17 de fevereiro de 2021

A Odisseia da Conversibilidade

Experiências de flexibilização de contas em dólares têm histórico ruim na América Latina

Nelson Barbosa


A Câmara aprovou o projeto de lei (PL) cambial do BC. A proposta flexibiliza a abertura de contas bancárias em moeda estrangeira no país, e isso gerou debate sobre a pertinência ou não de conversibilidade plena do real. Mas o que é conversibilidade plena?

Pela ótica econômica, uma moeda é conversível quando você pode pagar todos os seus compromissos externos nessa moeda. Em outras palavras, a moeda nacional é conversível se for aceita como meio de pagamento internacional.

No caso do Brasil, até podemos pagar algumas coisas em reais no Mercosul, mas nossa moeda não vai muito além disso. Para se tornar meio de pagamento internacional, é preciso ter aceitação geral no resto do mundo, algo que não se resolve por decreto. Nesse aspecto, o PL do BC não determinará a conversibilidade plena do real.

Pela ótica jurídica, a coisa fica mais simples. Conversibilidade significa livre mobilidade de recursos, com tratamento equânime para transações em moeda doméstica ou estrangeira.

Por exemplo, no Brasil, pagamos IOF adicional sobre compras de cartão de crédito em moeda estrangeira. Para haver conversibilidade jurídica, não deveria haver tributação diferente devido ao meio de pagamento escolhido. O PL do BC não mexe (ainda bem) na tributação, logo não haverá conversibilidade plena.

Outro exemplo, conversibilidade significa que o país não pode impor limites diferentes para operações em moeda doméstica e estrangeira. Em outras palavras, não podem existir controles quantitativos somente sobre fluxos em moeda estrangeira. O PL do BC propõe que caminhemos nessa direção, mas na prática a teoria é outra (ainda bem de novo), pois o próprio BC disse que não pretende liberar toda e qualquer transação em dólares no país.

Chegamos, então, às contas em moeda estrangeira. Conversibilidade plena significa, por exemplo, que qualquer um poderá abrir conta em dólares em nosso sistema bancário.

A pessoa iria à agência, compraria dólares pelo câmbio do dia e, em vez de sair com as notas, deixaria os recursos depositados em uma conta bancária. Se e quando fosse sacar, a pessoa sairia com dólares do banco. Se o banco tiver dólares para honrar os depósitos, tudo bem. Mas e se o banco não tiver dólares?

Experiências de flexibilização de contas em dólares têm histórico ruim na América Latina. Não faz muito tempo, a Argentina viveu grande crise quando as pessoas tentaram tirar seus dólares dos bancos, descobrindo que não havia divisas para todos (vejam o magnífico filme “A Odisseia dos Tontos”).

No Brasil, nunca fomos tão longe. O máximo que fazemos é permitir aplicações domésticas indexadas à taxa de câmbio, mas pagas em reais. Avançar para contas em dólares para todos seria uma novidade, com potencial de aumentar a instabilidade de nosso sistema financeiro.

O que diz o BC? Segundo o discurso oficial, será tudo feito com muito cuidado, sem permissão para que todos tenham contas em dólares. A pergunta óbvia, portanto, é: quem serão os agraciados com sistema bimonetário? Sobre isso o BC não deu esclarecimentos, limitando-se a dizer que será definido “pelo regulamento”.

E quem fará o regulamento? Os diretores do BC, que acabaram de ganhar autonomia em relação aos representantes eleitos pela sociedade, mas não em relação ao sistema financeiro.

Diante do maior poder concedido ao BC, sugiro que o Senado revise o PL cambial aprovado pela Câmara. É preciso dizer claramente quem definirá detalhes importantes do novo regulamento cambial, do contrário podemos ter nossa própria “Odisseia dos Tontos”.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

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