Paris Marx
Jacobin
Tradução / Apesar de ser proclamada a mais ética das empresas de “carona”, a Uber se encontra, mais uma vez, no centro de uma controvérsia. Desta vez não é por reduzir os valores pagos aos motoristas até que eles mal consigam sobreviver ou por ter uma cultura de sexismo institucionalizado. Não, desta vez, o CEO da empresa, Dara Khosrowshahi, escolheu fazer o melhor malabarismo possível para diminuir a gravidade da execução e esquartejamento do jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi, para evitar irritar o governo saudita e o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman que investiu bilhões na empresa dona do aplicativo.
Em entrevista para a série Axios , na HBO, Khosrowshahi chamou o assassinato brutal e premeditado de Khashoggi no consulado saudita em Istambul – que o Estado saudita tentou encobrir fazendo sair do prédio alguém de aparência semelhante à do jornalista, usando suas roupas – um “equívoco”, de maneira semelhante a um caso em que um veículo autônomo da Uber atropelou um pedestre durante testes. Na verdade, ele foi mais longe, dizendo que “as pessoas cometem erros, isso não significa que nunca podem ser perdoadas”. Em outras palavras, vamos perdoar príncipe Mohammad bin Salman , esse definitivamente-não-ditador-assassino, que supostamente ordenou diretamente o assassinato de Khashoggi – caso contrário, a Uber pode não continuar recebendo o dinheiro saudita que financia suas perdas de bilhões de dólares, trimestre após trimestre.
Sem surpresa, praticamente todo mundo, exceto talvez algumas autoridades sauditas, ficou chocado com o modo como Khosrowshahi não só fez essa declaração, como também não mudou seu tom mesmo depois que os jornalistas da Axios o pressionaram. Você pode imaginar os colegas dele chocados e ofegantes por detrás das câmeras enquanto ele defendia o assassinato como um “equívoco” – e, obviamente, no dia seguinte, apareceu uma declaração de Khosrowshahi explicando que ele “disse algo no momento em que eu não acredito”. Claro, claro.
Contudo, isso não deve causar surpresa a quem vem prestando atenção à história da Uber. Todo o modelo de negócios da Uber se baseia em criminalidade – na violação sistemática e deliberada das regulações locais sobre os táxis, com base em uma aposta de que a empresa poderia se absolver retroativamente, por meio da alteração das leis graças a montanhas de dinheiro gastas em lobby político. Com uma missão desse tipo, não surpreende que seus executivos já tivessem as mãos sujas de sangue muito antes de começarem a receber o sangrento dinheiro saudita. Isso vem de uma mentalidade (desculpe, de um “mindset”) que busca o crescimento literalmente a qualquer custo – humano ou financeiro.
O custo humano da Uber
Aúltima vez que irrompeu publicamente a raiva pelas terríveis práticas comerciais e culturais da Uber, foi com a tentativa cínica da empresa de esmagar uma greve no aeroporto JFK, travada por taxistas de Nova York, em protesto à proibição muçulmana de Trump. Daquela vez, centenas de milhares de pessoas excluíram o aplicativo. Após a recente entrevista na Axios, a hashtag #BoycottUber começou a repercutir naquilo que, esperamos, será uma renovação muito necessária do boicote anterior, que poderia deixar a empresa de joelhos – mesmo com sua atitude blasé em relação ao sofrimento e à morte, o que é característica da empresa.
Veja o exemplo de Elaine Herzberg, que foi atropelada por um veículo autônomo da Uber em um teste realizado em Tempe, Arizona. Em sua entrevista, Khosrowshahi chamou a morte dela de um “equívoco” – uma afirmação tão enganosa quanto chamar o veículo de “auto-dirigido”. Um relatório do National Transportation Safety Board (NTSB) divulgado em novembro de 2019 revelou que Herzberg foi morta por que a equipe que desenvolveu o sistema de auto-condução codificou o sistema para procurar pedestres em áreas de travessia delimitadas; portanto, quando os sensores perceberam Herzberg, o sistema não sabia o que ela era ou como reagir, até que fosse tarde demais. Um erro de supervisão fatal parece uma descrição mais precisa, mas, como de costume, não espere que os responsáveis pela programação sejam responsabilizados. A morte de Herzberg permanece apenas como outra estatística.
A vida dela não foi a única perdida para a filosofia da Uber de “andar rápido e quebrar as coisas”, bem ao estilo do Vale do Silício. Em seu livro “Super Pumped” (algo como “super acelerado”), o repórter do New York Times Mike Isaac descreve a “busca da dominação global” pelo CEO Travis Kalanick – e todas as vidas que foram destruídas nesse processo. Na Índia, a Uber reduziu os salários dos motoristas a tal ponto que uma multidão enfurecida deixou o cadáver de um motorista de Uber na porta da frente da empresa. Outro motorista cometeu suicídio porque não podia pagar as parcelas do seu carro e vários outros se auto-imolaram. Você poderia achar que isso seria o suficiente para que a liderança da empresa reavaliasse suas práticas, mas não acabou por aí.
Os executivos não se importavam se sua entrada agressiva e altamente subsidiada em novos mercados dizimava os meios de subsistência; assim, quando os taxistas no México, que “gastaram milhares de dólares em licenças, autorizações, aulas de treinamento e outros itens obrigatórios pelo Estado” viram subitamente suas corridas despencando com a chegada da Uber, eles ficaram furiosos. Em retaliação, motoristas de Uber foram roubados, atacados e às vezes até mortos. A situação foi semelhante no Brasil, onde a empresa deixou que os motoristas se inscrevessem apenas com um endereço de e-mail ou número de telefone e que aceitassem pagamentos em dinheiro. O aplicativo do Uber foi lançado no momento em que o desemprego atingia um nível historicamente alto e as taxas de criminalidade estavam crescendo no país. Como ninguém na sede da Uber pensou que isso poderia ser um problema permanece um mistério, mas Isaac escreve que “carros foram roubados, motoristas agredidos e ocasionalmente assassinados. [...] Nos últimos anos, pelo menos 16 motoristas foram assassinados no Brasil antes que a equipe de Kalanick melhorasse a verificação de identidade e a segurança no aplicativo”.
E, embora esses relatos possam fazer parecer que a carnificina estava restrita a países pobres, não é essa a realidade. Em dezembro de 2018, o New York Times informou que três proprietários de táxi e cinco motoristas profissionais haviam cometido suicídio nos EUA no ano passado. Douglas Schifter, que se matou do lado de fora da prefeitura, culpou explicitamente a Uber por sua decisão de tirar a própria vida, porque ela o fez ter que trabalhar cem horas por semana apenas para sobreviver. Diferentemente das empresas de táxi, que são altamente reguladas e cujas quantidades de veículos são limitados nas principais cidades, a Uber não segue as mesmas regras, combate de maneira consistente verificações básicas de antecedentes e treinamentos em segurança, e inunda as cidades com o número de veículos que se oferecerem para isso.
Isso é apenas um relato parcial do caos causado pela Uber. Pode-se dizer mais sobre como o ambiente de trabalho sexista da Uber tem afetado tanto as mulheres que trabalham lá como as que usam seu serviço. Isaac relata como Kalanick acreditava que qualquer acusação de agressão sexual ou de assédio contra um motorista seria um ataque pessoal contra a Uber – “ele sentia que a Uber era a verdadeira vítima” – e, às vezes, quando um caso era arquivado, “uma salva de palmas soava no quinto andar do quartel general da Uber”. Essas são as pessoas que a “imprensa de negócios” costumava cobrir e saudar como visionários e modelos de liderança.
A Uber não mudou
AUber possui um longo histórico de ignorar ou passar por cima dos custos humanos de seus negócios. Isaac confirma que os executivos “tinham grandes pontos cegos por causa de sua fixação no crescimento, e que sua aplicação ocasional de incentivos financeiros frequentemente inflamava os problemas socioculturais existentes”. A empresa pode tentar alegar que tudo isso é coisa do passado, mas a resposta de Khosrowshahi à pergunta na Axios sobre a Arábia Saudita e o assassinato de Khashoggi prova, de maneira conclusiva, que isso não passa de baboseira.
A Uber continua esmagando os salários dos motoristas para tentar alcançar a lucratividade, forçando-os a trabalhar mais horas para obter a mesma renda. Ela está lutando contra as novas leis trabalhistas da Califórnia, que exigem que a empresa registre os condutores como seus funcionários, dando a eles os mesmos direitos e proteções legais dos outros trabalhadores. Ela continua subsidiando artificialmente as corridas de Uber para torná-las mais baratas que as tarifas de táxi, destruindo os meios de subsistência dos motoristas de táxi no processo. E ela vai aceitar o dinheiro de quem quer que esteja oferecendo – mesmo que seja um regime que abertamente oprime seu povo, mata jornalistas, que está causando uma crise humanitária no Iêmen e que oprime sistematicamente as mulheres em seu país – e depois vai minimizar seus abusos.
Por toda a sua história, a Uber sempre deu de ombros para assassinatos; Khashoggi é apenas mais um corpo nessa pilha.
Jacobin
Placa em frente ao escritório de registro de motoristas da Uber em Berlim, Alemanha. Foto: Sean Gallup / Getty Images |
Tradução / Apesar de ser proclamada a mais ética das empresas de “carona”, a Uber se encontra, mais uma vez, no centro de uma controvérsia. Desta vez não é por reduzir os valores pagos aos motoristas até que eles mal consigam sobreviver ou por ter uma cultura de sexismo institucionalizado. Não, desta vez, o CEO da empresa, Dara Khosrowshahi, escolheu fazer o melhor malabarismo possível para diminuir a gravidade da execução e esquartejamento do jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi, para evitar irritar o governo saudita e o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman que investiu bilhões na empresa dona do aplicativo.
Em entrevista para a série Axios , na HBO, Khosrowshahi chamou o assassinato brutal e premeditado de Khashoggi no consulado saudita em Istambul – que o Estado saudita tentou encobrir fazendo sair do prédio alguém de aparência semelhante à do jornalista, usando suas roupas – um “equívoco”, de maneira semelhante a um caso em que um veículo autônomo da Uber atropelou um pedestre durante testes. Na verdade, ele foi mais longe, dizendo que “as pessoas cometem erros, isso não significa que nunca podem ser perdoadas”. Em outras palavras, vamos perdoar príncipe Mohammad bin Salman , esse definitivamente-não-ditador-assassino, que supostamente ordenou diretamente o assassinato de Khashoggi – caso contrário, a Uber pode não continuar recebendo o dinheiro saudita que financia suas perdas de bilhões de dólares, trimestre após trimestre.
Sem surpresa, praticamente todo mundo, exceto talvez algumas autoridades sauditas, ficou chocado com o modo como Khosrowshahi não só fez essa declaração, como também não mudou seu tom mesmo depois que os jornalistas da Axios o pressionaram. Você pode imaginar os colegas dele chocados e ofegantes por detrás das câmeras enquanto ele defendia o assassinato como um “equívoco” – e, obviamente, no dia seguinte, apareceu uma declaração de Khosrowshahi explicando que ele “disse algo no momento em que eu não acredito”. Claro, claro.
Contudo, isso não deve causar surpresa a quem vem prestando atenção à história da Uber. Todo o modelo de negócios da Uber se baseia em criminalidade – na violação sistemática e deliberada das regulações locais sobre os táxis, com base em uma aposta de que a empresa poderia se absolver retroativamente, por meio da alteração das leis graças a montanhas de dinheiro gastas em lobby político. Com uma missão desse tipo, não surpreende que seus executivos já tivessem as mãos sujas de sangue muito antes de começarem a receber o sangrento dinheiro saudita. Isso vem de uma mentalidade (desculpe, de um “mindset”) que busca o crescimento literalmente a qualquer custo – humano ou financeiro.
O custo humano da Uber
Aúltima vez que irrompeu publicamente a raiva pelas terríveis práticas comerciais e culturais da Uber, foi com a tentativa cínica da empresa de esmagar uma greve no aeroporto JFK, travada por taxistas de Nova York, em protesto à proibição muçulmana de Trump. Daquela vez, centenas de milhares de pessoas excluíram o aplicativo. Após a recente entrevista na Axios, a hashtag #BoycottUber começou a repercutir naquilo que, esperamos, será uma renovação muito necessária do boicote anterior, que poderia deixar a empresa de joelhos – mesmo com sua atitude blasé em relação ao sofrimento e à morte, o que é característica da empresa.
Veja o exemplo de Elaine Herzberg, que foi atropelada por um veículo autônomo da Uber em um teste realizado em Tempe, Arizona. Em sua entrevista, Khosrowshahi chamou a morte dela de um “equívoco” – uma afirmação tão enganosa quanto chamar o veículo de “auto-dirigido”. Um relatório do National Transportation Safety Board (NTSB) divulgado em novembro de 2019 revelou que Herzberg foi morta por que a equipe que desenvolveu o sistema de auto-condução codificou o sistema para procurar pedestres em áreas de travessia delimitadas; portanto, quando os sensores perceberam Herzberg, o sistema não sabia o que ela era ou como reagir, até que fosse tarde demais. Um erro de supervisão fatal parece uma descrição mais precisa, mas, como de costume, não espere que os responsáveis pela programação sejam responsabilizados. A morte de Herzberg permanece apenas como outra estatística.
A vida dela não foi a única perdida para a filosofia da Uber de “andar rápido e quebrar as coisas”, bem ao estilo do Vale do Silício. Em seu livro “Super Pumped” (algo como “super acelerado”), o repórter do New York Times Mike Isaac descreve a “busca da dominação global” pelo CEO Travis Kalanick – e todas as vidas que foram destruídas nesse processo. Na Índia, a Uber reduziu os salários dos motoristas a tal ponto que uma multidão enfurecida deixou o cadáver de um motorista de Uber na porta da frente da empresa. Outro motorista cometeu suicídio porque não podia pagar as parcelas do seu carro e vários outros se auto-imolaram. Você poderia achar que isso seria o suficiente para que a liderança da empresa reavaliasse suas práticas, mas não acabou por aí.
Os executivos não se importavam se sua entrada agressiva e altamente subsidiada em novos mercados dizimava os meios de subsistência; assim, quando os taxistas no México, que “gastaram milhares de dólares em licenças, autorizações, aulas de treinamento e outros itens obrigatórios pelo Estado” viram subitamente suas corridas despencando com a chegada da Uber, eles ficaram furiosos. Em retaliação, motoristas de Uber foram roubados, atacados e às vezes até mortos. A situação foi semelhante no Brasil, onde a empresa deixou que os motoristas se inscrevessem apenas com um endereço de e-mail ou número de telefone e que aceitassem pagamentos em dinheiro. O aplicativo do Uber foi lançado no momento em que o desemprego atingia um nível historicamente alto e as taxas de criminalidade estavam crescendo no país. Como ninguém na sede da Uber pensou que isso poderia ser um problema permanece um mistério, mas Isaac escreve que “carros foram roubados, motoristas agredidos e ocasionalmente assassinados. [...] Nos últimos anos, pelo menos 16 motoristas foram assassinados no Brasil antes que a equipe de Kalanick melhorasse a verificação de identidade e a segurança no aplicativo”.
E, embora esses relatos possam fazer parecer que a carnificina estava restrita a países pobres, não é essa a realidade. Em dezembro de 2018, o New York Times informou que três proprietários de táxi e cinco motoristas profissionais haviam cometido suicídio nos EUA no ano passado. Douglas Schifter, que se matou do lado de fora da prefeitura, culpou explicitamente a Uber por sua decisão de tirar a própria vida, porque ela o fez ter que trabalhar cem horas por semana apenas para sobreviver. Diferentemente das empresas de táxi, que são altamente reguladas e cujas quantidades de veículos são limitados nas principais cidades, a Uber não segue as mesmas regras, combate de maneira consistente verificações básicas de antecedentes e treinamentos em segurança, e inunda as cidades com o número de veículos que se oferecerem para isso.
Isso é apenas um relato parcial do caos causado pela Uber. Pode-se dizer mais sobre como o ambiente de trabalho sexista da Uber tem afetado tanto as mulheres que trabalham lá como as que usam seu serviço. Isaac relata como Kalanick acreditava que qualquer acusação de agressão sexual ou de assédio contra um motorista seria um ataque pessoal contra a Uber – “ele sentia que a Uber era a verdadeira vítima” – e, às vezes, quando um caso era arquivado, “uma salva de palmas soava no quinto andar do quartel general da Uber”. Essas são as pessoas que a “imprensa de negócios” costumava cobrir e saudar como visionários e modelos de liderança.
A Uber não mudou
AUber possui um longo histórico de ignorar ou passar por cima dos custos humanos de seus negócios. Isaac confirma que os executivos “tinham grandes pontos cegos por causa de sua fixação no crescimento, e que sua aplicação ocasional de incentivos financeiros frequentemente inflamava os problemas socioculturais existentes”. A empresa pode tentar alegar que tudo isso é coisa do passado, mas a resposta de Khosrowshahi à pergunta na Axios sobre a Arábia Saudita e o assassinato de Khashoggi prova, de maneira conclusiva, que isso não passa de baboseira.
A Uber continua esmagando os salários dos motoristas para tentar alcançar a lucratividade, forçando-os a trabalhar mais horas para obter a mesma renda. Ela está lutando contra as novas leis trabalhistas da Califórnia, que exigem que a empresa registre os condutores como seus funcionários, dando a eles os mesmos direitos e proteções legais dos outros trabalhadores. Ela continua subsidiando artificialmente as corridas de Uber para torná-las mais baratas que as tarifas de táxi, destruindo os meios de subsistência dos motoristas de táxi no processo. E ela vai aceitar o dinheiro de quem quer que esteja oferecendo – mesmo que seja um regime que abertamente oprime seu povo, mata jornalistas, que está causando uma crise humanitária no Iêmen e que oprime sistematicamente as mulheres em seu país – e depois vai minimizar seus abusos.
Por toda a sua história, a Uber sempre deu de ombros para assassinatos; Khashoggi é apenas mais um corpo nessa pilha.
Sobre o autor
Paris Maxr é escritor socialista e urbanista. Edita o Radical Urbanist e já escreveu para a NBC News, CBC News e Toronto Star.
Paris Maxr é escritor socialista e urbanista. Edita o Radical Urbanist e já escreveu para a NBC News, CBC News e Toronto Star.
Nenhum comentário:
Postar um comentário