora sendo vivido pelo Ocidente desindustrializado, mas ocorreu inicialmente e de forma mais severa no Terceiro Mundo.

Instituições políticas como o Movimento dos Não Alinhados e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) encorajaram um reequilíbrio global do poder econômico em favor do Terceiro Mundo. Uma solução foi formar cartéis de produtores em oposição às megacorporações que dirigiram os fluxos globais de capital como uma arma política. A maioria deles fracassou, como a Associação Internacional da Bauxita, criada por iniciativa do líder social-democrata jamaicano Michael Manley, à medida que os países dentro dos cartéis exploravam os regimes de fixação de preços para minar seus concorrentes — uma espécie de Dilema do Prisioneiro executado em termos de comércio internacional.

O único grande sucesso foi a OPEP, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo. Os países que detinham o que era então o mais lucrativo dos recursos naturais conseguiram repelir o domínio das “Sete Irmãs” das principais empresas petrolíferas. No entanto, ao invés de promover o desenvolvimento do Terceiro Mundo como um todo, as nações produtoras de petróleo abandonaram os objetivos políticos do movimento e estabeleceram uma relação corporativa com seus equivalentes no cartel dos monopólios privados do petróleo.

O modelo comunista

A outra opção aberta aos Estados do Terceiro Mundo era o modelo comunista de desenvolvimento. Essa forma de autarquia econômica permitiu-lhes fechar as portas à exploração estrangeira e reconquistar um mínimo de soberania genuína.

O modelo de desenvolvimento comunista optou por uma rota acelerada para a industrialização autossuficiente, sacrificando certas liberdades democráticas liberais em favor da apropriação direta pelo Estado da mais-valia gerada pelos trabalhadores. O Estado então desviou tanto desse capital quanto ousou em direção ao investimento planejado em ativos estratégicos, contando com a redução da pobreza como uma fonte alternativa de legitimidade na ausência de democracia multipartidária.

Nos primeiros anos da descolonização, antes que os “economistas do desenvolvimento” ocidentais formulassem uma estratégia para exportar o capitalismo por outros meios que não o domínio imperial, o modelo econômico comunista tinha a vantagem de ser praticamente o único conjunto coerente de ferramentas políticas disponíveis para os líderes do Terceiro Mundo. O idealismo socialista ressoou com os objetivos igualitários dos novos Estados revolucionários nacionais. A União Soviética (e, em menor grau, a China) também buscava desesperadamente uma saída da posição sitiada em que se encontrava durante a Guerra Fria, e isso significava que os termos da ajuda soviética eram muitas vezes muito mais favoráveis do que aqueles oferecidos pelas potências ocidentais mais seguras.

Nos primeiros anos de independência, as potências imperiais que partiram deixaram as novas nações do Terceiro Mundo sem burocracias governamentais adequadas, corpo técnico ou instituições políticas desenvolvidas. Muitas vezes, os partidos comunistas clandestinos que estavam germinando no mundo colonizado desde a convocação radical do Comintern contra o imperialismo no início dos anos 1920 eram as únicas estruturas organizacionais úteis disponíveis. Além disso, muitas vezes eram os únicos com um programa econômico que se estendia além do próprio advento da independência.

No entanto, com exceção da China, a primeira onda de descolonização viu poucos Estados comunistas reais surgindo. Os líderes nacionalistas revolucionários do Terceiro Mundo eram geralmente oriundos da pequena burguesia nativa que havia sido promovida pelas potências imperialistas como uma interface entre eles e seus súditos. Eles não tinham nem vontade política nem meios econômicos para criar uma ditadura da classe trabalhadora industrial, especialmente naqueles lugares onde não existia realmente uma classe trabalhadora industrial.

A maioria reprimiu seus movimentos comunistas locais ou os absorveu em um Estado nacionalista revolucionário de caráter multi-classe, atividade para a qual Moscou fez vista grossa, ou mesmo endossou implicitamente, oferecendo termos de ajuda e comércio favoráveis a seus novos aliados nacionalistas.

O assassinato do Terceiro Mundo

Os novos Estados nacionalistas agora se encontravam em uma posição política tênue no difícil equilíbrio da Guerra Fria. Os Estados que pareciam progredir com mais ou menos êxito no caminho do desenvolvimento igualitário se viram diante de novas ameaças das antigas potências imperiais.

Onde a persuasão política ou a coerção econômica falharam em manter os mercados produtores de commodities abertos aos interesses ocidentais, a intervenção direta foi empregada. Uma série de golpes e intervenções militares, quase sempre após tentativas de nacionalização dos recursos naturais, radicalizou o Terceiro Mundo, levando a uma nova espiral de conflito.

Esses golpes e intervenções encontraram aliados solícitos no próprio Terceiro Mundo. As velhas classes sociais, especialmente nas altas patentes militares e entre os grandes proprietários de terras, viram-se deserdadas pelo crescente radicalismo dos governos nacionalistas e exploraram a paranoia anticomunista dos Estados Unidos para obter apoio crucial para suas tomadas de posse sangrentas.

Os Estados de libertação nacional, que necessariamente centralizaram um enorme poder político e econômico, eram extremamente vulneráveis a essa forma de decapitação. Muitas vezes, a população em geral havia sido suficientemente desmobilizada desde a luta de libertação ao ponto de se ver incapaz ou sem vontade de se levantar em defesa de seus próprios governos e, nos casos em que uma população altamente politizada e enérgica tentou partir em defesa do estado, foram submetidas a massacres e outras formas de repressão extrema.

A queda do regime socialista democrático do Irã em 1953, o assassinato sangrento de Patrice Lumumba no Congo em 1960, o genocídio indonésio de 1965 e o assassinato do chileno Salvador Allende em 1973 são todos exemplos dos riscos reais enfrentados pelos governos que priorizaram a soberania em detrimento dos interesses ocidentais. Todas as intervenções desse tipo resultaram na imposição de ditaduras severas que ofereceram suas populações como fonte de mão-de-obra barata à prospecção de capital estrangeiro; foi contra essa alternativa que os comunistas do Terceiro Mundo justificaram seus próprios experimentos nada democráticos na construção de seus Estados.

À medida que os governos nacionalistas com inclinações mais liberais foram substituídos por ditaduras militares linha dura, uma reação apareceu na esquerda, que cada vez mais abandonou o princípio do não alinhamento e apostou diretamente no campo soviético. Seguindo os exemplos de sucesso dos comunistas chineses, cubanos e vietnamitas na manutenção da soberania de seus países, a década de 1970 viu aparecer uma onda de governos explicitamente marxistas-leninistas , particularmente na África.

No entanto, esta última onda de radicalismo extremo ocorreu em um momento de desaceleração econômica e estagnação na própria União Soviética. O último suspiro da militância do Terceiro Mundo não encontrou por muito tempo o apoio que procurava no campo comunista, com os regimes em Angola, Etiópia e Afeganistão sendo rapidamente consumidos em guerras civis devastadoras, a última das quais finalmente ultrapassou a capacidade da União Soviética para sequer vir em seu socorro.

Desprovidos do peso econômico compensatório do campo soviético, os Estados que haviam seguido o modelo comunista de desenvolvimento foram forçados a retornar às instituições financeiras capitalistas como o FMI, a fim de acessar o crédito de curto prazo para pagar suas dívidas de longo prazo. O FMI, aproveitando a vantagem, atrelou o acesso ao capital à desregulamentação dos mercados, ao fim dos subsídios aos bens básicos e às privatizações em massa de serviços públicos e indústrias estatais.

Os “empréstimos para o ajuste estrutural” retrocederam anos do progresso social nos Estados de libertação nacional, levando-os de volta ao tipo de pobreza bruta que não era vista desde os dias mais tirânicos dos antigos impérios. Muitas economias industriais nascentes voltaram rapidamente à produção de commodities cruas, ou mesmo à agricultura de subsistência, já que os ativos do Estado foram canibalizados em nome da “reestruturação”.

O impacto foi sentido mais fortemente pelas mulheres, que muitas vezes dependiam de benefícios sociais para emergir de seu papel desprivilegiado dentro das estruturas sociais tradicionais. Não é à toa que a África do final dos anos oitenta e início dos anos noventa está tão intimamente associada à imagem de crianças famintas.

Embora alguns Estados tenham conseguido criar bases de manufatura estáveis o suficiente para competir nas novas condições — por exemplo, Brasil e Coreia do Sul — para a maioria, o medicamento matou o paciente, produzindo rápida contração econômica em vez de crescimento. Na década de 1990, as ruínas do Terceiro Mundo atuavam como um subsídio direto às economias do Primeiro, em que todas as pretensões de desenvolvimento social e econômico eram sacrificadas em favor do ônus de dívidas inimaginavelmente enormes. Essas foram as condições econômicas em que o fundamentalismo religioso e o etnonacionalismo hardcore substituíram o nacionalismo mais progressista e igualitário do Estado de libertação.

O projeto político do Terceiro Mundo foi uma joia brilhante de otimismo e orgulho em um sistema mundial mais geralmente caracterizado pelo cinismo implacável do conflito das superpotências. No entanto, qualquer que seja o caminho que esses novos regimes tenham alcançado, a armadilha do desenvolvimento os agarrou como um vício.

Alguns, como Porto Rico, abandonaram toda sua soberania aos Estados Unidos e se resignaram à pobreza em troca de acesso a investimentos do Primeiro Mundo e bens de consumo. Outros, como Cuba, tornaram-se ilhas fortificadas, isoladas do mercado capitalista mundial e totalmente dependentes de seus próprios recursos e do compromisso político de suas populações para sustentá-las.

Apesar do fim da Guerra Fria e da trágica morte do Terceiro Mundo, a armadilha do desenvolvimento ainda está entre nós hoje. Vive nos Estados falidos que nunca se recuperaram do colapso comunista, nas economias produtoras que permanecem presas na periferia do sistema capitalista mundial e, cada vez mais, está apodrecendo no próprio coração imperial, nas comunidades da classe trabalhadora abandonadas pelos governos a serviço do capital financeiro internacional.

Sobre o autor

Robert Maisey é ferroviário e oficial político da sucursal de Paddington Nº1 do RMT, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores Ferroviários, Marítimos e de Transportes do Reino Unido. Ele também faz parte do conselho regional dos sindicatos do Sul e do Sudoeste do País de Gales.

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