2 de dezembro de 2019

O SPD vira à esquerda

Neste fim de semana, o SPD alemão desafiou a cúpula partidária para eleger uma dupla de esquerda à liderança - e dar nova vida à política socialista do país.

Steve Hudson



Tradução / É difícil superestimar a importância dos resultados deste fim de semana para a política alemã. Uma dupla de esquerda relativamente desconhecida triunfou em uma eleição interna para a liderança do Partido Social Democrata Alemão (SPD), o mais antigo partido do país.

Saskia Esken e Norbert Walter-Borjans não derrotaram qualquer um. Venceram ninguém mais, ninguém menos, que Olaf Scholz, o atual ministro federal das Finanças e vice-chanceler. Ao votar a favor de mudanças, os filiados do SPD frustraram as previsões (e as preferências mal disfarçadas) de boa parte da mídia corporativa alemã.

O apoio de Esken e Walter-Borjans veio não da cúpula partidária, mas de centenas de milhares de ativistas de base – e de milhões de fora do partido, que observavam e ansiavam por mudanças. Sejam esses milhões de grevistas do clima, de militantes de esquerda ou de trabalhadores desiludidos, trata-se de uma vitória que soa como uma nota de esperança não apenas para o SPD, mas também para a Alemanha e toda a Europa.

Pode significar o fim da humilhante “grande coalizão” [dos social-democratas com a democracia-cristã] com os conservadores, sob a qual o SPD permitiu que o arrocho mortal da austeridade sufocasse toda a Alemanha e a Europa. Também poderia significar o fim da inação na catástrofe climática e uma ruptura genuína com o princípio de "Alternativlosigkeit" (“Não há alternativa”) dos anos Merkel.

Se a vitória parece como uma repetição do fenômeno corbynista [a eleição de Jeremy Corbyn para líder trabalhista no Reino Unido, e o giro do partido a esquerda], é porque as semelhanças são mesmo evidentes. A fragmentada esquerda alemã tem olhado esperançosamente para o Partido Trabalhista como um dos poucos exemplos de renovação e revitalização política em um continente onde os outros partidos da esquerda estão morrendo em pé.

Na campanha “NoGroKo” [No Große Koalition] – a campanha ativista da esquerda do SPD contra mais uma grande coalizão com a centro-direita – estamos há muito tempo mobilizados por uma democracia mais direta e, especificamente, por uma eleição da liderança direta pela base (1 filiado, 1 voto). Sempre sentimos que essa seria a chave para rejuvenescer o partido.

E um rejuvenescimento se faz desesperadamente necessário. Após a derrota de Schröder em 2005, e todas as humilhações subsequentes desde então, a cúpula do SPD jurou “se renovar”. Prometeu essa renovação com tanta frequência que, de fato, a frase se tornou uma piada.

O humorista Jan Böhmermann até lançou seu nome no ringue para a disputa pela liderança do SPD com o slogan satírico ‘# Neustart19’ (“novo começo número 19”). Mas com a promoção na hierarquia partidária dependendo do elogio às “reformas de Schröder”, nem o pecado cardinal nem os pecadores cardeais que colocaram o SPD nessa situação desastrosa podiam ser postos em debate.

Ainda hoje, existem aqueles que continuam alegando que a guinada dos trabalhistas britânicos a esquerda é um passivo eleitoral. Embora seja um clichê comum na boca da mídia centrista da Grã-Bretanha, trata-se de uma afirmação que soa ridícula quando vinda de auto-proclamados eurófilos, que parecem surpreendentemente ignorantes a respeito do destino dos partidos irmãos da social-democracia européia.

Em 1998, os social-democratas alemães entraram no governo, sob liderança de Schröder, com 40% dos votos. Hoje, as pesquisas os colocam com algo entre 13 e 15%. Em outros países, claro, a situação é ainda pior – veja o Partido Socialista na França, que não conseguiu escapar de ser esmagado nas últimas eleições presidenciais, e agora está caindo aos pedaços completamente.

A morte da centro-esquerda não deve encher ninguém de alegria: em vez de impulsionar novos partidos ou coalizões de esquerda, o que acabou acontecendo foi o encolhimento das maiorias progressistas, com um número cada vez maior de eleitores desertando para a direita autoritária em ascensão – xenófoba e inescrupulosamente mentirosa – que está agora no poder na Grã-Bretanha e em grande parte do continente europeu.

Mas agora, na última chamada, as bases do SPD parecem ter salvado seu partido – e, por extensão, a Alemanha e possivelmente até a Europa – elegendo uma dupla de esquerda para a liderança. A votação coloca o SPD em um novo rumo que, pela primeira vez, rompe com o desastroso legado do último governo majoritário do partido, com Gerhard Schröder.

Abraçando a lógica da globalização da corrida ao fundo do poço, Schröder cortou avidamente benefícios sociais, proteções trabalhistas e impostos sobre os mais ricos – jogando milhões de alemães na pobreza e na insegurança, aumentando os lucros do capital e alienando fundamentalmente o partido de suas próprias origens e de sua base de eleitores na classe trabalhadora.

Scholz, o derrotado na disputa, concorreu pela liderança como defensor dessas “reformas” de Schröder e das várias “grandes coalizões” do SPD com a CDU [Partido da Democracia Cristã] desde então. Quando jovem, ele pertencia à corrente chamada Stamokap [“Staatsmonopolistischer Kapitalismus”, Capitalismo Monopolista de Estado], que teorizou os monopólios privados sustentados pelo poder do Estado como o último estágio do capitalismo financeirizado.

No poder, porém, Scholz ficou mais conhecido como agente desses monopólios do que como um crítico, trazendo um banqueiro do Goldman Sachs como consultor para o ministério das finanças e informando seus colegas da União Europeia que pretendia seguir a linha de austeridade ordoliberal mórbida de seu antecessor no ministério das Finanças, o agressivamente conservador Wolfgang Schäuble.

Em um momento de taxas de juros negativas e uma enorme deficiência de longo prazo nos gastos alemães em infraestrutura, Scholz se apegou absurdamente à política de equilíbrio orçamentário ‘schwarze null’ [pela qual o governo alemão se compromete a manter um orçamento não-deficitário sem definição], que proíbe qualquer nova dívida pública. Um político já pouco carismático nos seus melhores dias, as mal-sucedidas tentativas de Scholz, no último minuto, de adotar posições mais a esquerda para a eleição da liderança careciam de qualquer credibilidade.

E credibilidade é precisamente o que os vencedores têm: ambos vêm de fora da hierarquia do partido, e ambos são capazes de se distanciar das más decisões dos anos anteriores. Uma ex-motorista de entregas, que se formou em um curso para adultos e passou a trabalhar com Tecnologia da Informação, Saskia Esken se rebelou contra a linha do partido, tanto em direitos digitais quanto em leis de imigração.

O mais escandaloso: ela fala abertamente de socialismo – uma palavra que é tabu para grande parte do mainstream alemão, que a associa com a repressão e as liberdades civis reduzidas da antiga Alemanha Oriental.

Norbert Walter-Borjans, por sua vez, traz consigo amplo conhecimento prático de governo como ex-ministro das Finanças da Renânia do Norte-Vestfália, o maior estado da Alemanha, com uma população de 18 milhões de habitantes. Incrivelmente, ele ganhou destaque nacional no cargo por comprar CDs roubados com listas de sonegadores de impostos alemães, que mantêm dinheiro ilegalmente na Suíça.

Embora se trate de prática normal para a polícia e os serviços secretos, a ideia de pagar por músicas que podem pôr em risco os ricos provocou urros de indignação dos lobistas, da mídia de direita e de boa parte do 1% alemão, para quem a evasão fiscal é um esporte de cavalheiros.

Em contraste marcado com tantos colegas do SPD no governo, e com uma compreensão detalhada e magistral dos aspectos técnicos, Walter-Borjans deu todo apoio aos seus fiscais, enfrentou orgulhosamente os ataques e trouxe de volta para a Alemanha, em receita tributária, 7 bilhões de euros em ativos escondidos ilegalmente. Sua disposição para não recuar no caso até lhe valeu um apelido particularmente britânico: Robin Hood.

Tomar dos ricos para dar aos pobres é precisamente o que as pessoas esperam que o SPD faça. Walter-Borjans passou todo o ano anterior promovendo entusiasmadamente seu livro, no qual examina criticamente o fracasso do SPD em fazer isso que se esperaria de um partido social-democrata.

Em “Impostos – o grande blefe”, ele também ataca ferozmente a influência perniciosa dos lobistas, e de suas fake news, na tomada de decisões políticas. Sua linguagem é geralmente moderada, mas as implicações de sua conclusão são radicais: sem freios, o capital é uma ameaça a qualquer tentativa de conformar um campo equilibrado para o jogo democrático.

Parafraseando Margaret Thatcher, a maior conquista do neoliberalismo foi a captura ideológica dos partidos de centro-esquerda. Mas o neoliberalismo não está funcionando. Tendo prometido prosperidade e igualdade de oportunidades para todos, provou ser um promotor de desigualdade obscena, da catástrofe climática e agora na ascensão da extrema direita.

Podemos assumir com segurança que as crianças nascidas hoje levarão uma vida pior do que a nossa. Neste momento, uma alternativa genuína ao status quo não é mais uma demanda de uma radicalismo marginal – é uma demanda majoritária, das pessoas comuns.

Mas, para que essa política encontre expressão em nossos partidos políticos, as estruturas devem ser abertas à contribuições democráticas de baixo pra cima. Qualquer instituição – partidos, indústrias nacionalizadas, sindicatos – que mantenha estruturas que permitam a grupos privilegiados controlar feudos e distribuir generosidades deve ser aberta a uma transparência radical, responsabilização e democracia direta. A alternativa é tropeçar vacilante sob o peso do passado e, eventualmente, ser sufocado por ele.

Para os militantes do SPD, este é apenas o começo. Os cruéis contra-ataques da mídia, e até da direita do partido, pegaram a muitos de surpresa. Mas é o resultado inevitável de quando um grupo organizado de operadores políticos, com íntimos contatos na mídia, vê ameaçado o controle sobre as próprias carreiras.

Animem-se, camaradas. Ainda vai ficar muito, muito pior. Mas se vocês estão incomodando o status quo, é sinal claro de que algo certo estão fazendo. E é precisamente essa oposição que os forçará a se organizarem e criarem seu próprio estrutura de poder – de baixo para cima.

Sobre o autor

Steve Hudson é um ativista nascido no Reino Unido com sede na Alemanha e co-presidente da Momentum International. Ele co-organiza o podcast halbzehn.fm.

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