O ex-presidente Lula (PT) durante agenda de sua pré-campanha ao Planalto - Marlene Bergamo - 12.mai.2022/Folhapress |
A dianteira das intenções de voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em grupos da base da pirâmide social e a expressiva rejeição ao presidente Jair Bolsonaro (PL) nesses segmentos menos privilegiados sinalizam fenômenos para além da corrida ao Planalto deste ano.
Pesquisadores da ciência política e analistas têm identificado nas pesquisas eleitorais pistas de mudanças mais profundas, tanto no aspecto do poder de decisão —com influência mais sensível das camadas populares em detrimento das elitizadas— quanto no processo democrático.
Ao mesmo tempo, a vantagem de Lula em setores como mulheres, negros, pobres e moradores do Nordeste, em contraste com a predileção por Bolsonaro em estratos como homens, brancos, ricos e empresários, acentua a crescente divisão do eleitorado nos pleitos nacionais.
Fatores sociais, políticos e culturais ajudam a explicar a chamada clivagem social do voto, com contraposição clara entre fatias da população e também cisões dentro de parcelas específicas (homens estão mais divididos entre Lula e Bolsonaro, mulheres majoritariamente escolhem o petista).
Antes mais nítida no segundo turno, a segmentação se antecipou com o afunilamento precoce entre o petista, que no Datafolha tem 48%, e o atual mandatário, com 27%. O terceiro colocado, Ciro Gomes (PDT), possui 7%.
"É uma oposição entre dois Brasis", diz o cientista político Felipe Nunes, também diretor da Quaest, que faz pesquisas eleitorais. Ele vê um cenário em que a polarização se torna não só política ou partidária, mas também social e afetiva. "Isso põe em jogo direitos, privilégios e recursos."
O fato de Lula estar hoje 21 pontos percentuais à frente de Bolsonaro, com favoritismo superior entre classes menos favorecidas, evidencia o peso desses grupos nos rumos do pleito. Não se trata de um deslocamento do eixo definidor do resultado, mas de uma questão mais ampla.
Parcelas que aderem ao petista são numericamente robustas no total da população —mulheres, por exemplo, correspondem a 53%, e pessoas com renda familiar mensal de até dois salários mínimos são 52%, conforme o Datafolha—, mas avançaram em uma espécie de escala de poder simbólico.
Campanhas pelo empoderamento feminino e contra o racismo estão na raiz de alterações estruturais recentes, por exemplo. Há ainda a organização da visão de mundo por "bolhas", maximizada pelas redes sociais, que contribui para o que Nunes classifica como esgarçamento social.
"As distâncias estão cada vez mais cristalinas, pautadas por pertencimento de grupo e identificação no espaço social. Grupos que sempre levaram desvantagem começaram a desenvolver um sentimento diferente. Não é mais olhar o patrão como amigo, a elite como algo que está ao lado", diz ele.
Embora o ramo dos empresários represente 3% da população e a categoria dos que têm renda familiar superior a dez salários seja de 2%, historicamente o establishment assume papel importante em eleições por concentrar financiadores, agentes públicos e formadores de opinião.
"Grupos que antes talvez não eram foco de atenção da classe política estão se tornando cada vez mais cruciais e se mobilizando por seus interesses, como é o caso de mulheres, negros e jovens", diz Natália de Paula Moreira, doutora em ciência política pela USP que estuda a participação feminina.
Teorias acadêmicas sustentam que eleições são mais do que votar em A ou B: elas promovem amadurecimento democrático a longo prazo. Ainda que inconscientemente, o cidadão tende a se politizar e a desenvolver senso mais aguçado de consciência e decisão.
No último dia 29, quando a Folha publicou reportagem sobre características dos eleitorados de Lula e Bolsonaro reveladas pela sondagem do Datafolha, um leitor usou a caixa de comentários para exprimir sua opinião —que originou a ideia de debater o assunto nesta reportagem.
"A influência das elites econômicas e dos homens brancos está diminuindo", escreveu Thomas Bustamante. "O Brasil será salvo pelos pretos, pobres, mulheres e nordestinos. Estes parecem entender muito mais de civilidade e respeito do que aqueles que tradicionalmente mandaram."
A eleição de 2006, em que Lula derrotou aquele que hoje é seu vice, Geraldo Alckmin (à época no PSDB, agora no PSB), é considerada icônica para o movimento de fragmentação.
No Datafolha da véspera do segundo turno naquele ano, o candidato do PT abria larga vantagem, por exemplo, entre os mais pobres (69% a 31%), ao passo que o então tucano crescia conforme aumentava a renda, sendo o predileto na ponta mais endinheirada (56% a 44%).
Até então, a tendência era a de votações mais homogêneas, segundo o sociólogo e cientista político Antonio Lavareda. Dados compilados por ele no livro "Emoções Ocultas e Estratégias Eleitorais" (ed. Objetiva) mostram distribuição mais equilibrada do vencedor dentro de cada estrato.
Por exemplo: na faixa de dois a cinco salários mínimos, Fernando Collor (PRN) teve 56% das intenções de voto em 1989; Fernando Henrique Cardoso (PSDB) pontuou 55% em 1994 e 59% em 1998; e Lula obteve 66% em 2002 e 57% em 2006. As proporções também se aproximavam quanto ao grau de escolaridade.
Lavareda, que é ligado ao instituto de pesquisas Ipespe, afirma que o quadro atual dá indícios de "maior autonomização das camadas de menor renda", com convergência em Lula sobretudo pelo viés econômico. O bolsonarismo, afirma o especialista, envolve mais traços ideológicos.
Em 2018, a vitória de Bolsonaro resultou da adesão de parte da camada social mais elevada —porta-vozes do PIB, personalidades, líderes políticos— e do apoio popular movido por forte antipetismo.
Lavareda entende que, desta vez, "a economia 'deselege' Bolsonaro" e é ilusão pensar que "as elites, após a democratização da comunicação, ainda possam conduzir a formação de opinião dos segmentos inferiores". De acordo com ele, a realidade demonstra que o eleitor é pragmático.
Outros pesquisadores concordam que é preciso considerar a crise econômica como pano de fundo da enxurrada de votos dos mais pobres em Lula. O petista evoca a memória de seus dois mandatos (2003-2010) para se colocar como alternativa ao atual estado de coisas.
Segundo o Datafolha, 53% das pessoas dizem que a economia influencia muito na decisão de voto, e 75% apontam que o governo Bolsonaro tem responsabilidade pela inflação.
"Se fosse verdade que os grupos da elite ainda dão as cartas, a terceira via estaria competitiva, e não é o que estamos vendo", observa o cientista político Carlos Melo, que também é professor do Insper.
Para ele, a proibição de doações de empresas para campanhas e a criação do fundo eleitoral público, da ordem de R$ 5 bilhões neste ano, propiciaram menor dependência dos partidos em relação à iniciativa privada —o que não exclui aproximações.
Melo lembra que em 2002 Lula venceu mesmo sem ter o apoio inicial do topo da pirâmide. "Ele nunca foi exatamente adorado por esses setores, mas compôs muito bem com eles quando chegou ao poder. Sem isso, talvez não tivesse governado."
Neste ano, o discurso eleitoral do petista apostou até aqui nas camadas populares, com a promessa de volta a um tempo de picanha e cerveja, mas começa a intensificar acenos ao setor produtivo. Dias atrás, Lula disse que só conversaria com o mercado quando ele tivesse interesse.
Pessoas do entorno reconhecem que o ex-presidente não conta hoje com o apoio das esferas mais altas, mas rejeitam a ideia de buscar aval do mercado, argumentando que soaria como submissão. Por outro lado, o diagnóstico do PT é o de que a base menos abastada seguirá com ele.
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