11 de fevereiro de 2021

A revolução feminista chegou

Os feminismos que emergem fortemente do sul do mundo desempenham um papel fundamental tanto na possibilidade de tornar realista uma experiência revolucionária quanto em sacudir as imagens e noções que preservamos da "revolução".

Verónica Gago

Jacobin

A existência do feminismo de massa nos últimos cinco anos é uma novidade fundamental. (Foto: Telam)

Tradução / As revoltas dos últimos anos no Chile e na América Latina fizeram a palavra “revolução” voltar a circular pelo continente. Com isso em mente, proponho aqui caracterizar alguns pontos que permitem afirmar que o relançamento do antagonismo político que a América Latina vive ocorre a partir da revolução feminista.

Vou apontar seis motivos pelos quais acredito que os feminismos que emergem com força a partir do sul do mundo –e do sul das metrópoles– estão desempenhando um papel fundamental. Por sua capacidade de tornar realista, enunciável e palpável uma experiência revolucionária, mas também pela sua própria dinâmica, que nos obrigada a sacudir as imagens e noções que preservamos da “revolução”: colocar em avaliação coletiva o que evocamos e o que queremos com esse termo, bem como explicitar as dificuldades que ele cria.

Dimensão de massas

Em primeiro lugar, a existência de um feminismo de massas me parece uma característica do movimento que, desde pelo menos os últimos cinco anos, tem dado ao feminismo um novo ímpeto. Essa dimensão tem a ver com a capacidade de produzir mobilizações inéditas em sua força, capaz de ocupar as ruas, praças e cidades simultaneamente ao redor do mundo, de fazê-las perdurar no tempo não como eventos isolados, mas como um processo político que busca suas formas de acumulação, suas zonas de descanso e mudança de ritmo, seus compromissos de elaboração.

Essas mobilizações massivas são efeito de um enorme trabalho político, de uma raiva que encontra força expressiva, de uma cotidianidade que se encontra permanentemente problematizada (a massificação tem repercussões nas casas e nas camas, também se dá nelas) e de uma inteligência política que se ocupa de alimentá-la (Penso no que nutriu a ação das Las Tesis, por exemplo, em meio à revolta no Chile).

A dimensão de massas, multitudinária, de maiorias, afirma uma dimensão revolucionária porque efetivamente confirma uma capacidade de «afecção» que não se reduz a pequenos grupos, não se permitindo ser confinada como um setor e fazendo de sua expansividade uma política concreta. Acima de tudo, quando sabemos que as condições da maioria são as mais implacáveis. Então, o fato de que as imagens políticas da massificação tenham no feminismo um protagonismo decisivo aponta um componente revolucionário por sua força de interpelação, por sua capacidade de produzir uma experiência de subjetivação para novas gerações, por sua fórmula organizativa que permite uma coordenação em grande escala.

Mas também porque essa massificação é uma combinação de ações, chamadas, discussões, assembléias e coordenações. Nesse vai e vem, a relação entre massificação e vetores de lutas minoritárias se conjuga de uma nova forma. O minoritário –entendido como uma composição política que desacata os sujeitos historicamente legítimos da revolução– ganha escala de massas como vetor de radicalização dentro dessa maré transfeminista. Se desafia, assim, a máquina neoliberal de reconhecimento de minorias e de pacificação da diferença. Mas também se trabalha a massificação a partir das questões que costumam permanecer negligenciadas ou desconhecidas, quando a massificação é concebida apenas em termos numéricos, quantitativos ou por sua força homogênea e achatante.

Violência neoliberal

O que é que se massifica nessa experiência coletiva de colocar o corpo na rua? Diria que um dos elementos é a caracterização concreta da violência neoliberal; que, por sua vez, pode ser entendida como um elemento-chave do internacionalismo do movimento feminista (voltarei a isso mais adiante).

Trata-se de uma caracterização da violência neoliberal que se dá de forma concreta, a partir da experiência cotidiana de espoliação, precarização e de exploração que permitem compreender as maneiras nas quais essas violências funcionam em engrenagens diretas com as violências machistas. Trata-se, entendo, de uma leitura da totalidade dessas violências, uma leitura sistêmica e, ao mesmo tempo, compreensível a partir da vida cotidiana.

Essa compreensão é corpórea, é situada e, ao mesmo tempo, é coletiva sem ser abstrata. Isso permite também dar força a uma maneira de rejeitar, de dizer chega aos modos filantrópicos e paternalistas com os quais se quer remediar a precariedade, impondo formas conservadoras e reacionárias de subjetivação aceitas pelo medo,

Isso estimula as iniciativas feministas a se definirem como antineoliberais não apenas como uma afirmação ideológica, mas a partir da prática concreta de sinalizar as fronteiras em que se combate o avanço do capital. Quer dizer, posicionar o confronto contra a privatização das aposentadorias, contra o endividamento doméstico, contra os cortes de serviços públicos, contra a diminuição de salários, etc. em relação ao modo como a violência é coproduzida contra determinados corpos, marcados pelo seu gênero e raça, não só dá conteúdo concreto ao antineoliberalismo na dinâmica feminista, como também contesta a própria vulgata neoliberal de que a competição se tornou um mutação antropológica e, portanto, não existe fora de sua governamentalidade onipresente.

É a intersecção e concatenação desses conflitos que tece, justamente, essa perspectiva sistêmica a ponto de (como vemos hoje no Chile) discutir a constitucionalização do neoliberalismo, a normatividade que lhe é própria e que em nosso continente tem como origem ditaduras militares.

É por isso que são –estão sendo– os feminismos do sul do planeta aqueles a permitir também deslocar as narrativas euroatlânticas, a partir das quais se costuma conceitualizar o neoliberalismo. Temos em nossa região mais de quatro décadas de mutações neoliberais que nos permitem ver várias coisas. Por um lado, apontar a origem do próprio liberalismo em termos de violência, associado às ditaduras e as formas de constitucionalização neoliberal que apontei. Por outro, compreender suas mutações posteriores, desde o ponto de vista das lutas que o desafiaram e que permitem a leitura na contramão de suas estratégias; ou seja: apresentar o que subverte as lutas como o que determina a orientação de sua mutação.

Falar do caráter polimórfico, da capacidade combinatória, versátil do neoliberalismo leva a mostrar que a governabilidade neoliberal se refere a uma racionalidade política que não se reduz ao aparato do governo e que disputa as subjetividades como espaço estratégico de produção de governo.

Se o neoliberalismo necessita agora se aliar com forças conservadoras retrógradas –da supremacia branca aos fundamentalistas religiosos, do inconsciente colonial a espoliação financeira mais desenfreada– é porque a desestabilização das autoridades patriarcais e racistas colocam em risco a própria acumulação de capital no presente. Aí mesmo os feminismos exibem sua capacidade de reviver o antagonismo e o conflito, porque atacam a estrutura de subordinação e exploração em uma área sensível e estratégica: justamente onde o neoliberalismo se articula com as forças reacionárias da ordem da família, da sexualidade, do mérito dos subsídios sociais, do trabalho não remunerado, da legislação anti-imigração etc.

Transversalização

Essa caracterização do neoliberalismo não é abstrata ou meramente analítica, permitindo uma enorme capacidade de fazer alianças políticas e de contaminação e de ampliação das dinâmicas próprias das lutas feministas no interior de outras lutas. Não simplesmente como setor ou conjunto de demandas, mas também na própria formulação do que se demanda, nas maneiras de organizar o protesto e na ampliação de pessoas envolvidas.

Penso tanto na forma como a linha de frente dos protestos no Chile se encarregou do cuidado e de uma verdadeira infraestrutura para a reprodução da revolta, como na experiência das jovens que desarmam bombas no Peru ou no modo como o diagnóstico feminista da crise pandêmica na Argentina sustentou a demanda pelo aborto como emergência.

Discutir a violência neoliberal como uma questão política que permite conectar, mapear e, por tanto, identificar em que sentido a violência é –como disse Silvia Federici– uma força produtiva de primeira ordem nos momentos de reedição da acumulação originária produz efeitos concretos. Falamos com Luci Cavallero, nesses meses de crise acelerada pela pandemia, de uma «violência proprietária», justamente porque a propriedade está visibilizada como a fronteira que atravessa cada conflito na pandemia de uma maneira mais evidente que em outros momentos. Apontamos que essa batalha aparece concentrada nos territórios da reprodução social (que vão da moradia aos serviços de saúde, dos monopólios de alimentos ao acesso à pensões) e sobre o comando do trabalho futuro que o endividamento doméstico busca controlar.

Ao mesmo tempo, vemos também como, na crise, a divisão entre pessoas proprietárias e não proprietárias se aprofunda através de lógicas familiaristas, as quais vinham sendo fortemente questionadas a favor da construção de espacialidades feministas. Discutir a propriedade é um ponto que esta revolução feminista adiantou, localizando a questão do que significa o dispositivo proprietário sobre os corpos das mulheres e os corpos com capacidade de gestação. Me parece que esse debate não fica, de novo, confinando, mas se conecta com um debate sobre a propriedade que é mais amplo e que efetivamente nos provoca a pensar e ensaiar outras formas não extrativistas de relacionamentos com os corpos e os territórios.

A luta pela propriedade de que falamos se desenrola na demanda concreta de usos comuns e públicos de bens e serviços que tornam possível (ou não) a reprodução da vida pessoal e coletiva. Visibilizada a reprodução como esfera estratégica sobre a qual se monta a espoliação neoliberal e o endividamento doméstico, a socialização de seus meios e recursos emergiram como um dos elementos comuns a nível global. Na maioria dos países, a financeirização dos direitos sociais (que significa acesso a eles através de dívidas e em benefício dos bancos e corporações) foi a segunda fase após a privatização das infraestruturas públicas e o afogamento das economias autogeridas.

Logo, os planos de confronto aberto são legíveis, em boa medida, pela dinâmica feminista de politização da esfera da reprodução, apontada como motim de guerra da violência neoliberal: de quem são os serviços públicos? A quem pertence a produção de alimentos e medicamentos? De quem são as moradias? Quais ameaças contra o acesso à educação estão em andamento? De quem são as fortunas? Quais dívidas se estão criando e quais reformas tributárias a crise exige? Além disso: não discutíamos qual ordem sexual traz consigo a propriedade privada sobre corpos e territórios? Assim, a grande pergunta sobre quem vai pagar pela crise hoje envolve diretamente a discussão da propriedade.

Atualizar a noção de classe

Contra a oposição «identidade versus classe» ou «a temática do poder versus a temática da exploração», com que muitas vezes se tenta encurralar as lutas atuais, as revoltas feministas expressam, mobilizam e difundem uma mudança na composição das classes trabalhadoras e do que se entende por trabalho, transbordando suas classificações e hierarquias.

A dimensão de classe dos feminismos se coloca em jogo quando se fala de trabalho reprodutivo, desde a violência que sustenta a apropriação extrativista contra certos corpos e territórios até a prática da greve, que põe em evidência não uma substituição e dissolução da questão da exploração, mas uma reformulação do modo como essa exploração se organiza quando os mandatos de gênero e os privilégios racistas são questionados como parte do triângulo indissolúvel entre capital, patriarcado, colonialismo (para citar a imagem da qual se utiliza Raquel Guitiérrez Aguilar).

Várias análises apontam uma nova articulação entre patriarcado e capitalismo que se expressa como uma nova articulação entre produção e reprodução, orientada à mutação do capitalismo neoliberal. Por isso, aqui temos a chave para agregar a dimensão financeira à análise da reprodução social como vem insistindo o feminismo há décadas. Porque é um lugar concreto onde moralidade e exploração estão atados, mas também porque é nesse plano que a forma de mercado mundial se acelera.

Na América Latina, o endividamento das economias domésticas, das economias não assalariadas, das economias consideradas historicamente não produtivas, entendido desde uma leitura feminista da dívida, permite compreender os dispositivos financeiros como verdadeiros mecanismos de extração de valor e confinamento das vidas e atribuição de tarefas segundo mandatos de gênero, segundo a lógica do relançamento de um processo de colonização.

A fisionomia que leva a recomposição do classicamente chamado conflito trabalhista para fora de suas coordenadas usuais (um marco assalariado, sindical, masculino), nos leva a pensar como a expansão do sistema financeiro é, por um lado, uma resposta a uma sequência específica de lutas, e por outro, uma dinâmica de contenção que organiza uma certa experiência da crise atual (sob propostas de inclusão financeira).

Esta perspectiva nos permite também entender de qual modo o endividamento massivo de populações –majoritariamente não assalariadas, migrantes, feminizadas– requer um tipo específico de disciplina e, eventualmente, criminalização. É outro modo de caracterizar a questão trabalhista, a partir de uma perspectiva feminista em nossos dias, compreendendo as formas de exploração do momento neoliberal. Aqui, entendo, também está em jogo um sentido preciso de como a subjetivação de massas que as revoltas feministas provocaram é um componente chave desta batalha contra o neoliberalismo que se transforma infinitamente, infinito, neutraliza todos os limites, no sentido do infinito financeiro utópico.

Internacionalismo

É aqui também que a dimensão transnacional da revolução feminista, sua capacidade de combinar movimento, tendências e intensidades diversas em um escala mundal, vem sendo a possibilidade de um novo internacionalismo. Sabemos que as coordenações são trabalhosas, mas também frutíferas. Que as sínteses que estão sendo alcançadas (de ações, conceitos, demandas) têm conteúdos programáticos que surgem da revolta e de sua imaginação política.

É também a conjugação de uma pergunta política que talvez pudesse ser dita assim: Como seguimos colocando em primeiro lugar que as violências machistas são impensáveis sem as violências econômicas? Como suspendemos a extração de rendas (financeira, imobiliária, agrária das transnacionais e do agronegócio e responsáveis pelo colapso ecológico)? Quais capacidades de reapropriação da riqueza coletiva estão se desenvolvendo? Como sustentar uma espacialidade de lutas que são locais com impacto transnacional? Na saga das greves feministas, estas perguntas ganharam densidade e hoje, diante da crise, se tornam urgentes.

Reformular a relação entre lutas e instituições

Por último, nesse enorme tema seria uma intervenção em si, mas que considero útil, o conceito de realpolitik revolucionário que podemos tomar de Rosa Luxemburgo (e, em particular, o resgate que faz Friga Haugg). É um modo de vincular as transformações cotidianas com o horizonte da mudança radical, em um movimento aqui e agora, de mútua imbricação, em uma política desde baixo. Isso nos põe na necessidade de seguir o desenvolvimento dessa relação com processos concretos, fazendo balanços coletivos e avaliando por onde se tensiona a disputa em cada lugar.

Assim, a teleologia do «objetivo final» se desloca, mas não porque deixe de existir ou fique debilitada, mas porque entra em outra relação temporal com a política cotidiana, impregnando de dinâmica revolucionária cada ação concreta e pontual. A oposição torna-se complementar em termos de radicalização de uma política concreta que os feminismos estão colocando nas ruas, nas camas e nas casas.

Porém, também se cria uma temporalidade estratégica que é o desdobramento no tempo presente do movimento. Consegue-se trabalhar as contradições existentes sem esperar a aparição de pessoas absolutamente liberadas, condições ideais para as lutas ou confiando em um único espaço que totalize a transformação social. Apela-se à potência de ruptura de cada ação, não limitando a ruptura a um movimento final espetacular de uma acumulação estritamente evolutiva. Isso implica outra densidade à noção do feminismo como revolução cotidiada, porque disputa como a orientação de cada crise se determina a partir de práticas concretas e, nessa chave, nos dá uma pista preciosa para a política feminista. Uma política que não pode estar abaixo de uma pragmática vitalista, ávida por revolucionar tudo e, por isso, com capacidade de reinventar o realismo. Uma realpolitik revolucionária.

Uma versão desse texto foi apresentada na Conferencia Internacional de Materialismo Histórico.

Sobre a autora

Professora da Universidad de Buenos Aires (UBA) e na Universidad Nacional de San Martín (UNSAM) e pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), da Argentina. É parte do Conselho Consultivo da Jacobin América Latina.

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