30 de setembro de 2018

Constituição mudou preferência eleitoral dos mais pobres, diz professora

Hoje eleitorado revela, segundo cientista política, racionalidade similar a democracias mais desenvolvidas

Marta Arretche

Folha de S.Paulo

Ilustração: Ana Elisa Egreja

Rios de tinta foram dedicados ao comportamento desviante dos eleitores da América Latina. Com a possível exceção da Argentina e do Uruguai, aqui, os eleitores mais pobres pareciam não se revelar propensos a votar em partidos com plataformas redistributivas. Estes catalisavam com mais frequência a simpatia de eleitores progressistas mais escolarizados.

Haveria, portanto, algo radicalmente distinto no perfil do eleitor latino-americano que o impediria de se comportar como o das democracias avançadas, nas quais a renda e a escolaridade seriam bons indicadores das preferências partidárias.

Lá, à esquerda e à direita corresponderiam bases eleitorais distintas. Pobres votariam em partidos que prometem melhorar seu bem-estar ao passo que os mais afortunados votariam em partidos que prometem reduzir os impostos.

Na América Latina, diferentemente, a fragilidade programática do sistema partidário se combinaria à irracionalidade do eleitorado, que não votaria de acordo com seus interesses materiais. Há quem culpe os partidos, por não apresentarem claramente suas plataformas. Há quem culpe o eleitor, por não saber escolher seus candidatos. Mas, causas à parte, os diagnósticos convergem para afirmar nossa inferioridade em relação às democracias avançadas.

O voto econômico —isto é, preferências partidárias alinhadas à renda dos eleitores— parece ser mais evidente em países em que a desigualdade é menor, tais como as democracias europeias. Onde a desigualdade é maior, como na América Latina, não é claro que quanto mais baixa a renda dos eleitores, maior a probabilidade de voto em partidos cujas plataformas eleitorais priorizam o bem-estar da maioria.

De fato, no Brasil, partidos clientelistas obtiveram por longo tempo sucesso eleitoral nos distritos com maior concentração de população vulnerável. O fenômeno não é restrito à região Nordeste. Redutos eleitorais de partidos conservadores abunda(ra)m nas regiões mais ricas. Alguma forma de irracionalidade ou de desinformação acometeria esses eleitores, concluem os analistas.

Mas, por que apenas os eleitores latino-americanos e brasileiros se comportariam desse modo? Por que a irracionalidade seria um atributo dos trópicos? Falta de escolaridade, respondem prontamente alguns observadores.

De fato, a ciência política acumulou fartas evidências da relação positiva entre níveis de escolaridade e informação política. Mas o fato é que o apoio aos partidos com plataformas redistributivas na Europa começou a ocorrer ainda no século 19, sob baixos níveis de escolaridade.

Na democracia limitada de 1946, bem como no regime democrático atual, a associação entre renda e preferências partidárias dos eleitores ocorreu de modo gradual, à medida que a operação regular do sistema politico se adensava, também sob baixos níveis de escolaridade.

Estudo sobre as preferências dos eleitores latino-americanos publicado neste ano na World Politics por Alisha C. Holland, da Universidade Princeton, nos apresenta uma proposição útil para melhor entender o quadro eleitoral —da eleição em curso e muito provavelmente de eleições futuras.

Eleitores que não recebem benefícios sociais apresentam expectativas deprimidas. Não acreditam que seu voto poderá se converter em políticas que aumentarão seu bem-estar. Os indivíduos precisam experimentar políticas que lhes trazem benefícios tangíveis para apoiar plataformas redistributivas.

Logo, a diferença entre a América Latina e as democracias avançadas não estaria no eleitor, mas na credibilidade de que os eleitos de fato entreguem as políticas que prometem.

A Constituição de 1988 mudou muito o desenho das políticas sociais brasileiras. Até ali, só tinha direito a aposentadoria e a assistência médica quem tivesse carteira assinada, cerca de 40% da força de trabalho no final dos anos 80. Até ali, o mundo escolar era praticamente inacessível para a maioria da população.

Em 1980, 26% da população adulta brasileira era analfabeta. Ou seja, cerca de um quarto do eleitorado (potencial) não sabia ler ou escrever. Quase 22% tinham até três anos de estudo. Eram analfabetos funcionais. De cada 100 jovens que entravam na escola, apenas 55 completavam quatro anos de estudo antes dos 16 anos de idade. As chances de uma criança de origem pobre concluir o ensino fundamental eram muito menores do que aquelas das famílias de maior renda.

Em suma, as políticas sociais do regime militar produziam uma legião de excluídos permanentes. Mais que isso, esta exclusão era cumulativa. Baixa escolaridade, inserção precária no mercado de trabalho, exclusão da assistência médica e do direito a aposentadoria se superpunham sobre os mesmos indivíduos. Este era o Brasil de 40 anos atrás!

A Constituição de 88 foi o resultado de um processo inclusivo de redemocratização que erodiu alguns dos pilares desta histórica exclusão. Ao criar o SUS, eliminou as vantagens conferidas apenas aos trabalhadores com carteira assinada. Ao criar o Benefício de Prestação Continuada, garantiu um ganho ao fim da vida para trabalhadores pouco qualificados que tiveram inserção irregular no mercado de trabalho.

Ao estabelecer um piso para os benefícios previdenciários, produziu um patamar, a ser definido politicamente por ocasião da elaboração do Orçamento, abaixo do qual nenhum idoso deveria viver.

Sob os dispositivos da Constituição, incremental e sistemática incorporação foi alcançada nos últimos 30 anos. Os outrora 60% excluídos e seus familiares obtiveram ganhos incrementais de acesso ao atendimento em saúde, via SUS.

Cerca de 25% dos eleitores (estimativa para 2015) foram progressivamente incorporados à politica do salário mínimo, seja via aposentadorias ou benefícios assistenciais, seja via mercado de trabalho. Os níveis de escolaridade modificaram muito. Entre 1980 e 2010, os concluintes do fundamental completo saltaram de 3,3 milhões para 12,5 milhões; os concluintes do ensino médio passaram de 3,8 milhões para 29 milhões e o mundo universitário incluiu mais de 20 milhões de jovens.

Parece muito distante, mas precisa ser lembrado: em 1980, quase metade dos eleitores brasileiros era analfabeta ou semianalfabeta e 60% não tinha direito à assistência médica ou aposentadoria. A situação atual é muito ruim, mas sua dramaticidade deriva de uma métrica móvel. Nossas expectativas se elevam à medida que ganhos civilizatórios são obtidos.

A Constituição de 88 não foi obra dos partidos de esquerda, que eram francamente minoritários na Assembleia Constituinte. Foi resultado da percepção, também entre os conservadores, de que a democracia não seria sustentável no Brasil sem que um mínimo de proteção social fosse provida à massa de excluídos.

É muito razoável supor que a incremental inclusão inaugurada pela Constituição de 1988 tenha alterado as expectativas dos eleitores brasileiros, em particular os de baixa renda. Assim, a distribuição de preferências do eleitorado na eleição atual estaria revelando a mesma racionalidade que orienta o eleitor das democracias desenvolvidas.

Eleitores pobres tendem a preferir candidatos que apresentam plataformas orientadas ao bem-estar ao passo que eleitores mais ricos temem ser expropriados caso estes candidatos sejam eleitos.

Neste caso, a Constituição e as políticas que lhe sucederam contribuíram para minimizar expectativas deprimidas. Estas últimas seriam compatíveis com as políticas excludentes do regime militar, mas incompatíveis com algumas poucas décadas de progressiva incorporação a padrões mínimos de vida civilizada.

Sem dúvida, a gravidade de nosso quadro fiscal imporá definição de prioridades, do que decorrerá frustração de expectativas. Não é possível atender a todas as demandas. Mas a experiência das democracias avançadas, confirmada pelo insucesso do governo Temer, demonstra que políticas de austeridade requerem governos com créditos políticos para queimar. Governos com baixa legitimidade não podem se dar a este luxo.

Por isso, é certamente um equívoco interpretar esta reta final da campanha presidencial como um quadro de polarização eleitoral, entre extremos do espectro ideológico que se equivalem em termos de compromisso com os padrões de uma sociedade civilizada.

Seja a violência sofrida pelo candidato à presidente que está a frente nas pesquisas eleitorais, seja a violência que este próprio incita em seu eleitorado nos fazem duvidar de que a promessa civilizatória da Constituição de 1988 tenha sido uma conquista irreversível.

Sobre a autora


Marta Arretche é professora titular do Departamento de Ciência Politica da USP e diretora do Centro de Estudos da Metrópole.

29 de setembro de 2018

Contra a criatividade

O impulso para a "criatividade" no trabalho e na sociedade tem a ver com atender às necessidades do capital.

Oli Mould




Tradução / Somos constantemente orientados por nossos gerentes, pais, governos, CEOs, "líderes de pensamentos", e pela mídia, a sermos criativos. Aparentemente, a criatividade é a nova força vital da economia moderna.

O impulso para “ser criativo” está tendo um grande impacto em tudo ao nosso redor, desde os locais onde trabalhamos até as maneiras como somos gerenciados. A hierarquia corporativa tradicional é agora um sistema defunto que nega a atividade criativa. Os governos são muito burocráticos e sufocam o pensamento político inovador. A regulamentação é inimiga do trabalho flexível, ágil e criativo.

Serviços sociais, caridade e outras instituições estão em dificuldades não porque seu financiamento foi drasticamente cortado, mas porque não são criativos o suficiente. Hospitais, escolas e universidades fracassam porque não são empreendedores o suficiente e não podem se adaptar a um mercado e tecnologias digitais em rápida mutação.

Com o surgimento dessa linguagem, institucionalizada em termos como “as indústrias criativas”, a “economia criativa” e a “classe criativa”, a criatividade se tornou o paradigma crítico do crescimento econômico.

Mas raramente se pergunta: o que é isso que nós deveríamos estar criando?

Na realidade, o que essa versão da criatividade produz é simplesmente mais do mesmo: desigualdade, injustiça e expropriação.

O capitalismo contemporâneo tem requisitado a criatividade para garantir seu próprio crescimento e manter a centralização e monetização do que gera. Marx argumentou profeticamente que o capitalismo não vê seus limites como limites, apenas como barreiras a serem ultrapassadas. Sua busca incessante de recursos para explorar e gerar riqueza para a elite significa que a única criatividade do capitalismo é destruir alternativas e transformá-las em terreno fértil e estável para um crescimento maior.

Em O novo espírito do capitalismo, os teóricos sociais Luc Boltanski e Éve Chiapello argumentaram que no mundo após os protestos em Paris em 1968 (e a revolução contracultural dos anos 60 de modo mais amplo), o crescimento do capitalismo se tornou predatório. Ele devora as pessoas, as ideias, as coisas e os movimentos que estão em oposição direta a ele.

Ao mobilizar as indústrias criativas da publicidade, branding e relações públicas, o capitalismo contemporâneo procura ativamente aqueles que se opõem a ele e lhes oferece fama e fortuna. Em essência, o capitalismo estabiliza aqueles movimentos, pessoas e ideias que estão “fora” dele, nomeando-os. Trazendo-os para o “mainstream“ e para a consciência pública mais geral.

Ele faz tudo isto para preparar-los para a comercialização. Muitos movimentos contraculturais, desde a cultura hippie ao punk e ao skate, caíram na armadilha capitalista da recompensa monetária. No século XXI, este processo de cooptação se tornou intensamente rápido e, em alguns casos, extremamente grosseiro.

Tomemos, por exemplo, o furor sobre um anúncio da Pepsi que foi ao ar brevemente no início de 2017. O comercial focava em uma marcha de protesto ridiculamente genérica, cujos participantes carregavam cartazes com slogans como “junte-se à conversa” e “amor”. Uma modelo, interpretada por Kendall Jenner, está participando de uma sessão de fotos nas proximidades e avista um rapaz igual a ela no comício (com uma lata de Pepsi na mão, é claro), que sedutoramente acena para que ela participe.

Ela se livra dos grilhões de sua beleza bem cuidada, descartando uma peruca loira e borrando seu batom perfeitamente aplicado, e se junta à multidão do protesto. Ela então pega uma lata de Pepsi em um balde de gelo e a entrega a um policial que está de guarda junto à manifestação. Ele bebe o refrigerante refrescante, acena com a cabeça em aprovação para a modelo e seus colegas policiais.

Todos brindam, se abraçam e a tela escurece. “Live Bolder. Live Louder. Live for now”. Beba Pepsi.

O comercial foi rapidamente destruído nas mídias sociais. Em um período de intensa fúria nos EUA, com marchas contra Donald Trump e o racismo institucional da polícia, este comercial foi uma cooptação descarada da estética de protesto para vender refrigerante. Com uma interpretação nada sutil da famosa imagem de Ieshia Evans sendo algemada por policiais com equipamento antimotim em Baton Rouge, em 2016, a Pepsi higienizou o protesto e redirecionou a poderosa figura do ativismo de rua para longe das injustiças sociais que ele está tentando corrigir, a fim de vender mais bebidas. Mortes sob custódia da polícia, opressão policial em protestos por meio do uso da violência, spray de pimenta e prisões injustas estavam (e ainda estão) em carne viva na imaginação pública, e quando a Pepsi imitou o “visual” do protesto em busca de ganho, a contestação foi legitimamente rápida e sua retratação bem-vinda.

Mas esse tipo de exercício de branding é o exemplo perfeito de como o capitalismo transforma seus oponentes em seus promotores. Baseando-se em uma indústria de publicidade e tecnologia que vasculha o mundo social à procura de imagens, movimentos e experiências que ainda não foram comercializadas. A vontade “criativa” do capitalismo absorve qualquer aparência de que poderia ser utilizada para criar mundos alternativos. Qualquer movimento (seja um grupo contracultural, um movimento de protesto, meme ou ideologia ativista) que busca desestabilizar o capitalismo é visto como um potencial mercado a ser explorado.

Por isso, o poder “criativo” do capitalismo não cria – ele se apropria.

Ele oferece às vozes dissidentes incentivos financeiros, reconhecimento, ou simplesmente um descanso da exaustão emocional e física de lutar constantemente. Mas fazendo isso, os anticapitalistas param de desestabilizar o capitalismo: em lugar disso, eles se tornam terrenos férteis para a colheita de mais lucros.

É assim que os métodos capitalistas de apropriação têm sido tão exitosos. Sua retórica de criatividade é, na verdade, alimentada por interesses próprios, pela lógica de mercado e pela competição. Essa criatividade é então empregada como a mais potente arma do capitalismo. À medida que o mercado absorve todas as contestações e as reembala como produtos para venda, a criatividade se torna o meio pelo qual os impulsionadores do capitalismo na política e na mídia podem se gabar explícita ou implicitamente: “não há alternativa”.

Mas pode haver uma alternativa – talvez criatividade revolucionária; uma criatividade que seja sobre a criação de novos fenômenos a respeito dos quais o capitalismo não está prevenido. Há uma força poderosa nas margens da sociedade e nas fissuras do mundo comercializado que está desestabilizando o terreno onde o futuro do capitalismo está sendo colhido.

Criatividade deve ser sobre buscar aquelas atividades, pessoas e efemeridades que resistem à cooptação, apropriação e estabilização pelo capitalismo – não descobrir novas maneiras de reforçá-lo.

Sobre o autor

Oli Mould é professor de Geografia Humana na Royal Holloway, University of London. Ele é o autor de "Contra a Criatividade e Subversão Urbana e a Cidade Criativa" e tem um blog em tacity.co.uk.

28 de setembro de 2018

Réplica: Alexandre Schwartsman perde o decoro ao ofender Marcio Pochmann

Não podemos esquecer que a qualidade mais importante que um bom economista deve apresentar é aceitar a contradição

Paulo Feldmann

Folha de S.Paulo

O economista Marcio Pochmann é um dos formuladores da agenda econômica do PT. Eduardo Anizelli/Folhapress

Há um problema que se repete no Brasil em vésperas de eleições: Trata-se da visão futebolística de que nosso time é o melhor e tudo que vem do adversário não presta. Este fato, aliado à intensa rivalidade existente entre PSDB e PT, é uma das causas da tragédia brasileira.

Ambos partidos já fizeram coisas muito boas pelo país —o Plano Real de FHC e a melhoria da renda dos mais pobres de Lula são exemplos inequívocos de que há coisas boas dos dois lados e que precisam ser mutuamente reconhecidas.

Além disso, não podemos esquecer que a qualidade mais importante que um bom economista deve apresentar é aceitar a contradição, pois a mesma está presente em quase todos aspectos que envolvem a teoria econômica.

Em economia raramente há uma única forma de se enxergar ou interpretar fatos. É isso que surpreende em Alexandre Schwartsman. Em seu artigo de quarta-feira (26) nesta Folha ele se põe a ofender Marcio Pochmann, professor da Unicamp, chamando-o de desonesto ao invés de se contrapor com bons argumentos ao que Marcio coloca.

Poucos contestam que um dos maiores problemas do Brasil é a péssima distribuição de renda. O que Marcio quis dizer, e certamente Alexandre entendeu, é que aumentando um pouco a alíquota paga pelas famílias muito ricas, já se conseguiria arrecadar o suficiente para cobrir praticamente todo o déficit primário de cerca de R$ 170 bilhões.

Segundo dados da Receita Federal, as 70 mil famílias (0,14 % do total) mais ricas do país pagam um imposto efetivo de apenas 6% da renda, enquanto a classe média paga 12%. Se os muito ricos passassem a pagar um imposto efetivo igual ao pago pela classe média, acabaríamos com o déficit primário. Simples assim.

Segundo Alexandre, a segunda mentira de Pochmann é com relação à evolução do endividamento. Como ex- diretor do Banco Central, Alexandre deveria consultar as informações e estatísticas desta instituição. Por ali fica muito claro o que Pochmann quis dizer: Sim, o endividamento cresceu —tanto bruto quanto o líquido— durante o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, mas a taxa de crescimento foi muito menor do que nestes dois últimos anos de Temer.

Alexandre se ressente por Marcio não ter dito qual o período em que o desemprego subiu? Ora, como um economista que tem obrigação de conhecer os dados da economia brasileira, ele deveria saber de cor que 8,4% foi no último ano de Dilma, e 11,7% foi no primeiro ano de Temer.

A última das quatro mentiras apontadas por Alexandre não somente se trata de pura verdade como é o que se faz necessário para o país voltar a crescer. Pochmann estima que haja um potencial arrecadatório de 1,5% do PIB (equivalente a R$ 120 bilhões) possível de ser conseguido com pequenas mudanças, como a da alíquota do IR e mudanças no imposto sobre heranças, hoje muito baixa —além de tratar-se de um imposto estadual.

Claro que discordar é natural e necessário, mas sem perder o decoro. E Alexandre perdeu o decoro ao ofender de forma grave um economista como Marcio Pochmann, que já foi presidente do Ipea, talvez o posto mais importante do país em termos de fórum para a discussão das grandes questões brasileiras.

Paulo Feldmann é professor de economia brasileira da FEA-USP.

26 de setembro de 2018

Começou o terceiro turno

Mercado financeiro já cobra do futuro presidente

Paulo Nogueira Batista Jr.


O economista Paulo Nogueira Batista Jr, em evento no Palácio do Planalto. Alan Marques/Folhapress.

Ainda nem chegamos ao primeiro, mas já temos indícios de que o terceiro turno começou. Terceiro? Sim, leitor, a turma da bufunfa não descansa. Quando perde o primeiro e o segundo turnos em eleições presidenciais, ela não demora a providenciar um terceiro. Como a sua derrota nos dois turnos regulamentares está desenhada, os bufunfeiros trataram de se movimentar desde logo.

A turma é afoita e não prima pela sutileza. Recentemente, o jornal Valor Econômico publicou extensa reportagem sobre as inquietações eleitorais do mercado financeiro, apoiada sobretudo em declarações off the record. Bolsonaro preocupa menos, pois entregou o terceiro turno por antecipação, anunciando a nomeação para a Fazenda de um economista ultraliberal. O problema é Haddad, neste momento o favorito.

Um dos entrevistados anônimos do jornal, identificado como "um gestor", avisou que o mercado não dará o benefício da dúvida ao candidato do PT. "O estresse vai ser enorme", ameaçou.

Outro interlocutor anônimo do jornal, um economista do mercado, sugeriu que Haddad anuncie imediatamente nomes liberais para sua equipe. "Algum estelionato eleitoral vai ter que haver", avisou.
Ora, quem conhece a história do Brasil sabe que estelionato eleitoral equivale a suicídio político. Haddad é experiente e hesitará muito antes de embarcar nessa canoa. Mas as pressões nos mercados financeiro e cambial podem ser intensas. Não basta saber; é preciso também ter nervos de aço.

As esperanças da turma da bufunfa têm lá os seus fundamentos. O PT perdeu o terceiro turno duas vezes, pelo menos. A primeira ocorreu em 2002, quando Lula comprou tranquilidade, nomeando Antonio Palocci ministro da Fazenda e Henrique Meirelles para presidente do Banco Central. Em 2014, Dilma perdeu o terceiro turno fragorosamente, cedendo o comando da Fazenda a Joaquim Levy.

A derrota no terceiro turno não se dá pela manutenção pura e simples da equipe econômica do governo anterior. Lula não deu ouvidos aos que queriam a continuação de Pedro Malan e/ou Armínio Fraga. Também não serão ouvidos os que recomendam conservar a equipe econômica de Temer.

Mas isso pouco importa. A turma da bufunfa dispõe de dezenas, para não dizer centenas, de nomes aceitáveis, equivalentes a Meirelles, Ilan Goldfajn ou Fraga. Para seguir a cartilha, não precisa ser nenhum gênio. Profissionais medianos, sempre encontradiços, são até preferíveis, pois seguem ordens com mais satisfação e menos escrúpulos.

Tudo indica, entretanto, que o terceiro turno de 2018 não vai ser tão fácil quanto em 2002 ou 2014. Por duas razões. Primeiro, a centro-esquerda aprendeu com a experiência —particularmente com a de 2014, que foi desastrosa e está viva na memória de todos. Segundo —e talvez mais importante—, o quadro econômico brasileiro, embora muito difícil, não é desesperador, como era por exemplo o de 2002.

A inflação está sob controle, apesar da alta do dólar. As expectativas de inflação continuam próximas do centro da meta. As taxas de inflação corrente e os núcleos de inflação (as medidas de inflação subjacente) estão bem comportados.

Ainda mais significativa é a força do setor externo da economia brasileira. O déficit de balanço de pagamentos em conta corrente é muito pequeno; os ingressos de investimentos diretos estrangeiros equivalem a várias vezes o déficit corrente.

Além disso, o país dispõe de reservas internacionais da ordem de US$ 380 bilhões. O Banco Central pode se valer ainda de swaps cambiais, que equivalem a venda futura de dólares sem a entrega de moeda estrangeira.

Ataques especulativos são sempre possíveis. Mas desta vez a turma da bufunfa vai ter que suar a camisa.

Sobre o autor

Economista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (estabelecido pelos Brics em Xangai) e ex-diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países.

24 de setembro de 2018

Os socialistas pensam

Asad Haider


Demonstration of striking workers at Talbot-Poissy, June 1982.

Tradução / Nos debates da esquerda contemporânea, muitas intervenções começam com uma variação sobre um tema particular: “os socialistas pensam que...”

Às vezes, ouve-se “os marxistas acreditam que...” Outras, “os socialistas entendem que...” Qualquer que seja a estrutura da frase, o ponto é sempre o mesmo.

Seguem-se diferentes proposições. Podem ser afirmações teóricas gerais, concernentes à relação entre “raça e classe” ou “reforma e revolução”. Ou podem ter um caráter imediato, urgente, marcando uma posição sobre uma questão atual ou debate estratégico.

Infelizmente, há muito já não podemos dizer: “Os socialistas pensam que o mar deveria ser feito de limonada.” Mas recordemos afetuosamente que, um dia, alguns de fato o pensaram...

Este, é claro, é o problema da afirmação “Os socialistas pensam que...” Ao longo da história, os socialistas pensaram muitas coisas diferentes, por vezes coisas tão incompatíveis que dividiram organizações ou mergulharam nações inteiras em disputas de facções. Estudar esses debates pode ser útil, pois pode forçar-nos a reconstruir o raciocínio por detrás de uma posição particular que, do contrário, teríamos ignorado.

Mas há um problema mais grave com essa formulação: quando alguém diz “os socialistas pensam que...”, essa pessoa está te exortando a não pensar. Ela está dizendo, “nós pensaremos por você.”

Apesar disso, as pessoas pensam. Nada pode parar isso. Esse ponto é tão simples que é frequentemente esquecido, às vezes de propósito. Na realidade, porém, possui uma importância central. O militante francês Sylvain Lazarus elaborou toda uma estrutura política com base nessa afirmação: as pessoas pensam.

Reconhecer que as pessoas pensam não é o mesmo que falar sobre consciência, o que acaba por trazer mais problemas que soluções. Muitas vezes ouvimos falar de uma consciência de classe, que expressaria as condições objetivas da classe trabalhadora, mas que nem sempre é realizada. Os socialistas que detém esse conhecimento, geralmente intelectuais, deveriam levar aos trabalhadores a consciência de suas condições objetivas.

Mas a consciência não é tão unitária e direta. Os trabalhadores têm consciências que são determinadas por uma série de fatores: nação, etnia, gênero, religião etc. O processo pelo qual a consciência passa a refletir uma posição de classe pode ser uma tradução por meio de um desses termos. É por isso que o populismo tende a mobilizar as classes em termos nacionais.

Além disso, surge uma questão embaraçosa a respeito da consciência dos intelectuais socialistas. Se a consciência da classe trabalhadora é determinada pelo seu ser social, como então os intelectuais adquirem uma consciência socialista? Como escreve Rossana Rossanda, essa linha de raciocínio acaba por representar os intelectuais como “milagrosamente livres de seu ser social e abstraídos de sua classe.”

Num relato de investigações fabris que ele conduziu na França nos anos 1980, Lazarus propõe que, ao invés de falarmos de consciência de classe, digamos simplesmente: os trabalhadores pensam. Mas o que os trabalhadores pensam não é apenas determinado pelas características da produção, ou pela consciência coletiva de um grupo objetivamente constituído. Ao invés disso, temos que descobrir o que eles pensam. Temos que ter a humildade de perguntar e aprender, ao invés de imaginar de antemão o que sua consciência deveria ser.

Usarei a seguir dois exemplos de Lazarus.

Em primeiro lugar, a descrição que Lazarus faz da greve e ocupação da fábrica da STECO em Gennevilliers, em 1991. A fábrica produzia baterias para carro, um tipo de trabalho altamente perigoso. A empresa decidiu fechar a fábrica e demitiu centenas de trabalhadores. Na fábrica ocupada, a assembléia da greve se reuniu com os patrões, que ofereceram indenização, mas apenas para os trabalhadores mais antigos, excluindo os jovens, as mulheres e os recém-contratados. A questão passou a ser, então: quem conta como trabalhador, e quem decide isso?

Os trabalhadores grevistas elaboraram sua própria análise: do ponto de vista dos patrões, as demissões refletiam seu controle da fábrica. Eles decidiam quem trabalharia – ficar ou sair não era uma decisão que cabia ao trabalhador. Com o pagamento da indenização, os patrões reconheciam que as demissões prejudicavam os trabalhadores. Mas ao decidir quem receberia ou não o benefício, os patrões decidiam, ao mesmo tempo, quem contava e quem não contava como trabalhador.

Havia, porém, uma alternativa à contagem dos trabalhadores pelos patrões, que era a contagem dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores. A assembléia da greve decidiu que “a indenização deve ser paga a todos, homens e mulheres, jovens e velhos, recém-contratados ou não”, pois esse era seu princípio de contagem. Essa não era apenas uma repetição de uma definição sociológica do trabalhador, cuja exposição clara e luminosa nos livros não garante em absoluto que ela se efetivará na situação política concreta. O igualitarismo da demanda não é dado de antemão; muitas lutas fabris são incapazes de superar as divisões no interior da força de trabalho.

Lazarus argumenta que, na situação da luta fabril, a demanda foi tornada possível pelo que ele chama de prescrição política.Uma prescrição nos mostra o que é possível – isto é, nos mostra a capacidade do povo, uma capacidade que não pode ser capturada ou compreendida desde cima por um partido ou pelo estado. A prescrição abre o horizonte do possível numa situação específica: no caso em análise, ela declara que são os trabalhadores, não os patrões, que decidem quem é um trabalhador. A demanda de “indenização para todos” é interior ao que é tornado possível ao se introduzir a prescrição “o trabalhador decide quem é trabalhador.” Por fim, os patrões cederam e a demanda foi atendida.

O segundo exemplo tem seu momento decisivo em 1983 – o ano da virada “socialista” de Mitterrand em direção à austeridade e das primeiras vitórias eleitorais do Front National de Le Pen. Os trabalhadores imigrantes foram desproporcionalmente afetados pelas demissões na indústria automobilística, e se organizaram contra elas. Funcionários do governo menosprezaram a então crescente onda de greves, caracterizando os trabalhadores grevistas como estrangeiros, árabes e muçulmanos fundamentalistas que não conheciam a realidade francesa. Racismo e xenofobia foram mobilizados contra os grevistas, muitas vezes resultando em violência.

Para responder a essa conjuntura, em que o racismo estatal era usado para negar a figura do trabalhador, Lazarus perguntou aos trabalhadores da fábrica de Renault-Billancourt, em 1985, o que significava, para eles, ser um “trabalhador imigrante”.

Seguem-se três citações:

  • “Eu sou um trabalhador imigrante na fábrica, mas lá fora eles me consideram apenas um imigrante, porque não sabem que eu sou trabalhador.”
  • “Eu sou um imigrante e um trabalhador. Na fábrica, eles nos consideram trabalhadores imigrantes, mas do lado de fora somos considerados imigrantes. Os franceses esquecem que estamos aqui pra trabalhar e que de fato trabalhamos.”
  • “Eu sou um trabalhador imigrante na França mas, apesar de ser imigrante, trabalho como todos os demais trabalhadores.”

Nesses relatos, aponta Lazarus, a categoria de “trabalhador imigrante” é atribuída à fábrica, e a de “imigrante” ao lado de fora, à sociedade como distinta da fábrica. Enquanto o estado prega a “a identificação do país pela noção jurídica de nacionalidade”, pode-se vislumbrar detrás desse frágil edifício “uma rede permanente de vigilância e perseguição dos ‘não-franceses.’ A palavra “imigrante’” é usada pelo grupo dominante, nesse caso os franceses, para negar cidadania aos trabalhadores estrangeiros.

Em seguida, mais duas citações:

  • “Eu sou um trabalhador imigrante, isso é uma coisa. É verdade que sou estrangeiro, mas também sou trabalhador, e isso é mais importante. Mas eles estão sempre dizendo ‘imigrante, imigrante’.
  • “Na fábrica, sou um trabalhador imigrante. Nas ruas, sou imigrante, mas trabalhador imigrante ou apenas imigrante, é quase a mesma coisa – é diferente de ser um trabalhador.”

Aqui, argumenta Lazarus, ainda que o termo “trabalhador imigrante” seja preservado, a palavra “imigrante” ganha prevalência sobre ele, sobrepondo-se à figura do trabalhador mesmo no ambiente da fábrica. Isso significa que a palavra “imigrante” nega a figura do trabalhador não apenas na sociedade, mas também no interior da fábrica. Trata-se do “retorno no interior da fábrica dos fenômenos sociais, ou, mais exatamente, do retorno na fábrica da imagem que a sociedade tem dos trabalhadores imigrantes.” Assim, os trabalhadores imigrantes passam a ser entendidos “em termos culturais e confessionais e, assim, exclusivamente como ‘imigrantes’, isto é, como outros.”

Os próprios movimentos, em toda sua autonomia, abrem um campo para novas afirmações políticas. Tais afirmações são elaboradas a partir da especificidade de cada situação. Contra a alegação do estado capitalista de que não há nenhum agente político relevante na fábrica, a resposta é que há o trabalhador. Contra a alegação do estado-nação de que há um “problema de imigração”, a resposta é que um país consiste em todos os que nele moram e trabalham e que o “problema de imigração” é uma falsa questão.

Esses são princípios ativos porque não são simplesmente extraídos de um cânone teórico. Eles não expressam uma consciência já existente ou uma consciência trazida de fora – são imanentes às situações políticas em que aparecem.

Não podemos saber de antemão quais princípios serão ativos em futuras conjunturas. Para conhecê-los em sua especificidade, temos que conduzir investigações que comecem pelo reconhecimento de que os trabalhadores pensam. Essa é uma investigação que não presume que saibamos o que os trabalhadores pensam, mas que atribui prioridade ao aprendizado sobre seu pensamento.

Adotemos esse princípio em nossas próprias discussões internas e nas decisões que dizem respeito a nossa organização. Rejeitemos os ditados vindos de cima, que fornecem respostas prontas para questões impostas de fora, e digamos em alto e bom som: os socialistas pensam.

Sobre o autor

Asad Haider é editor de Viewpoint e autor de Mistaken Identity: Anti-Racism and the Struggle Against White Supremacy (Verso, Spring 2018).

23 de setembro de 2018

Quando escuto Bach, imagino que Deus existe, diz Alberto da Costa e Silva

Historiador e poeta fala sobre sua relação longeva com a "Missa em Si Menor", do compositor

Alberto da Costa e Silva


Deve ter sido em 1948. Eu tinha 17 anos. E estava distraído a folhear um livro, com o rádio a tocar ao lado. De repente, a música me puxou para dentro dela e fui tomado pelo espanto da mais alta beleza. 

Era a primeira vez que ouvia a “Missa em Si Menor”, de Johann Sebastian Bach, e me ficou para sempre a lembrança de tudo o que naquele instante me ganhou a alma.

O historiador e poeta Alberto da Costa e Silva, 87, em sua casa no Rio de Janeiro - Ricardo Borges/Folhapress

Nos dias seguintes, procurei em vão, nas lojas de discos, uma gravação da “Missa”. Só uns dois anos mais tarde consegui comprar a versão do maestro Hermann Scherchen. Passei algumas semanas ouvindo-a quase que diariamente, com assombro cada vez maior. 

E, depois, durante toda a vida, quando sentia que os dias se apequenavam, buscava na “Missa em Si Menor” o júbilo da adoração e a pureza da prece. Somava o coro de “Et Resurrexit” à ária do “Agnus Dei”. 

Desde menino, deixou-me a fé. Por isso, penso que não posso emocionar-me e comover-me com a mesma intensidade de quem, sendo católico, ao ouvir essa missa, pede perdão por não ser santo. Quando a escuto, porém, esqueço muitas vezes a minha desesperança de incréu e não resisto a imaginar que Deus existe e que a vida é uma parábola da eternidade. 

A grande “Missa” de Bach iluminou a minha juventude. Pus nela o meu horizonte de perfeição, e dela fui aproximando as sucessivas descobertas das muitas formas com que se dá a beleza.

Recordo que, em algumas das revelações daquele tempo, ela se fez presente, a medir o meu arrebatamento.

Assim foi, quando dei com os tercetos dedicados ao Paraíso, na “Divina Comédia”, de Dante, e com o “Walden”, de Henry David Thoreau, e com as traduções de Maurice Betz da poesia de Rainer Maria Rilke, e com o Thomas Mann das “Histórias de Jacó”, da tetralogia de “José e Seus Irmãos”, e com “O Aleph”, de Jorge Luis Borges, e com “A Lúcifer”, de José Severiano de Resende, e com “Húmus”, de Raul Brandão, e com os versos de Mário de Sá-Carneiro, e com os poemas de amor de e. e. cummings.

Anos mais tarde, na catedral de Santiago de Compostela, diante do Portal da Glória, no primeiro encontro que tive com aquele Cristo todo poder e majestade, de mão erguida para a bênção e ladeado por anjos, profetas e santos músicos que, cobertos de restos de cores mansas sobre a pedra de um ouro rosado, pareciam tocar e cantar para mim, o que eles tocavam e cantavam era a “Missa em Si Menor”.

Não a tive sozinha. Ela trouxe para o meu convívio a “Paixão Segundo São Mateus” e a “Paixão Segundo São João”. E amparou-me, quando entrei nos 40 anos, com as duas centenas de cantatas de Bach que se tornaram o meu pão quotidiano. 

Até há bem pouco tempo, eu não passava um dia sem reservar meia hora para ouvir uma delas, ainda que consciente de que não as merecia, pois me faltava um pouco que fosse do fervor religioso que inspirara Bach e da contrição dos que as escutavam, nos ofícios luteranos.

Uma cantata me serenava, outra me alegrava, esta me comovia, aquela me deixava penseroso, aquela outra me contristava, uma sexta me punha a dançar, e todas, muitas vezes, me devolviam à “Missa em Si Menor”, que delas parecia ser soma, resumo e culminância.

Ao longo da vida, fui tomado repetidas vezes por deslumbramentos, diante de grandes criações da imaginação e da inteligência.

Nenhum se comparou, contudo, àquele que experimentei aos meus 17 anos, quando ouvi a “Missa em Si Menor” pela primeira vez e pela primeira vez senti ao meu redor o esplendor do mundo.

Alberto da Costa e Silva, historiador, poeta e ensaísta, é membro da Academia Brasileira de Letras e vencedor do Prêmio Camões.

20 de setembro de 2018

A morte do consenso: como o conflito voltou à política

A "terceira via" do New Labour prometia acabar com o choque entre esquerda e direita. Mas a fantasia da política sem conflito criou nossa era de raiva?

Andy Beckett


Ilustração: Eleanor Shakespeare

Tradução / A política está crua na atual Grã-Bretanha. Os Remainers se enraivecem com os Brexiters. Os pensionistas se juntaram contra os millennials; os nacionalistas contra imigrantes; os populistas contra elites; os tradicionalistas rurais contra os liberais urbanos. A política partidária é caracterizada pelo desprezo e pelo dogma. Para seus muitos inimigos, Jeremy Corbyn é um extremista e jamais será um legítimo líder nacional. Para os “corbynistas”, seus críticos internos são maus perdedores e traidores do Partido Trabalhista. Para os eleitores não-conservadores e para muitos parlamentares, o governo da primeira-ministra Theresa May é um experimento imoral e prejudicial ao país.

Para cada questão aparentemente fundamental, a Grã-Bretanha se sente mais dividida do que era nos turbulentos anos de 1970 e 1980. Há furiosos conflitos sobre liberdade de expressão, direitos de minorias, tamanho do Estado, modelos econômicos, valores sociais e culturais, e mesmo sobre a verdade e a seleção dos fatos políticos relevantes. Em muitas democracias, dos Estados Unidos, passando pela Itália até chegar à Austrália, a política se fragmentou em tribos aparentemente fora de controle. As facções em oposição não parecem mais capazes de conversar umas com as outras ou em concordar sobre o que elas mesmas devem falar.

Para os muitos eleitores que não gostam do confronto e acreditam que a democracia deveria ser feita de diálogos e compromissos, a nova desordem política é assustadora. Mesmo os políticos veteranos estão horrorizados e confusos, como expressou o ex-primeiro ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, em uma entrevista ao The Guardian: “Não tenho certeza se entendo completamente a política agora”. Os articulistas repetidamente usam a palavra “tóxico” para descrever o momento.

Há pouco tempo, a política ocidental não era assim. Durante boa parte dos anos 1990 e 2000, nossa política era – por padrões históricos –extraordinariamente ordenada, estável e suave. Havia concordâncias sobre o que era um bom governo. A maioria dos grandes partidos era liderada por figuras não tão claramente ideológicas, mas antes políticos que buscavam o consenso – aparentemente pragmáticos –, como os ex-presidentes dos EUA, Bill Clinton, e da França, Jacques Chirac, o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder e o britânico Tony Blair. Muitos eleitores pareciam satisfeitos com eles: não à toa, os quatro foram reeleitos. A vida política se movia lenta e previsivelmente: muitas democracias ocidentais pareciam iguais ano após ano.

Essa política sem dramas se enraizou no que parecia para muita gente uma análise persuasiva do mundo moderno. Um dos seus textos-chave foi o ensaio Brave New World: The New Context of Politics, publicado pelo sociológico britânico Anthony Giddens em 1994, onde ele argumentava que as sociedades estavam se tornando mais cosmopolitas e individualistas e menos tradicionais e tribais. Esse mundo mais fluido, com suas economias capitalistas interligadas e com crises ambientais compartilhadas, precisava de uma política que fosse calma e não divisora, “uma arena pública em que questões controversas (...) possam ser resolvidas, ou ao menos manipuladas, por meio do diálogo”. O conflito entre ideologias, classes sociais, partidos políticos ou outros grupos de interesse deveriam se tornar uma coisa do passado.

Durante a metade da década de 1990, as ideias de Giddens foram entusiasticamente absorvidas pelo movimento New Labour, do Partido Trabalhista (LP), que se excitou com sua aparente modernidade e viu nelas uma forma de escapar dos conflitos entre esquerda e direita que tinham tomado conta do partido. Giddens se tornou o intelectual favorito de Tony Blair. O reverenciado sociólogo e o jovem líder partidário, que estava procurando uma grande ideia para direcionar seu período à frente do número 10 da Downing Street, destilaram seus pensamentos políticos no que eles acreditavam ser a última filosofia: a “terceira via”.

Essa perspectiva apareceu já no primeiro manifesto do New Labour para as eleições gerais de 1997 da Grã-Bretanha: “Queremos deixar as batalhas políticas para trás (...) que atormentaram nosso país por muitas décadas. Muitos desses conflitos não têm mais relevância no mundo moderno – público versus privado, patrões versus trabalhadores, classe média versus classe trabalhadora”. Ao invés disso, um eventual governo do New Labour unificaria antigos grupos de interesse antagônicos e resolveria os problemas do país sem “paixões”. “O que resolve é o que funciona”, dizia outro trecho do texto. Blair venceu e, no ano seguinte, declarou que a terceira via era a “nova política para o novo século”.

As coisas não aconteceram dessa forma. Desde o referendo do Brexit – um tipo de guerra civil em forma de referendo – e a captura do Partido Trabalhista por Corbyn, um dos mais implacáveis oponentes da terceira via dentro do partido, muitas pessoas que acreditaram em uma política mais consensual durante os anos 1990 e 2000 ficaram incrédulas. Por três anos, a imprensa e as redes sociais expressaram, assim como os políticos centristas, os ativistas e os jornalistas, uma recusa em aceitar que a “nova política” estava obsoleta – e que era um fenômeno passageiro ao invés de uma solução permanente aos problemas do mundo moderno. De alguns outros menos otimistas com o projeto da terceira via, por sua vez, houve apenas um silêncio ensurdecedor. Como um ex-ministro do New Labour que ajudou Giddens a refinar a terceira via me disse: “Uma catástrofe atingiu meu tipo de política”.

O retorno do ódio e da ideologia a uma cultura política que supostamente os havia superado são atribuídos a muitas forças: da crise financeira de 2008 ao referendo de independência da Escócia, em 2014, do Twitter ao escândalo de gastos dos parlamentares britânicos. Muito menos atenção tem sido dada a se a promessa sedutora de uma política sem conflito - e sua realidade na Grã-Bretanha durante os anos 1990 e 2000 - também contribuiu para a queda da terceira via. A tentativa de criar uma política sem conflito ajudou a criar seu oposto?

Em 2005, o ano em que o New Labour venceu sua terceira eleição geral consecutiva, Chantal Mouffe, uma teórica política belga que tinha lecionado na Grã-Bretanha por mais de 30 anos sem atrair muita atenção para além dos muros da academia, publicou um pequeno livro chamado On the Political (Sobre o político, Martins Fontes, 2015). Seu título genérico esconde um argumento original e inquietante que Mouffe estava aperfeiçoando por duas décadas.

Apesar de se declarar uma radical de esquerda, Mouffe definia “o político” de forma similar aos autores geralmente associados com a direita, como Maquiavel: uma arena de competição de interesses e conflitos perpétuos. “Os teóricos liberais são incapazes de reconhecer (...) a realidade primeira do confronto na vida social”, diz um trecho do livro. Em uma democracia, grupos diferentes competem por recursos econômicos e espaços culturais e físicos. O político, portanto, envolve escolhas incompatíveis e dilemas “para os quais soluções racionais” – ou podemos dizer “soluções objetivas” – “podem nunca existir”. Os conflitos resultam apenas em vitórias temporárias; então, o balanço do poder entre os vencedores e os perdedores muda, graças aos rumos sociais ou outro fator de mudança, e o conflito se reinicia.

Cada batalha que não se resolve, diz Mouffe, não significa uma ameaça à democracia, mas o contrário, é sua essência vital. “Para ser capaz de mobilizar paixões”, ela escreve, “para se ter uma troca real dos desejos e fantasias das pessoas (...), a política democrática deve ter um caráter partidário”. Uma democracia saudável requer “campos opostos com os quais as pessoas possam se identificar”: para que todos sejam politicamente engajados, é necessário que existam um “nós” e um “eles”. Além disso, todas as tentativas de erradicar tribalismos por meio do consenso fracassaram – porque nenhum consenso pode incluir todo mundo.

Mouffe relembra a terceira via do New Labour como o primeiro exemplo dessa estratégia equivocada. “Longe de criar as condições para uma forma mais madura e consensual da democracia”, ela escreveu, o projeto levaria “exatamente ao seu oposto”. Ele criaria uma sociedade onde os conflitos que o New Labour tinha tentado suprimir, ou cuja existências tinham sido negadas, voltariam à superfície mais fortes do que antes, porque os antagonistas não veriam mais uns aos outros como competidores legítimos, mas como “inimigos que precisariam ser destruídos”. Na Grã-Bretanha e em todo o Ocidente, ela alertava na obra, “as condições estão maduras para demagogos políticos, (...) para desilusões com os partidos políticos e para o crescimento de outros tipos de identidades coletivas, (...) nacionalistas, religiosas ou étnicas”. Em particular, ela previu o surgimento de um “populismo de direita”.

Com extrema precisão, Mouffe antecipou o mundo político de hoje. Em 2005, no entanto, seu livro foi considerado muito alarmista pelas poucas pessoas que o leram. Ela me contou: “Eu lembro bem que ouvia: ‘Seu modelo não funciona. O centro da política está mudando. Não há partidos políticos populistas levados realmente à sério'”. Até a eleição de 2005, o Ukip[4] tinha conseguido, no máximo, 2% dos votos. “E eu respondia: ‘Não, vocês estão certos, o momento para populistas e inimigos que precisam ser destruídos’ ainda não chegou. Mas todas as condições estão dadas'”.

Mouffe vive em um elegante e ao mesmo tempo austero apartamento no Norte de Londres, uma região onde outros famosos provocadores da esquerda viveram, como Ken Livingstone[5] e Stuart Hall[6]. Quando eu a entrevistei, ela parecia orgulhosa de que suas previsões sobre as consequências da política de consenso estavam recebendo algum reconhecimento. “O que eu disse em 2005”, disse entre um café e outro, “se provou verdadeiro”. Hoje, Mouffe tem 75 anos, mais ainda continua escrevendo e lecionando e, assim como no livro, não costuma medir as palavras.

Apesar dos esforços e de todos os desastres sofridos pelos centristas nos últimos anos, o sonho de uma política menos conflituosa não desapareceu – de fato, o anseio por essa política está crescendo novamente. Esse desejo toma forma na esperança de que a política turbulenta de hoje possa ser acalmada por pessoas racionais e moderadas que apareçam juntas.

Quinze dias depois do meu encontro com Mouffe, em abril, o jornal The Observer – provavelmente o mais simpático, ainda hoje, ao New Labour – publicou uma reportagem dizendo que o lançamento de um novo partido de centro estava sendo considerado na Grã-Bretanha por um grupo endinheirado de ex-doadores dos partidos Trabalhista e Conservador. Eles eram liderados por Simon Franks, co-fundador da extinta produtora de cinema LoveFilm e um antigo conselheiro informal do parlamentar Ed Miliband quando ele era líder do LP. O grupo se dizia desiludido com a “natureza tribal” e a “polarização” da política contemporânea. O plano, dizia o jornal, é ter uma “plataforma política que supere as ideias da esquerda e da direita”. Seu nome provisório tem um caráter consensual, mas sem graça, que remete a Blair: United for Change (“Unidos por Mudança”).

Desde o início do ano, as especulações sobre esse e outros partidos de centro cresceram significativamente na mesma medida dos lamentos constantes na imprensa e em todos os lugares sobre a política de hoje. Enquanto isso, dentro do LP e do Partido Conservador (Conservative Party – CP), no parlamento e em outros partidos que disputam as eleições, a divisão entre aqueles que ainda acreditam em um consenso político e aqueles que creem na confrontação se tornou mais evidente. Por trás das suas brigas sobre o Brexit e o corbynismo urge uma outra grande disputa: qual deveria ser o tom e a substância da política em uma democracia?

Na política e para além dela, a década de 1990 parecia um tempo para recomeços. “Você tem que pensar naquele sentimento de liberação”, disse-me Anthony Giddens. “O comunismo soviético tinha desaparecido e havia um novo mundo”.

Da África do Sul à Irlanda do Norte, reconciliações políticas antes impensáveis sugeriam um novo modelo que havia se espalhado por meio do jornalismo e da academia. “Graças a pessoas como Giddens e [do filósofo político estadunidense] John Rawls, a teoria política basicamente apoiava a ideia de que quanto mais consenso melhor”, lembra Mouffe. Na Grã-Bretanha, o mandato profundamente divisor da ex-primeira ministra Margaret Thatcher tinha terminado em 1990, e as lutas entre esquerda e direita que tinham dominado a política durante os anos 1970 e 1980 pareciam estar no fim.

Em 1991, quando crescia o número de cadeiras do LP no parlamento britânico, Tony Blair analisou o estado da política mundial para a revista Marxism Today. “Todos os pontos fixos no horizonte mudaram”, escreveu excitado. “Tudo e todos podem ser pensados e repensados. Nós começamos outra vez”.

Apesar de ainda ser o veículo oficial do pequeno Partido Comunista da Grã-Bretanha, desde os anos 1980 a revista vinha tentando formular – de forma ambiciosa – uma nova política que, em muitos aspectos, pode ser considerada uma precursora da terceira via. Essa política, esperava-se, seria menos dogmática e tribal, e mais atenta ao que a publicação chamava de “novos tempos”, ou seja, para as imensas mudanças forjadas pela revolução do livre-mercado global dos 20 anos anteriores. Como Giddens, a Marxism Today viu essa revolução como um fenômeno permanente, e acreditou que muitos elementos dele deveriam ser aceitos. Mas a revista também acreditou que remédios precisavam ser encontrados para os danos que essa revolução tinha causado.

A revista considerou que a maior parte da esquerda, dentro e fora do LP, estava ultrapassada em suas visões de mundo e estratégias, comparando-a com os apoiadores de Thatcher – “a cavalaria contra tanques” – e ansiando por um líder do partido que não se inserisse nessa crítica. O editor da Marxism Today, Martin Jacques, identificava Blair como um político talentoso que estava buscando ideias novas e concordava com ao menos algumas das ideias da publicação, e tratou de procurá-lo. “Eu pensei que ele era algo novo”, Jacques me contou. “Não tinha raízes na tradição do partido” – o pai de Blair era do CP – “e quando ele surgiu com argumentos como ‘duro com o crime, duro com as causas do crime’, isso sugeria que ele sabia que estava pensando de forma diferente do LP. Gostei daquilo”.

O sonoro argumento de Blair contra o crime assegurou a ele sua primeira atenção nacional, tornando-o foco tanto da direita quanto da esquerda, e de alguma maneira de nenhuma das duas – respondendo ao crime simplesmente como um problema social que precisava ser resolvido e não como um tipo de ideologia. Ele se tornou líder do LP já no ano seguinte. Apresentar-se quase sempre como uma figura apolítica se tornou fácil para Blair, porque era a forma como ele mesmo costumava se enxergar. “Quando eu era jovem, nunca me interessei realmente por política”, disse em uma entrevista já como primeiro-ministro no ano 2000. “Não me sinto um político mesmo hoje”.

Durante os primeiros anos de sua liderança do partido e de seu mandato à frente da Grã-Bretanha, Blair foi influenciado nesse tipo de pensamento por outro cético político, Geoff Mulgan. Ele era um precoce, intelectualmente impaciente ex-ativista de esquerda que tinha rapidamente se cansado do que chamava de “facciosismo” e “pensamento morto” de muitos socialistas durante os anos 1970 e 1980. Mulgan gravitou em torno da Marxism Today e do New Labour, trabalhando como conselheiro do também ex-primeiro-ministro Gordon Brown (2007-2010) e do próprio Blair. Em 1994, ele transformou suas experiências na Grã-Bretanha e seu vasto conhecimento em política ocidental e tendências sociais em um livro, Politics in an Antipolitical Age (sem tradução para o português), onde afirma que os credos em guerra na política não interessam mais aos eleitores, ou não os atendem bem. “A política precisa retornar à arte de administrar interesses divergentes”, escreveu.

Naquele mesmo ano, Giddens publicou seu próprio livro, rejeitando o socialismo e todas as outras grandes ideologias do século XX, Beyond Left and Right: The Future of Radical Politics (Para além da esquerda e da direita, Unesp, 1996). Ele argumenta que esses credos eram muito rígidos e fora de moda para resolver os problemas ambientais e sociais do século XXI. Mulgan conhecia Giddens, que apoiou por muito tempo o LP, e o convidou para compartilhar suas ideias no círculo do New Labour.

Ambos costumam escrever de forma esquemática e simples, mas suas certezas e a abrangência de referências podem ser inebriantes para políticos acostumados com a cultura insular de Westminster. Pessoalmente, eles eram diretos e informais. Nos anos 1980, Mulgan tinha dirigido vans de turismo para as bandas que apoiavam o LP. O pai de Giddens tinha sido escriturário na London Transport[7]. Como intelectuais, Mulgan e Giddens eram figuras pragmáticas e eficientes para a hierarquia do New Labour – que via a si mesma nestes termos.

A visão deles de uma política mais harmoniosa, sem as brigas habituais da profissão e as ambições conflitivas, também se juntaram à fé cristã de Blair, o que fez dele um instintivo formador de coalizões. “Tony gosta de inclusão”, Mulgan me contou. “Ele sempre pensa: ‘Consiga colocar todo mundo em uma mesa e nós podemos resolver”. Em uma coleção de ensaios feita por cristãos do partido, em 1993, Blair escreveu que sua política era “baseada em uma visão fundamentalmente otimista. (…) Que há potencial em todos os seres humanos”.

Durante o ano de 1995, Blair começou a empregar a “terceira via” como um lema em seus discursos: esporadicamente, no começo, como uma descrição das políticas particulares do New Labour, então mais regularmente, até chegar ao ponto de ser a explicação para a postura do seu governo. Mas o que isso significava exatamente? Blair, na época um mestre da retórica vaga, nunca explicou direito. Jornalistas políticos fundiram seus cérebros com a frase. Articulistas melhor informados passaram a pontuar as variantes que o termo tinha adquirido nas décadas anteriores por muita gente – dos marxistas dissidentes aos fascistas italianos – que queria simbolizar suas rejeições às ortodoxias políticas existentes.

Por três anos, Blair usou a terceira via como slogan propagandístico, como uma metáfora atrativa, mas quase sem conteúdo, para definir a suposta novidade do New Labour em relação ao caráter estático dos seus oponentes. Então, em 1998, ele e Giddens decidiram definir o termo mais concretamente. Eles publicaram um panfleto e um livro, respectivamente, intitulados The Third Way(Para uma terceira via: a renovação da social-democracia, de Giddens, foi editado no Brasil pela Record em 1998; o texto de Blair não foi traduzido para o português). “Eu reconheci que aquela frase tinha uma leve nocividade histórica”, contou-me Giddens. “Mas a usei para conseguir atenção”.

O panfleto de Blair era enérgico, mas sem foco. Ele variava entre conclusões vagas sobre os valores da sociedade somadas a precisos, mas previsíveis ataques à esquerda “fundamentalista” – que ele continua fazendo atualmente – e alertas de que os “impostos devem ser mantidos sobre controle”. O texto é geralmente lido mais como um padrão retórico da centro-direita – da mesma estirpe dos artigos produzidos pelos vários partidos democrata-cristãos da Europa – do que uma nova fusão política.

O livro de Giddens é mais profundo e matizado. Além de advogar pelo consenso político, ele alertava que os governos de terceira via ainda precisariam tomar decisões controversas: para frear o crescente poder das indústrias financeiras, por exemplo, e para exigir comportamentos socialmente responsáveis de empresas, bem como dos defensores do lucro. Os dois insistiam que aceitar o livre-mercado global em princípio – e, assim, efetivamente removendo-o da política – era uma parte central do projeto da terceira via.

Pelos cinco anos seguintes, de 1998 a 2003, Blair promoveu essas e outras ortodoxias da terceira via regularmente, vastamente reportado pela imprensa e algumas vezes exaltando a si próprio em encontros internacionais na Grã-Bretanha, na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos. A maioria dos participantes era líderes de partidos de centro-esquerda que tinham entrado em territórios políticos ambíguos e, consequentemente, alcançado algum sucesso eleitoral. Giddens também participou de algumas dessas reuniões, mas já naqueles dias ele tentava diminuir seu envolvimento. “Eu nunca fui conselheiro de Tony Blair”, ele argumentou para mim. “Eu era apenas um membro daquelas discussões”.

Em junho de 1999, Blair e Schröder lançaram um manifesto conjunto da terceira via (o chanceler alemão chamava-a de “novo meio”) na Millbank Tower, o quartel-general do mitológico New Labour em Londres, onde o partido tinha orquestrado sua vitória nas eleições gerais dois anos antes. “Os social-democratas estão no governo em quase todos os países da União Europeia”, começava o manifesto. A terceira via parecia ter triunfado.

A eleição geral seguinte, em 2001, sugeria uma nova era de harmonia política e equilíbrio. Quase 95% das cadeiras do parlamento foram preenchidas pelos mesmos partidos de antes, deixando a já imensa maioria do New Labour conquistada em 1997 completamente intacta.

Havia uma única diferença significativa entre os dois contextos. O comparecimento às urnas foi extremamente baixo: o menor em 83 anos. Muitos observadores e membros do LP afirmaram que o fenômeno era consequência da eleição de um único lado. O CP ainda oferecia políticas tchatheristas aos eleitores cansados e tinha a desajeitada liderança de William Hague. “A fraqueza dos conservadores saturou a eleição”, diz David Miliband, uma das figuras mais ponderadas do Partido Trabalhista, que se tornou parlamentar em 2001. “A política era como bater palmas com uma única mão”.

Giddens estava relativamente otimista com a situação. Em 2007, ele argumentou que a “democratização cotidiana” da Internet – uma visão otimista do papel político da web – significava que as eleições estavam se tornando menos importantes para a vida dos eleitores. “Um baixo comparecimento eleitoral não significa necessariamente um sinal de insatisfação com o governo”, postulou.

Mas no começo dos anos 2000 ficou mais claro que algumas pessoas estavam infelizes com a terceira via. “Beyond Left and Right [o livro de Giddens] tinha soado grande e ambicioso, mas não era. Ele era um regresso. Essa noção da política era extremamente pequena”, diz Jacques, editor do Marxism Today. Sem categorias ideológicas, sem uma crítica da economia e do status quo social, sem inimigos definidos – longe do que Blair preguiçosamente se referia como as “forças conservadoras” –, a política do New Labour era fraca. Governar se tornou principalmente competência e formas de mensurá-la. Em 2000, a administração Blair tinha 600 prioridades oficiais. Mesmo ele costuma criticar, em algumas ocasiões, a baixa qualidade do seu governo. “De vez em quando pode parecer que governar é um mero exercício tecnocrático bem ou mau administrado, mas sem nenhum propósito moral dominante”, disse em um discurso em 2002.

As inadequações da vida política ocidental na perspectiva da terceira via se tornaram um foco dos cientistas políticos. Em um ensaio de 2006 chamado Ruling the Void, o cientista político irlandês Peter Mair descrevia o que acreditava ser um “esvaziamento” da política: os eleitores tinham perdido sua função democrática porque muitas das questões antigas haviam sido retiradas da discussão pública pelo New Labour e seus membros estrangeiros. Em 2000, o sociólogo britânico Colin Crouch alertou que os países ocidentais estavam se aproximando de um estado de “pós-democracia”, em que as eleições simplesmente mantinham a mesma elite no governo. Mas a crítica mais vigorosa da terceira via veio do melodramático filósofo conservador alemão Peter Sloterdijk em 2006. “O que é discutido pelos governos se tornou chato. O que se espera deles é que sentem em torno de grandes mesas para chegar à uma fórmula mundial de compromisso”. A política desse tipo foi “o maior monstro sem forma já visto. (…) O que quer que ela toca se torna, como ele mesmo, dócil e sem caráter”.

Ex-ministros do New Labour reclamam que essas críticas radicais ignoram os muitos sucessos dos seus governos, como a introdução de um salário mínimo na Grã-Bretanha e o Acordo de Belfast (Good Friday)[8], na Irlanda do Norte. David Miliband diz: “Nós estávamos tentando mensurar o progresso unidade por unidade’, é assim que as pessoas medem as coisas'”. Mulgan incrementa: “Fazer promessas relativamente pequenas e cumpri-las funcionou muito bem por um tempo”.

Mulgan também pontua que a administração do New Labour não se confinou apenas ao partido. “Tony Blair chegou ao poder em parte porque ele estava alinhado com a visão de mundo do establishment dos negócios”, que era gradativamente mais liberal e cosmopolita e, assim como o movimento, acreditava que muitos problemas podiam ser resolvidos por uma coleta cuidadosa de dados, a customização de grupos focais e boas relações públicas, e então avaliar os resultados a partir deles – “é o que funciona”.

No entanto, o fato de ex-figuras do New Labour geralmente responderem às críticas dos seus governos com detalhes políticos é revelador: sugere que eles pensam que este é o único critério com que os governos devem ser julgados. Mais do que isso, em governos, assim como nos negócios, basear o apelo público em competência e em eficiência é um risco. Quando algumas das políticas mais ambiciosas de Blair, como resolver o abandono e os problemas sociais deixados por Thatcher no Norte do país, tiveram menos progresso do que o esperado, ou falharam totalmente, os eleitores sentiram-se desiludidos, e o New Labour se viu incapaz de apelar para as lealdades emocionais e ideológicas de outrora.

Partidos populistas de direita tinham começado a contabilizar avanços eleitorais na França, na Áustria e na Itália durante a década de 1980 e no começo nos anos 1990. Em cada caso, os populistas entraram nos espaços políticos deixados vazios pelos grandes partidos congregados mais ou menos no centro. Em 1994, Giddens escreveu preocupado sobre a volta de “neo-fascistas às ruas” da Europa. O Ukip tinha sido fundado em 1993 e, apesar de uma vida inicialmente amadora, fora capaz de captar 16% do eleitorado nas eleições de 2004 para o parlamento europeu.

Mas o crescimento das políticas de conflito não atingiram as conversas internas do New Labour. Ed Miliband, que durante os anos 1990 e 2000 estava ocupado demais como conselheiro de Gordon Brown, depois como parlamentar e depois como ministro, relembra: “Qualquer um pensaria que todo o apoio do partido de extrema-direita de Jörg Haider, na Áustria, era ruim. Mas esta ameaça não parecia muito… presente”. Seu irmão David complementa: “Havia um senso de que a Grã-Bretanha estava protegida, parte pelo que nós estávamos alcançando no governo, parte pelo nosso sistema eleitoral”.

Outros no New Labour convenceram a si mesmos que a terceira via tinha sua própria dimensão populista. Blair amava invocar o “povo”. Em uma conferência em 1999 do Partido Trabalhista, ele atacou “as velhas elites (...) que tinham levado nossas profissões e nosso país por muito tempo”. Ele era um educado ex-advogado, e seus parlamentares eram mais de classe média do que qualquer outra bancada trabalhista; mas, em primeiro lugar, esse tom anti-establishment era completamente absurdo. Durante boa parte das décadas de 1980 e 1990, o partido tinha sido bastante evitado pelos antigos centros britânicos do poder, como a City de Londres (o equivalente à Wall Street, nos EUA). Milhões daqueles que votaram no LP em 1997 o fizeram com um vago espírito rebelde: tirar o fracassado partido que estava no poder e eleger um governo reformista.

Mas à medida que o governo de Blair se alongava, e suas principais figuras pareciam muito mais adequadas, o senso do New Labour como um emergente populista diminuiu vigorosamente. Como um dos seus ex-ministros colocou em uma linguagem burocrática: “O governo drena suas narrativas”.

Sempre um político intelectualmente curioso, Ed Miliband leu Sobre o Políticode Mouffe, quando ele foi lançado, em 2005. “Na sua descrição da terceira via como uma tentativa de fazer política sem inimigos, eu lembro de pensar: ‘Ela chegou no ponto exato'”, contou ele. “Há um lado da terceira via que dizia que o que era bom para os negócios era sempre bom para os trabalhadores. Diga isso a um motorista do Uber! Você não pode ignorar este tipo de disputa”.

No entanto, na metade dos anos 2000, Miliband era uma figura nova no New Labour e, além disso, poucas pessoas no governo compartilhavam com suas reflexões. “O blairismo não tinha uma cultura de autocrítica”, diz o cientista político Alan Finlayson, cujo livro Making Sense of New Labour (sem traduções para o português) permanece como um dos estudos mais claros da atmosfera amorfa do governo de Tony Blair. “Os apoiadores dele tinham medo de críticas internas depois de toda a divisão entre esquerda e direita no Partido Trabalhista durante as décadas de 1970 e 1980. E eles eram estranhamente anti-intelectuais de alguma forma, em acreditar que a globalização era como o clima e que eles tinham a única compreensão do mundo moderno”.

As duas convicções significavam que, geralmente, políticos do New Labour viam apenas o que eles esperavam em textos favoráveis, como os da Marxism Today e os dos livros de Giddens – principalmente que a globalização e o thatcherismo tinham transformado a Grã-Bretanha – enquanto ignoravam as mensagens embutidas nestes mesmos textos sobre suas consequências potencialmente explosivas.

“A falha fundamental do New Labour foi aceitar o neoliberalismo”, diz Giddens hoje. “Eles não fizeram o que deveriam fazer para restringi-lo. O contraste é impressionante com o intervencionismo de Blair em questões militares”. David Miliband, apesar de ser um membro mais ortodoxo do New Labour do que seu irmão, concorda em partes. “Nós não gostávamos que a globalização fosse tão desigual, tão instável. Estavam acontecendo coisas mais profundas na economia do que nós notávamos”.

Finlayson argumenta que os pontos cegos da terceira via sobre as desvantagens do capitalismo não eram um acidente, mas uma escolha – um sinal de suposições direitistas por trás da retórica de estar “além da direita e esquerda”. “Nós não devemos levá-los a sério quando eles afirmam que não eram ideológicos”. A ideologia era evidente na administração do partido pelos apoiadores de Blair, que aos poucos foram marginalizando a esquerda do LP. Um dos paradoxos – poderíamos dizer “hipocrisias” – do New Labour era que, em busca de criar uma política mais consensual, ele primeiro necessitou dominar aqueles que não acreditavam nas suas ideias.

Por todo o interesse da terceira via na modernidade e em uma linguagem quase científica, seus arquitetos e verdadeiros seguidores estavam fora de moda. Eles tinham sido projetados, assim como muitos de nós, pela forma como viam a política durante a fase adulta. Tinham crescido com a ideia de que a esquerda havia se tornado forte e agressiva nos anos 1970, e que o thatcherismo, com todas as suas falhas, fora responsável por resgatar a Grã-Bretanha nos anos 1980. Eles não notaram totalmente que, quando o Partido Trabalhista finalmente retornou ao poder em 1997, e quando já governava sozinho na década de 2000, as duas forças tinham sumido. Com seus sindicatos fracos e bancos superpoderosos, a Grã-Bretanha não era um país que precisava de um governo que freasse a esquerda e reverenciasse os negócios.

Porém, o New Labour e seus gurus da terceira via tinham muita confiança em seus próprios julgamentos para ajustar seus pensamentos e políticas para quando a imagem da Grã-Bretanha como uma história de sucesso do livre-mercado se tornasse velha. Eles também nutriam um desprezo pela esquerda – obsoleta, em seu ponto de vista, porque ela ainda acreditava no conflito e na divisão entre esquerda e direita –, para levar em conta suas válidas percepções sobre as fragilidades do capitalismo moderno. “Eles se encantaram por sua própria mitologia”, diz Finlayson. “Ficaram presos nela”.

A terceira via gradualmente saiu de moda, assim como o New Labour na metade dos anos 2000. A guerra no Iraque, em 2003, com seus prelúdios e consequências amargas, e mesmo a disputa óbvia entre Blair e Brown, fizeram ser cada vez mais difícil sustentar a noção que estavam praticando uma política de consenso. Blair deixou o cargo de primeiro-ministro em 2007. Quando ele publicou suas memórias, tempos depois, mencionou a terceira via apenas cinco vezes em 700 páginas. Giddens nem isso.

Nos nossos dias, ex-blairites raramente conversam sobre a terceira via. Sua fé no consenso político, no entanto, permanece. De todos com quem eu falei, exceção feita a Ed Miliband, ninguém está preparado para aceitar que Corbyn está certo ao fazer o LP ser um partido de confronto novamente. “Muitas pessoas estão simplesmente em negação”, Mouffe argumenta. “Eu tenho visto isso na academia: quando as pessoas precisam defender uma teoria por toda a vida, é necessário muita coragem para dizer: ‘Eu estou errado'”.

Surpreendentemente, meus entrevistados elogiaram o presidente da França, Emmanuel Macron, em sua juventude, suas camisas com mangas arregaçadas, e supostamente unificando ecos políticos de um Blair dos anos 1990. “Macron é um modernizador francês”, disse David Miliband. Mouffe concorda. “Macron está tentando fazer o que Blair fez”. No entanto, a popularidade irregular de Macron, apenas um ano depois de sua eleição, sugere que consenso político não seduz mais como antes.

David Miliband insistiu que as políticas de ódio no Ocidente hoje são uma fase passageira. “O populismo é popular até ser eleito”. Mulgan argumenta que o tom da política na Grã-Bretanha – e por implicação, em outras democracias – é cíclica. Era confrontacional nos anos 1970 e 1980, consensual nos anos 1990 e 2000, e agora é confrontacional novamente. Cada fase, ele acredita, eventualmente produz seu oposto: quando o consenso começa a saturar, eleitores e políticos procuram uma ruptura; quando os confrontos se tornam exaustivos, eles procuram a calma. É possível estender seu argumento para dizer que os dois tipos de política estão inseridas na democracia britânica, com as paixões na Câmara dos Comuns e primeiros-ministros ferozes de um lado, e sua reverência pelo “compromisso britânico” e moderação de outro.

Mas Finlayson acredita que qualquer retorno ao consenso vai levar um longo tempo. “A política mudou fundamentalmente. Os centristas sofreram uma derrota de legitimidade profunda por conta do Iraque e da crise financeira. Não haverá retorno ao centrismo até que eles se redirecionem”. Ele também argumenta que as redes sociais fragmentaram a política positivamente, e prevê que a frágil habilidade do capitalismo em prover uma vida boa para a maioria das populações significa que as competições por recursos vão permanecer ferozes.

David Miliband, o menos otimista das antigas figuras do New Labour com quem eu conversei, chama isso de “política da torta que diminui”. “Quando nós estávamos no governo, a torta não estava encolhendo, então, decisões difíceis sobre como dividi-la foram esquecidas”. A terceira via contornava questões antigas, de alguma forma saturadas, sobre quem obtém o poder e a riqueza. Acabou sendo uma abordagem para os bons tempos.

Em seu apartamento no Norte de Londres, Mouffe falou gravemente sobre as perspectivas para a democracia nesses tempos difíceis. Ela não acredita que a política de consenso vai ter um grande papel neste momento. “A principal batalha será entre os populismos de direita e de esquerda”, diz. “Isso poderá abrir o caminho para uma forma mais autoritária de neoliberalismo” – a expansão do estilo Trump de governar por decretos e desregulações – “ou a uma política nova e muito mais democrática”, continuou a autora belga. Mouffe vê agitações dessa segunda possibilidade no Partido Trabalhista de Corbyn.

Mas ela segue: “A democracia em seu pleno funcionamento – com conflito, mas onde as pessoas aceitam a existência dos seus adversários – não é fácil de se estabilizar”. Ela olha novamente para seu café preto. “Eu não sou tão otimista”.

18 de setembro de 2018

Os 30 anos da Constituição Federal

Carta acertou ao fixar independência entre Poderes

Ives Gandra da Silva Martins


Ives Gandra da Silva Martins, em foto de 2014 - Bruno Poletti - 10.dez.14/Folhapress

A sétima Constituição Brasileira comemora 30 anos no próximo dia 5 de outubro. Resultado de uma convocação (que muitos entenderam que teria a conformação de uma Constituinte originária) pela EC 26/86, foi instalada em começos de 1987 sob a presidência do ministro Moreira Alves, que esteve à frente da eleição para presidente dos trabalhos, caindo a indicação sobre o deputado Ulisses Guimarães. Foi nomeado relator o senador Bernardo Cabral, que venceu a disputa com o então senador Fernando Henrique Cardoso na eleição para a relatoria.

Para mim, foi um poder constituinte derivado, pois convocado por um poder constituído. Constituições originárias decorrem da ruptura da ordem pública anterior, visto que um poder constituído não pode convocar um poder constituinte originário que, de rigor, seria dele derivado.

Após audiências públicas com especialistas, por aproximadamente três meses, as oito comissões e 24 subcomissões apresentaram suas conclusões, que foram encaminhadas à Comissão de Sistematização.

Esta, ao alterar, na tentativa de harmonização, as soluções propostas, a fim de garantir sua aprovação, criou um sistema de votação que dificilmente seria derrubado em plenário, o que levou o deputado Roberto Cardoso Alves a criar um grupo, que denominou de "centrão", levando 80% dos constituintes a poderem opinar plenamente e votar sem restrições —alterando, em muitos pontos, a imposição da comissão de sistematização. No mais importante deles, trocou o sistema parlamentar de governo, proposto originalmente, pelo presidencial.

Por decorrência, a Lei Suprema conformou o resultado de uma série de acordos de grupos de parlamentares, a que Ulisses Guimarães deu o título de "Constituição Cidadã", com direito a um "prefácio constitucional". O texto final, em face dessas negociações das diversas correntes políticas, tornou-se adiposo, com um elenco considerável de dispositivos sem nenhuma densidade constitucional, como aquele do artigo 242, § 2º, que impunha a manutenção do Colégio Pedro 2º, no Rio de Janeiro, na órbita federal.

Teve, todavia, méritos como: exigir a harmonia e independência dos Poderes (artigo 2º) e multiplicar o elenco dos direitos e garantias individuais (artigo 5º).

Em respeito ao artigo 2º, determinou que ao Poder Judiciário caberia apenas desempenhar o papel de legislador negativo, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal (STF) a incumbência de ser "guardião da Constituição" (artigo 102), não podendo legislar.

Em sendo o Congresso Nacional omisso na elaboração de leis destinadas a dar efetividade à Constituição, previu caber ao STF declarar a inconstitucionalidade da omissão e instar o Parlamento, mediante comunicação, a elaborar a lei necessária (artigo 103, § 2º).

Ademais, autorizou o Congresso Nacional a não cumprir decisões do Poder Judiciário ou do Poder Executivo que invadissem sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) e outorgou às Forças Armadas a obrigação de repor a lei e a ordem, se qualquer um dos Poderes, em conflito com o outro, delas se socorrer, como poder moderador.

Infelizmente, nada obstante a inquestionável qualidade dos ministros da Suprema Corte, têm eles invadido as competências dos Poderes Legislativo e Executivo, legislando e tomando decisões administrativas, sem reação dos respectivos titulares, acuados que estão seus membros por denúncias e investigações.

Os mecanismos constitucionais de freios e contrapesos estão postos na Carta Magna, faltando apenas que os três Poderes os respeitem e que, no Estado democrático de Direito (artigo 1º), se comportem com harmonia e independência, não cabendo a nenhum deles invadir competências dos outros.

Ives Gandra da Silva Martins
Advogado e professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra

17 de setembro de 2018

Estações tempestuosas: Keynes na China

Se, diante de desafios ambientais fundamentais, o keynesianismo estiver atingindo seu limite máximo, terminará com um gemido ou um estrondo?

Adam Tooze


Vol. 40 No. 17 · 13 September 2018

Verso, 432 pp., £20, January 2017, 978 1 78478 599 4

Tradução / "Se não fizermos isto, talvez não tenhamos uma economia na segunda-feira" - disse Ben Bernanke, então presidente do Federal Reserve dos EUA, em 18 de setembro de 2008, quando demandava uma ação do Congresso para apoiar o sistema bancário. Dez anos depois, ainda temos uma economia. Mas vale a pena perguntar se o pânico então observado levou à exclusão de outros caminhos. No terrível outono de uma década atrás, a primeira prioridade era a sobrevivência. Acomodar-se, deixar a coisa seguir o seu curso era cortejar o desastre, como provou o colapso do Lehman Brothers. Os resgates eram desagradáveis, mas era preciso ser bem fanático para dissociar-se do esforço de salvar os bancos, aceitando o risco de uma catástrofe. No entanto, daí também não decorreram consequências políticas como Trump e Brexit, assim como a ascensão do nacionalismo em grande parte da Europa Ocidental? A crise foi uma oportunidade perdida? Se há uma figura em particular cujas ideias eram pertinentes àquele momento profundamente ambíguo, esta é a de John Maynard Keynes. A implosão do sistema financeiro lhe deu razão contra os seus críticos, os quais haviam dito que os mercados se estabilizam por si mesmo e que a intervenção governamental era contraproducente. Com o colapso do investimento, do consumo e do comércio, com milhões de pessoas desempregadas, o mundo desesperou-se por estímulos fiscais; havia demanda generalizada por maiores controles dos mercados bancários e financeiros. E Keynes, como se sabe, é o padrinho do ativismo em política econômica. Tal como argumenta Geoff Mann em seu brilhante livro, para ele, "no longo prazo, todos estaremos mortos". Assim, Keynes se mostra como uma grande esperança para todos aqueles que querem mobilizar os meios necessários para manter a coisa andando. Ele prometeu tanto evitar o desastre quanto a preservação do status quo.

A biografia de Keynes é emblemática. Ele nasceu em 1883. O seu pai era economista de Cambridge e sua mãe atuava como reformadora social; ele próprio cresceu como um brâmane numa era dourada, mas sua vida adulta foi marcada pela guerra total e pela revolução. Embora simpatizasse com a inquietação e com a insatisfação que dominava o mundo, ele sabia que, se a crise chegasse, ela o encontraria do outro lado das barricadas. Em resposta, tornou-se um intelectual reformista em política econômica. Após ter cursado a Universidade de Cambridge e depois de ter sido funcionário público na Embaixada da Índia por dois anos, ele começou sua carreira como economista profissional. Tratou, então, da questão altamente controversa da política monetária no Raj. Ele se manteve conscientemente contrário à Primeira Grande Guerra, mas trabalhou no Tesouro gerenciando créditos para os Aliados. Em 1919, ficou famoso por seu ataque ao Tratado de Versalhes; Lênin colocou seu livro As Consequências Econômicas da Paz na lista de leitura do Comintern. Na década de 1920, Keynes criticou a atuação de Winston Churchill como chanceler e denunciou o retorno ao padrão-ouro porque isto causaria um choque deflacionário prejudicial às indústrias exportadoras da Grã-Bretanha. Em 1936, publicou a Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro que transformou o debate sobre a política econômica em todo o mundo; Keynes apresentou o desemprego não como sintoma de uma falha do mercado de trabalho, mas como decorrência da falta de demanda na economia como um todo. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele serviu como diretor do Banco da Inglaterra e, em 1944, representou o Reino Unido e a Comissão do Banco Mundial na conferência de Bretton Woods, na qual se forjou o grande projeto do sistema monetário do pós-guerra. Em uma época dominada pelo confronto entre o trabalho organizado e os inflexíveis políticos do Partido Conservador, Keynes permaneceu como membro do Partido Liberal até sua morte em 1946. Tal como via, era papel das classes profissionais fazer com que a sociedade fosse além do impasse trazido pela guerra de classes.

Existem muitas biografias de Keynes e muitos relatos sobre a "revolução keynesiana na forma de governar". O livro de Mann não pertence a nenhuma dessas categorias. Não é também uma introdução à economia keynesiana (para os curiosos, Mann criou na web um guia para a leitura da Teoria Geral). Ao invés, o seu tema é a política implementada pela tecnocracia liberal à qual o nome de Keynes está ligado. Desde o início, o keynesianismo definiu-se em oposição a um liberalismo "antigo" ou "paleo", o qual se ancorava na manutenção dos direitos individuais e se caracterizava primariamente pela defesa da propriedade. Com base nisso, mantinha uma insistência dogmática na liberdade de transacionar nos mercados, os quais, por sua vez, deveriam ser protegidos contra as políticas e as regulamentações. A liberdade de comércio era defendida como se fosse uma religião, de tal modo que Adam Smith e os economistas clássicos eram considerados como seus profetas. Na opinião de Keynes, tal dogmatismo e a consequente rigidez que fomentava eram o oposto do que era necessário para assegurar uma ordem liberal progressista.

Do ponto de vista atual, o keynesianismo também deve ser contrastado com a política e a economia da revolução pró mercado das décadas de 1970 e 1980, a qual é conhecida como neoliberalismo. Em termos terminológicos, não ajuda saber que o próprio Keynes teria ficado feliz em ser descrito como um “novo liberal”. Nos anos 1930 e 1940, ele se envolveu em discussões, muitas vezes amistosas, com os futuros luminares do neoliberalismo, incluindo Walter Lippmann e Friedrich Hayek. Mesmo na melhor das interpretações, o esforço para dar novas fundações à ordem do mercado figuraria, na percepção de Keynes, como uma espécie de nostalgia, fadada a fracassar na prática. Na realidade, o neoliberalismo costuma ser frequentemente desonesto, proclamando sua absoluta adesão ao governo do mercado, apenas para recorrer à massiva intervenção estatal. Foi isso que os salvamentos bancários de 2008 demonstraram. Nas condições atuais, o neoliberalismo é, de fato, uma política antidemocrática que procura resolver a tensão entre capitalismo e democracia seja limitando o alcance da opção democrática seja interferindo diretamente no processo democrático.

O propósito de Keynes, ao contrário, era desenvolver um liberalismo que não fosse retrógrado, baseado em má-fé ou antidemocrático, mas que enfrentasse diretamente o problema de juntar capitalismo e democracia para que funcionassem em consonância. Um caminho consistia em ampliar o escopo da política. Keynes, uma figura chave no Grupo de Bloomsbury, era um modernista cultural liberal. Ele achava que um liberalismo próprio para o século XX deveria abranger a questão das drogas, o controle de natalidade e a liberação sexual. Mas, no rescaldo da I Guerra Mundial e da Revolução Russa, em meio a um intenso conflito de classes nunca antes visto, ficou claro para ele que o liberalismo cultural tinha que ser acompanhado por um novo pensamento econômico. O liberalismo tinha que ser repensado não mais como uma esfera sacrossanta dos direitos privados, mas como uma questão de governo nacional.

Keynes e o keynesianismo são usualmente identificados com a ideia de Estado grande, mas é preciso enfatizar que o keynesianismo, em geral, não é uma política contra o mercado. Para o desgosto da esquerda, não se afigura como uma política baseada em nacionalização ou em planejamento central. Admite claramente que os mercados, sob circunstâncias adequadas, podem realizar coisas notáveis. Contudo, nem sempre os mercados funcionam bem. Quando afetam a economia como um todo, como ocorre com o mercado de capitais ou com o mercado de trabalho, ao funcionarem mal, geram consequências amplificadas, as quais assumem a forma de efeitos sistêmicos e macroeconômicos. O desemprego involuntário em massa, no período entre as duas grandes guerras, era uma realidade inegável na Grã-Bretanha. O que frustrava Keynes era que a teoria econômica de seus professores em Cambridge, na virada do século, pouco dizia sobre ele. "Os economistas" - considerou - "põem para si mesmo uma tarefa fácil demais, inútil demais"; "em tempos tempestuosos, eles só podem dizer que o mar se tornará plano de novo depois que a tempestade passar". A teoria econômica deve enfrentar a tempestade assim como a calmaria: deve considerar tanto o pleno emprego quanto o desemprego crônico e persistente, a norma e a exceção. Foi isso que fez da Teoria Geral uma teoria geral. Ele não tomou como entendidas as condições que permitiam atingir o pleno emprego. Ao contrário, mostrou a necessidade de explicitá-las.

Em termos econômicos, isso implicou em mudar o foco de análise dos mercados individuais para o fluxo circular da demanda agregada, da produção e da renda nacional. Em termos políticos, isso envolveu desfazer certas suposições consolidadas durante o século XIX sobre as fronteiras apropriadas entre a sociedade política e a sociedade civil, entre o governo e a economia. Para Keynes, essas separações não eram razoáveis. Na verdade, havia boas razões para que se questionasse a separação entre a política e a economia em condições democráticas já que a economia de mercado tinha uma tendência inata para gerar desemprego em massa. Pior ainda, o esforço para manter as antigas fronteiras diante das pressões econômicas distorcia o discurso público e, como este estava fadado ao fracasso, poderiam ser criadas as condições para a revolução. Keynes, como Mann insiste, tinha alguma simpatia pelos defensores da mudança radical – ele chegou a se referir a si mesmo como um bolchevique em certa ocasião –, mas também havia absorvido a crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa. Esta considerava que, por mais atraente que parecesse, a revolução produziria sempre um desastre. O desafio era seguir um curso intermediário entre uma regressão conservadora e um esforço empenhado em fazer revolução.

O que assusta tanto os paleoliberais quanto os neoliberais no keynesianismo é a situação para a qual ele pode deslizar. Uma vez que a necessidade da intervenção foi posta, onde esta vai parar? Keynes, como um verdadeiro liberal, entendeu esse medo. Uma solução tentadora era transferir a tomada de decisões para uma elite tecnocrática; a teoria econômica teria alcançado sua verdadeira vocação, brincou ele, se alcançasse o status da odontologia. Contudo, seria errado identificar o keynesianismo com a defesa, pura e simples, da tecnocracia. Como Mann diz, o seu ponto não era, “tal como se pensa, estabelecer um sistema burocrático ou o chamado capitalismo gerencial... com a finalidade de neutralizar a política, no interesse de uma sociedade apolítica despojada de debate e de vida pública”. Os keynesianos, de fato, têm uma visão mais ensolarada. O seu ideal é que o capitalismo e a democracia funcionem juntos sem se molestarem. Uma maneira de apresentar a questão keynesiana é perguntando até que ponto a intervenção política na economia é necessária para construir uma base de prosperidade estável o suficiente capaz de apoiar uma política democrática. A resposta se encontra no que Mann chama de táticas “maquiavélicas”, as quais tratam as fronteiras do político como maleáveis. A arte do governo moderno não consiste em elaborar constituições perpétuas que demarquem permanentemente uma linha entre o político e o não-político, mas que continuamente definam e redefinam o que precisa e o que não precisa ser administrado. Um exemplo clássico advém da consideração de Keynes de que, como os salários não são perfeitamente flexíveis devido ao poder dos sindicatos, querer quebrar os sindicatos equivale a abrir uma guerra de classes. Nesse caso, o meio mais conveniente para ajustar os salários reais tendo em vista alcançar um emprego mais elevado, sem pôr em perigo a democracia, vem a ser agir indiretamente por meio de um aumento modesto da inflação, o que reduz o custo real para os empregadores de contratar mais mão-de-obra. Por outro lado, fixar uma taxa de câmbio em um nível não competitivo é perigoso não apenas porque dificulta as exportações, mas também porque coloca uma pressão enorme no sistema político para forçar cortes de salários.

A consciência situacional e tática do keynesianismo se expressa em uma abordagem pragmática do tempo, a qual aparece no título do livro de Mann. O keynesianismo não abandona a visão de mundo progressista do liberalismo “ Whig”3 ; não nega que muitas das previsões da economia clássica, sob condições ideais, podem advir no longo prazo, assim que as várias forças tiverem tempo de atuar. Mas nega que tais presciências possam ser traduzidas em regras simples para agir no presente. A longo prazo, as tendências básicas do equilíbrio de mercado podem muito bem se manifestarem, mas, “no longo prazo, estaremos todos mortos”. Como Mann bem coloca, não se encontram no “longo prazo” ou mesmo no “médio prazo”, mas no “curto prazo”, aqueles “infinitos momentos de transição em que o problema de manter a ‘civilização’ precisa ser resolvido”. É aí que as pressões da necessidade se fazem sentir. E não é por acaso que qualquer “governo liberal, ao se defrontar com a necessidade, “comporta-se sempre como keynesiano”; em outras palavras, “reconhece a incerteza e a desarticulação do momento, reconhece a imperfeição e a indeterminação desse momento e se afasta da perspectiva do longo prazo para se concentrar em seu imediatismo”. A crise de 2008 demonstrou isso de modo patente. Aquilo que os banqueiros centrais, tais como Ben Bernanke, em setembro e outubro de 2008, pediram aos políticos que fizessem era impensável apenas algumas semanas antes.

Ao final, é claro, os momentos do tempo se somam para formar o longo prazo. Contudo, aceitar plenamente o keynesianismo significaria abandonar-se ao fluxo, sem qualquer objetivo de longo prazo. Ora, isso tornaria a política altamente imprevisível. A busca por “credibilidade” na política econômica tem sido uma preocupação primordial na era neoliberal; há, pois, uma batalha incessante contra a ação discricionária do governo. É preciso travar essa batalha, diz o argumento, porque tentar governar a economia sem ter estabelecido uma crença geral de que o governo segue alguma regra fixa, estimula comportamentos oportunistas na própria economia. A deterioração econômica na década de 1970 poderia ser entendida nesses termos, já que, então, os sindicatos e os empregadores buscavam proteção contra a inflação, pressionavam o governo a aumentar os gastos, o que aumentava ainda mais a inflação.

Assim, a atitude ad hoc característica do keynesianismo tem sido sempre questionada pelos modelos mais conservadores e mais restritivos de governo. Um dos contemporâneos de Keynes, o marxista polonês Michał Kalecki, percebeu a origem de certas flutuações nos interesses contraditórios que movem o próprio capitalismo. Em uma crise, os interesses das empresas não se oporão às intervenções massivas desde que elas atuem para manter a atividade econômica. Entretanto, de modo mais fundamental, elas não têm interesse em ver os salários e os custos aumentarem; então, quando a crise termina, elas tendem a recobrar o compromisso do governo com a disciplina e o rigor. Em consequência, o keynesianismo está condenado a existir para sempre no modo “vai-e-para”. Ora, isso está também assentado em sua história intelectual. Nunca há continuidade ininterrupta do pensamento keynesiano, tal como o próprio Mann mostra em uma brilhante série de observações. Apesar de distarem intelectualmente do próprio Keynes, os economistas modernos de feição reformista, tais como Thomas Piketty e Joseph Stiglitz, também reprimem a atitude típica do keynesianismo.

***

Keynes figura como um paradigma, mas foi ele o primeiro keynesiano? A resposta de Mann é ousada. Se o keynesianismo é uma resposta liberal construtiva à revolução, uma resposta que procura reorganizar a ordem social, política e econômica de modo a atenuar as tensões reveladas, mas não resolvidas, pela sublevação violenta possível, então os primeiros pensadores desse tipo emergiram na esteira da revolução – isto é, da Revolução Francesa – e seu padrinho é Hegel.

Tanto Hegel quanto Keynes viveram na esteira de revoluções. Ambos, entusiasticamente imersos no drama da história mundial, rejeitaram a suposição de que a ordem política e econômica possa ser derivada de fundações naturais. Hegel não acreditava que a ordem pudesse emergir espontaneamente da sociedade. Uma observação que fez aos seus alunos, na década de 1820, a qual não recomendava supor que “as coisas se ajustam por si mesmas, que elas cuidam de si mesmas”, poderia ser subscrita por Keynes. Como devotos de Hobbes, tanto Hegel quanto Keynes concordaram que providenciar ordem era uma “função política do Estado enquanto única... instituição universal legítima”. Para eles, cabe aos funcionários públicos fazer esse trabalho. Que ferramentas eles poderiam empregar? A lei, certamente, mas também as novas ciências sociais, sobretudo a Economia Política. A Economia, como 6 Hegel reconheceu, era “uma das ciências que surgira das condições do mundo moderno”. Ela tinha, por isso, “a tarefa de explicar as relações da massa humana e os movimentos dessa massa em sua complexidade, qualitativa e quantitativamente”. Para Hegel – Mann explica –, “a Economia Política é expressão do modo como o Estado Moderno pensa”.

A afirmação histórica sobre um alinhamento entre Keynes e Hegel não destaca apenas certos paralelismos. A linha que Mann traça de Hegel à Keynes e daí aos keynesianos dos dias atuais, demarca uma fronteira no interior da modernidade liberal. O pensamento político keynesiano, tal como o de Hegel, é impulsionado pela apreensão das profundas tensões existentes no interior da modernidade: eis que esta põe a existir um sistema socioeconômico altamente dinâmico, o qual produz perpetuamente pobrezas e crises, as quais não pode superar, mas que podem ser contidas por meio do ordenamento e do reordenamento político. Mann argumenta que se deveria ler Keynes hoje tal como Marx leu Hegel, isto é, como alguém que estava empenhado em manter a ordem sócio-política existente, mas cujo pensamento penetrou fundo nas articulações dessa ordem. Mas ele dá um passo adiante. Hegel foi “o primeiro a elaborar completamente uma razão keynesiana, ou seja, uma crítica relutantemente radical, mas imanente, do liberalismo, a qual, em última análise, chegou à plenitude… como poderosa realização histórica na Teoria Geral”. Hegel, em outras palavras, era um keynesiano. “Um esforço para colocar Keynes (ou Hegel) em seu próprio ‘lugar’ histórico – o que obviamente excluiria a ideia de que Hegel pudesse ser um keynesiano – seria apenas, para ele, resquício de uma época comandada pelo progresso”. De fato, a similaridade essencial problema político abordado pelos dois sugere que se ater à perspectiva do progresso é ilusório. Nenhum dos dois conseguiu encontrar uma saída para o impasse de um reformismo radical que recusasse a possibilidade de uma verdadeira revolução. É um impasse em que se está preso, de acordo com Mann, desde a reação conservadora contra a Revolução Francesa, no Termidor de 1794.

Uma característica que torna o livro de Mann tão convincente é que ele resiste ao gesto fácil de clamar por uma superação radical desse impasse. A mentalidade ativista, racionalista e combativa do keynesianismo, argumenta ele, “não é algo que a esquerda possa simplesmente renegar segundo a própria vontade no capitalismo liberal do Norte”, mesmo se disso resulta um certo conservadorismo. Quando a sobrevivência do sistema capitalista entra em questão, tal como em 2008, a grande maioria tem muito a perder: ela precisa, então, de bombeiros da crise. Além disso, como a experiência recente mostrou, há boas razões para defender um governo tecnocrático contra as paixões irracionais da democracia de massa. Atualmente, é bem óbvio que é importante ser capaz de identificar, para além da política, as questões com potencial técnico de acordo: seja, por exemplo, o tamanho do multiplicador fiscal, a eficácia da vacinação contra o sarampo ou a ameaça global da mudança climática. Sempre que isto é feito, volta-se ao terreno do keynesianismo. Passa a existir um engajamento não em um choque totalizador de valores – denunciando, assim, as “razões” deles, as “suas” verdades porque são “deles” –, mas um esforço razoável para encontrar os limites apropriados das decisões políticas.

Mann completou o seu livro em 2016. Sem dúvida, ele esperava que os EUA votassem em Hillary Clinton e em uma administração tecnocrática. E essa é a razão pela 7 qual ele se concentra em apresentar uma política verdadeiramente radical do ambiente, a qual poderia ir além da administração do clima keynesiana, a qual inclui apenas o gerenciamento de mudanças climáticas, a precificação de carbono e os subsídios ao uso da energia solar. Dois anos depois, o mundo enfrenta uma realidade diferente, ou seja, uma reafirmação grosseira do nacionalismo. Trump, os partidários do “brexit” e seus companheiros europeus são vistos agora como parte de um ataque geral à competência técnica. É certo que Trump profere um discurso bem abaixo daquele que poderia ser considerado como democrático. Mas até que ponto poder-se-ia considerar tal desvio, que resvala para a palhaçada, aquém da norma tecnocrática? Trump, é possível pensar, representa o triunfo daquela turba que os keynesianos apontam como perigosa. Porém, se se ignora a fealdade de seu comportamento e se se concentra na substância das políticas de sua administração, a situação se afigura como muito mais ambígua. Keynes não era nacionalista, mas, na década de 1930, ele defendeu abertamente o protecionismo. O que se vê hoje é uma divisão significativa dentro do campo keynesiano. A maioria dos economistas defende o status quo contra o ataque “populista”, ao passo que os oponentes da globalização, populistas de esquerda e membros do campo “lexit”, podem invocar o Keynes de 1933: “que as mercadorias sejam feitas domesticamente sempre que isto for possível, conveniente e razoável; acima de tudo, que a finança seja essencialmente nacional”.

O que toda essa confusão revela é que o relato altamente genérico de Mann sobre o “caráter do keynesianismo” que atravessa os tempos não nos permite distinguir as variedades dessa razão tecnocrática. Mas este não é apenas um problema de Mann: Keynes estava ciente da ambiguidade de sua própria posição. Eis o que disse no prefácio da edição alemã da Teoria Geral, publicada em setembro de 1936, exatamente quando Hitler e Goering anunciavam seu Plano Quadrienal: “a teoria da produção como um todo, aquilo que este livro pretende fornecer, é muito mais facilmente adaptável às condições de um estado totalitário, do que vem a ser a teoria da produção e da distribuição de uma dada produção, a qual está sendo gerada sob condições de livre concorrência e em larga medida de laissez-faire”. Keynes não tinha simpatia pelo nazismo. Contudo, ele entendeu claramente que a convergência da macroeconomia keynesiana com a democracia política havia sido um efeito da vitória dos Aliados – e não o resultado intrínseco de uma afinidade intelectual ou política. Os próprios especialistas, para ele, é que tem de escolher o lado que querem ficar.

Caso se procure um exemplo de governo keynesiano hoje, não se deve olhar primeiro para o Ocidente, mas para a China, onde um Partido Comunista que não tolera oposição preside a um regime tecnocrático por excelência. Os gestores econômicos da China não são apenas pragmáticos no modo como favorecem uma política de mercado, pois, o mais profundo que move os formuladores de políticas em Pequim é, no sentido que lhe deu Mann, um ímpeto verdadeiramente keynesiano. O que vigora na China hoje é o compromisso alcançado após Tiananmen: aceitar e apoiar o regime em troca de crescimento e transformação social. Muito tem sido dito sobre o papel de pensadores neoliberais no lançamento da revolução do mercado de Deng, nos anos 1980. Mas quando as coisas ficam difíceis, os chineses atuam mesmo como keynesianos. A resposta de Pequim à crise de 2008 produziu o estímulo mais dramático já visto para a criação de trabalho na história do mundo. Quando, em 2009, o governador do Banco Popular da China propôs um novo sistema monetário, ele invocou explicitamente as propostas de 8 Keynes, em Bretton Woods. A administração feita por Pequim do crescimento da China, que tem sido bem-sucedida, envolve controles de câmbio, condução da taxa de câmbio e regulamentação direta dos empréstimos bancários – isto é, ela busca empregar adequadamente as técnicas de ajuste fino keynesiano dos anos 50. E a atual prioridade pessoal do Presidente Xi é a eliminação do resíduo final da pobreza absoluta por meio de reassentamento e investimento em grande escala.

A justificação final do keynesianismo não tem sido, simplesmente, a preservação do status quo, mas a promessa de progresso. Keynes tornou-se lírico quando tratou das oportunidades econômicas para os nossos netos; as únicas coisas que poderiam impedir de realizá-las seriam as guerras e as crises econômicas. A política radical fez a mesma aposta. Como Mann mostra, a promessa marxista está “baseada na garantia de que, não importa quanto tempo seja necessário, uma luta implacável pelo progresso será eventualmente recompensada. Em outras palavras, quando Marx exortou o proletariado a fazer história, ele o fez postulando – por meio de análise, não de profecia – que havia uma luz no fim do túnel”. Mas se o crescimento é o denominador comum das filosofias políticas que herdamos do século XIX, seriam elas capazes de captar os desafios existenciais que são apresentados agora pelas mudanças climáticas? Enquanto o mundo derrete diante de nossos olhos, o que o gerencialismo keynesiano tem a oferecer aos nossos filhos e netos? Precisamos ainda de uma revolução? Mas então, em que consiste hoje a promessa da revolução? “Quaisquer que sejam as apostas radicais que possamos escolher” – escreve Mann – “subsiste a possibilidade muito real de que elas sejam feitas em vão. Não há vitória certa, mesmo no longo prazo e em última instância – ou, se ela existe, afigura-se atualmente inimaginável. Não importa quão longo e difícil seja o caminho, tudo pode acabar ainda em desastre”.

A leitura se torna, então, sombria. Mas ao se expandir o horizonte para além do modelo exaurido do keynesianismo ocidental – é assim que Mann claramente o considera –, talvez não seja ela ainda suficientemente sombria. Diante dos desafios ambientais fundamentais, se o keynesianismo está agora atingindo mesmo os seus limites, terminará ele com um gemido ou com um estrondo? Pequim enfrenta agora os dilemas keynesianos clássicos, os quais elevou já a novos extremos. O “sonho chinês” de Xi é a promessa keynesiana mais espetacular já feita. É palpável um medo subjacente da inquietação popular, a escala da repressão é espantosa, assim como, também, é a aposta no crescimento. Não há contrapartida na experiência ocidental de uma transformação tão grande nos destinos de uma população de mais de um bilhão de pessoas, em trinta anos. Mas, como qualquer outro exemplo de rápido crescimento capitalista, o boom da China está repleto de perigos. As finanças do país são altamente instáveis. O boom gerou profunda desigualdade doméstica, ao mesmo tempo em que produziu inveja no exterior, especialmente por parte dos Estados Unidos. Este último país, por outro lado, mantém-se por meio de uma hegemonia decadente, uma política externa errática e um histórico de agressões externas. Adicione-se, agora, que poucos lugares na terra experimentam os custos ambientais de crescimento mais agudamente do que na China. Grande parte do país corre o risco de se tornar simplesmente inabitável. A promessa de crescimento é real e ela está mudando a vida das pessoas de forma nunca antes vista. Mas também está chamando a possibilidade de uma catástrofe jamais observada. Os keynesianos insistem para que 9 se resista à calma suave do futuro para que se enfoque o tumulto do presente. Mas num planeta em rápido aquecimento, as perspectivas estão mais calmas hoje do que estarão amanhã. Apenas daqui a algumas décadas, uma grande parte da humanidade pode se considerar sortuda se apenas a longo prazo é que todos estarão mortos.

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