Mike Davis
Créditos: Robert F. Sargent / National Archives. |
Tradução / A batalha decisiva pela libertação da Europa começou há 70 anos, em junho, quando um exército soviético de guerrilhas emergiu das florestas e charcos da Bielorrússia, para lançar ataque surpresa contra a retaguarda da poderosa Wehrmacht.
As brigadas do Exército Vermelho e combatentes da Resistência, entre os quais muitos judeus e foragidos de campos de concentração, plantaram 40 mil cargas de demolição. Devastaram as estradas de ferro, vitais para a conexão entre o Centro do Exército Alemão e suas bases na Polônia e no leste da Prússia.
Três dias depois, dia 22/6/1944, no terceiro aniversário da invasão de Hitler contra a União Soviética, o marechal Zhukov deu a ordem para o assalto principal contra as linhas alemãs. 26 mil armas pesadas pulverizaram as posições avançadas dos alemães. Os gritos dos foguetes Katyusha foram seguidos pelo rugido de 4 mil tanques e pelos gritos de combate (em mais de 40 línguas) dos 1,6 milhão de soldados soviéticos. Assim começou a Operação Bagration, assalto contra um front alemão de mais de 600 quilômetros.
Esse “grande terremoto militar”, como o designou o historiador John Erickson, só parou nos arredores de Varsóvia, com Hitler deslocando as reservas de elite da Europa ocidental para tentar conter a maré vermelha no leste. Resultado disso, tropas norte-americanas e britânicas que combatiam na Normandia não tiveram de enfrentar as divisões Panzer mais bem equipadas.
Mas o que os norte-americanos algum dia souberam sobre a Operação Bagration? Junho de 1944 significa a Praia de Omaha, não o Rio Dvina a ser ultrapassado. A ofensiva soviética do verão foi várias vezes maior que a Invasão da Normandia (Operação Overlord),tanto na escala das forças envolvidas quando no preço direto que custou aos alemães.
No final do verão, o Exército Vermelho chegara já às portas de Varsóvia e às trilhas entre os Cárpatos que levam à Europa Central. Tanques soviéticos já haviam tomado em movimento de pinça o Centro do Exército Alemão e o destruíram. Só na Bielorrússia, os alemães perderiam mais de 300 mil homens. Outro gigantesco exército alemão fora cercado e seria aniquilado ao longo da costa do Báltico. E estava aberta a estrada para Berlim. Graças ao soldado Ivã.
Não se trata de não ver os valentes que morreram no deserto do norte da África ou nas florestas geladas em torno de Bastogne. Trata-se, isso sim, de lembrar que 70% da Wehrmacht estão sepultados, não em campos franceses, mas nas estepes da Rússia. Na luta contra o nazismo, morreram cerca de 40 ‘Ivãs’ para cada “soldado Ryan’.
Hoje os especialistas estimam que 27 milhões de soldados e cidadãos soviéticos morreram na 2ª Guerra Mundial. Estranhamente porém, o soldado soviético comum – o mecânico de tratores de Samara, o ator de Orel, o mineiro de Donetsk, a menina do ginásio de Leningrado – é invisível na atual celebração e remitologização da “grande geração”.
É como se o “novo século norte-americano” não consiga jamais nascer sem, antes, exorcizar o papel central que os soviéticos tiveram na vitória epocal contra o fascismo, que marcou o século 20.
Verdade é que muitos norte-americanos são chocantemente ignorantes de grande parte da verdade sobre combates e mortos na 2a. Guerra Mundial. E até os raros que compreendem alguma coisa do gigantesco sacrifício dos soviéticos para derrotar o nazismo na Europa tendem a vê-lo em termos de estereótipos ‘jornalísticos’: o Exército Vermelho não passaria de horda bárbara movida pela besta fera do vingancismo e do nacionalismo russo. Combatentes civilizados, que defendiam ideais civilizados de liberdade e democracia, para os norte-americanos, só GI Joe e Tommy...
Por isso precisamente é ainda mais importante lembrar que – apesar de Stálin, do NKVD e do massacre de uma geração de líderes bolcheviques – o Exército Vermelho sempre preservou elementos poderosos da fraternidade revolucionária. Aos olhos dos russos, e dos muitos que o Exército Vermelho livrou das garras dos nazistas, aquele ainda é o maior exército de libertação da história do mundo. Importante saber que o Exército Vermelho de 1944 ainda era exército soviético.
Entre os generais soviéticos que lideraram a tomada do rio Dvina havia um judeu (Chernyakovskii), um armênio (Bagramyan) e um polonês. Diferente das forças britânicas e dos EUA – divididas por classes e racialmente segregadas –, o comando do Exército Vermelho era escada aberta, embora difícil de escalar, de oportunidades.
Quem ainda tenha dúvidas da paixão revolucionária e da humanidade que unia todos no Exército Vermelho, deve consultar as extraordinárias memórias de Primo Levi (É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990) e KS Karol (Entre Dois Mundos). Ambos odiaram o stalinismo e amaram o/a soldado/a soviético/a comum, e viam nele/nela as sementes da renovação do socialismo.
Assim sendo, depois da recente [em 2004] degradação, por George Bush, da memória do Dia D, reduzido a cena explícita de apoio aos crimes dos EUA no Iraque e no Afeganistão, tomei a decisão de fazer, eu mesmo, minha comemoração privada.
Relembro então, em primeiro lugar, meu Tio Bill, caixeiro viajante de Columbus – e é difícil ver aquela alma gentil como guerreiro adolescente GI na Normandia. E em seguida – como tenho certeza de que meu Tio Bill teria aprovado – relembro também seu camarada soldado Ivã.
O camarada Ivã dirigiu seu tanque até o portão de Auschwitz; foi quem abriu caminho até o bunker de Hitler. A coragem e a tenacidade do camarada Ivã derrotaram a Wehrmacht, e nada tiveram a ver com os erros do tempo de guerra e os crimes de Stálin. O mundo tem dois heróis: meu Tio Bill e seu camarada Ivã, soviético. É obsceno homenagear o primeiro sem também homenagear o segundo.
Sobre o autor
Mike Davis leciona história americana na University of California at Irvine e é um editor da New Left Review; seu último livro é Dead Cities.
Sobre o autor
Mike Davis leciona história americana na University of California at Irvine e é um editor da New Left Review; seu último livro é Dead Cities.
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