Uma entrevista com
John Foot
Mas o futebol italiano nem sempre foi o que é agora. Uma mudança específica ocorreu com a Carta de Viareggio de 1926, um texto fundamental que anunciava a profissionalização e a criação da Série A. Este documento foi conduzido por duas forças que quase imediatamente viriam a moldar o futebol na Itália: indústria e política.
Nesse mesmo período, figuras políticas impuseram seu controle sobre um esporte que já chamava a atenção das massas. A Carta sancionou a criação de um campeonato único nacional – em sincronia com o discurso nacionalista do fascismo que acabara de se consolidar – e representou o enfraquecimento dos campeonatos regionais. Apesar das mudanças no número de times e na contagem de pontos, a divisão entre Série A e B, naquele momento, acompanhou a evolução de uma competição crescente na Itália e no mundo.
No auge das décadas de 1980 e 1990, a Série A era a principal liga de futebol do mundo, desempenhando um papel decisivo na formação do jogo moderno – com craques do mundo todo, esbanjando o equilíbrio entre times das grandes cidades e a província; apresentou as primeiras transferências milionárias, como aquela de Gianluigi Lentini para o Milan de Berlusconi em 1992. No entanto, ficou para trás de seus concorrentes estrangeiros nos últimos anos, em particular a Premier League da Inglaterra. Por tudo isso, continua sendo um espelho fascinante e distorcido da sociedade italiana, com todas as suas esperanças, contradições e sofrimento.
John Foot, autor do livro Calcio: A History of Italian Football, é um dos principais historiadores da sociedade italiana e da cultura popular. Para o professor da Universidade de Bristol, “é quase impossível compreender a Itália sem entender o futebol – e vice-versa”. No final de semana em que a final da Supercoppa Italiana foi disputada em um estádio saudita, Foot falou com Giacomo Gabbuti e Francesco Santimone da Jacobin Itália sobre como dinheiro, nacionalismo e migração criaram o esporte nacional – e como o futebol moldou a sociedade.
Tradução / O ano que acabou foi marcado por diversos aniversários na Europa – a queda do Muro de Berlim, o saudoso Outono Quente italiano de 1969, os cem anos do primeiro Biênio Vermelho, são algumas comemorações. Entre elas, há também o nonagésimo aniversário da criação da Série A – o mais importante campeonato de futebol italiano, deleite de milhões de torcedores apaixonados em todas as religiões da Itália. A consagração da “fanática religião cívica” italiana era obrigatório todo domingo, até os jogos começarem a se espalhar para os dias da semana, a pedido dos conglomerados de TV.
Mas o futebol italiano nem sempre foi o que é agora. Uma mudança específica ocorreu com a Carta de Viareggio de 1926, um texto fundamental que anunciava a profissionalização e a criação da Série A. Este documento foi conduzido por duas forças que quase imediatamente viriam a moldar o futebol na Itália: indústria e política.
Nesse mesmo período, figuras políticas impuseram seu controle sobre um esporte que já chamava a atenção das massas. A Carta sancionou a criação de um campeonato único nacional – em sincronia com o discurso nacionalista do fascismo que acabara de se consolidar – e representou o enfraquecimento dos campeonatos regionais. Apesar das mudanças no número de times e na contagem de pontos, a divisão entre Série A e B, naquele momento, acompanhou a evolução de uma competição crescente na Itália e no mundo.
No auge das décadas de 1980 e 1990, a Série A era a principal liga de futebol do mundo, desempenhando um papel decisivo na formação do jogo moderno – com craques do mundo todo, esbanjando o equilíbrio entre times das grandes cidades e a província; apresentou as primeiras transferências milionárias, como aquela de Gianluigi Lentini para o Milan de Berlusconi em 1992. No entanto, ficou para trás de seus concorrentes estrangeiros nos últimos anos, em particular a Premier League da Inglaterra. Por tudo isso, continua sendo um espelho fascinante e distorcido da sociedade italiana, com todas as suas esperanças, contradições e sofrimento.
John Foot, autor do livro Calcio: A History of Italian Football, é um dos principais historiadores da sociedade italiana e da cultura popular. Para o professor da Universidade de Bristol, “é quase impossível compreender a Itália sem entender o futebol – e vice-versa”. No final de semana em que a final da Supercoppa Italiana foi disputada em um estádio saudita, Foot falou com Giacomo Gabbuti e Francesco Santimone da Jacobin Itália sobre como dinheiro, nacionalismo e migração criaram o esporte nacional – e como o futebol moldou a sociedade.
Vamos começar do começo. Nesse ano (2019) comemora-se também os 110 anos do nascimento da Figc, que desde a escolha da palavra “calcio”, único caso no mundo em que não adotou-se a tradução da pala “football”, em inglês, na tentativa de fazer referência e estabelecer continuidade com a pseudo-tradição do Futebol Histórico Fiorentino, deixou em evidência sua forte conotação nacionalista. Em 1909, ocorre também o primeiro jogo da seleção italiana em que, diante de uma acalorada polêmica sobre o número de jogadores estrangeiros, com o contraste entre os jogadores do Internacional, Gênova e os “Leões” do italianissimo Pro-Vercelli, a seleção escolhe entrar em campo no seu jogo de estreia com seus atletas vestindo camisas inteiramente brancas, em homenagem à equipe piemontesa. Hoje a seleção italiana vive outra polêmica: se adota ou não o kit “Renascimento”, que reutiliza a camisa verde usada unicamente em 1954 e substitui a famosa camisa azul. Estamos assistindo uma inédita separação entre futebol e nacionalismo na Itália, com um futebol consciente sobre seu papel de freio contra os novos impulsos nacionalistas? Se sim, estamos adotando métodos efetivos?
É difícil dizer. Acredito que nos últimos anos presenciamos um distanciamento dos italianos da Seleção e o aumento da lealdade com o próprio time, especialmente em relação aos clubes com maior número de torcedores: Juventus, Milan, Inter e depois Napoli e Roma. No passado, essas duas identidades costumavam coexistir de maneira bastante eficaz – a fidelidade para com o próprio time não interferia muito ao apoio à Seleção italiana, pela qual existia uma forte identificação expressa nas grandes vitórias. Mas existe a evidência de que a força de atração da Seleção caiu nos últimos anos e a falta de qualificação para a última Copa do Mundo (2018) não causou um grande trauma. Contudo, o aumento do nacionalismo da Liga, liderada por Matteo Salvini, poderia ter um efeito interessante sobre a adesão à torcida para a Seleção. Ainda é cedo para tirar conclusões, os próximos campeonatos europeus serão um primeiro teste para essa hipótese. Política, identidade e Seleção sempre foram fortemente entrelaçados na Itália, desde o fascismo até como Pertini utilizou a vitória de 1982 para fortalecer seu próprio mito. De certa forma, o futebol sempre representou um dos poucos lugares onde sempre foi aceitável envolver-se na bandeira tricolor. Aliás, após a vitória de 1982, os jornais reportaram casos de pessoas de esquerda que celebraram nas praças com velhas bandeiras esburacadas, porque tinham retirado só naquele momento o velho brasão de Saboia, depois de deixá-las décadas acumulando pó em suas casas! É interessante que hoje, o movimento das chamadas Sardinhas entoa canções como Bella Ciao e Hino de Mameli. No passado, esse “envolvimento” com a bandeira nacional no futebol demonstrou ser um fenômeno breve e não deteve as divisões políticas. Cada derrota transformou-se em polêmica contra jogadores, treinadores ou outros personagens; sempre foi fácil achar bodes expiatórios. O futebol continua sendo uma linguagem universal, utilizado pelos políticos para comunicar com as massas de torcedores.
Dos grandes “santos” do banco (o mago Herrera, Liedholm, até Mourinho) até os jogadores (os estrangeiros dos quais devemos nos “defender”, aqueles que devem ser acolhidos pela “glória da pátria”, até a segunda geração “não completamente italiana”), o futebol italiano talvez tenha antecipado a relação problemática da Itália com a imigração. É um fenômeno recente e talvez efêmero também aquele da “fuga dos cérebros”, com os nossos grandes treinadores (Ancelotti, Conte, Sarri) e nossas jovens esperanças (como Kean) saindo da Itália para procurar sucesso em outro país. Podemos utilizar a Série A para traçar a história da relação entre a Itália e a imigração? O que aprendemos com isso?
A emigração, a imigração, a identidade, são continuamente compreendidas e representadas pelo esporte. O futebol, desde sua origem, absorveu e representou com veemência as contradições presentes nesses movimentos e identidades. Basta lembrar como os jogadores do sul da Itália, durante a grande migração interna entre os anos 1960 e 1970, tornaram-se representantes de alguns dos times mais importantes na época. O futebol italiano, assim como muitas outras instituições futebolísticas, foi globalizado. Quando o pressing [é uma tática do futebol que consiste em atacar o adversário limitando a área de jogo do campo oponente] conquistou o futebol italiano, na era de Arrigo Sacchi e do futebol total, muitos fanáticos deixaram o país para jogar o seu estilo em outro lugar – foi o caso de Gianfranco Zola, Benito Carbone, Paolo Di Canio. Recentemente, o relativo declínio financeiro da Série A aumentou a importância de jogadores de nacionalidades menos presentes até o momento, como os poloneses. O racismo das arquibancadas era mais ou menos ausente no final dos anos 1980 e no início dos anos 90, mas tornou-se frequente quando o racismo político decolou a partir da metade de 1990. As autoridades não tiveram a capacidade de detê-lo nos estádios, em parte devido ao poder dos Ultras, em parte pela falta de vontade política, por uma incompreensão do que seja racismo e por fim pela completa ausência de representatividade das comunidades de migrantes no interior das estruturas do futebol e de instituições sociais em geral. Mario Balotelli é a representação emblemática de tudo isso. Nascido e crescido na Itália (e durante grande parte da sua vida com pais adotivos italianos) ele foi o primeiro italiano negro que tornou-se uma estrela de fama internacional. Foi também o jogador mais insultado da história italiana, vítima de racismo quotidiano. A gravidade do problema foi negada; chegaram a dizer que não era racismo. Aqueles que ocupam lugares de poder e liderança dentro da sociedade italiana não tem nenhuma noção do que é racismo e de como combatê-lo. Enquanto isso, a Liga de Salvini estimula a divulgação de propagandas anti-imigração nas redes sociais. A recente campanha “Antirracismo” criada pela Série A, que utilizava macacos como ilustração (!) é apenas um exemplo dessa situação, talvez o mais grotesco.
Outro aspecto da relação entre política e futebol é aquele de ordem pública. Ainda que sejam descritos em tom sensacionalista, desde o começo o futebol italiano teve episódios de violência. Como citado em seu livro, os primeiros registros são de 1905; houve um pequeno aumento com a Grande Guerra. A primeira ligação do futebol com a política ocorreu em pleno Biênio Vermelho, com as “jornadas vermelhas” de Viareggio. O autoritarismo fascista sancionou a ligação entre futebol e repressão depois da crise ligada ao assassinato de Giacomo Matteotti; a final do campeonato italiano ocorreu em Bolonha, em 1925, com um jogo muito contestado e disputado a portas-fechadas, após diversos confrontos e tiroteios. Em 1926, é decretado outro arrocho das liberdades políticas, devido ao atentado fracassado contra Mussolini por parte de Anteo Zamboni, sempre em Bolonha, durante a inauguração do Estádio Littoriale no dia do aniversário da Marcha de Roma. Antonio Gramsci foi preso poucos dias depois. Hoje temos o Daspo Urbano e o Decreto de Segurança; as políticas experimentadas nos estádios são estendidas para o conflito social. Podemos dizer que o problema não são os estádios, mas sim as práticas repressivas de gestão da ordem pública de um Estado decisivamente pouco liberal?
Os estádios italianos são uma espécie de prisão, lugares dominados por lógicas de supervisão e custódia, onde torcedores são vistos como perigosos e por isso devem ser trancafiados. O Estado entende o futebol como uma questão de segurança pública. O outro lado da moeda são os Ultras – que no passado foram uma espécie de movimento social, mas hoje são, na maior parte da Itália, um grupo criminoso e violento de extrema-direita. Os ultras se alimentam da ligação entre o estádio-prisão e as sociedades futebolísticas; vendem bilhetes ilegalmente, drogas e ameaçam as próprias sociedades. Obviamente existem exceções, como o caso do trabalho de Tobias Jones com os ultras de Cosenza; mas ainda assim, o modelo Ultras é autoritário, hierárquico e nada inclusivo. O que devemos fazer? Difícil dizer. Ninguém possui a resposta e as detenções contínuas de torcedores não parecem surtir efeitos. A organização Ultras sobrevive graças ao mundo altamente controlado do “futebol moderno”. Pode parecer um anacronismo, mas é um modelo que inspira muitos outros torcedores de outros países, como demonstra David Goldblatt no seu livro “A era do futebol” (“The Age of Football”). O Estado italiano continua a administrar o sistema futebolístico de forma desastrosa, tentando gerir um longo declínio desde as vitórias dos anos noventa. O sucesso da Seleção feminina italiana na última Copa do Mundo nos dá esperanças de que o futebol feminino irá conquistar os recursos e o reconhecimento que merece – e que meninas sejam encorajadas a jogar futebol no nível mirim (como está ocorrendo com incrível velocidade no Reino Unido). Mas devo dizer que, pessoalmente, não tenho muita esperança. A renovação que parecia possível nos tempos do Calciopoli foi sufocada.
No momento em que Arcelor Mittal iniciou um traumático braço-de-ferro contra o governo italiano para decidir o futuro do ex Ilva de Taranto, o Daily Mail reportou o interesse da família Al-Thani pelo Napoli. Em poucos anos o Inter tornou-se tailandês e depois chinês; enquanto isso, Milan, Roma, Bologna e Fiorentina passaram pelas mãos de norte-americanos. A Juve, legalmente holandesa desde 2016, corre o risco de ver sua histórica ligação com a Fiat cortada, devido a suposta aquisição da gigante automobilística pela Psa francesa. Essa tendência segue o modelo inglês, de campeonatos cada vez mais internacionalizados, projetados para uma Superliga Europeia, com a Série B tornando-se cada vez mais o “campeonato dos italianos”. O que pode nos dizer sobre o declínio econômico da Itália e o seu papel na economia global?
O futebol italiano tinha a possibilidade de dominar o mundo quando a economia italiana era forte nos anos sessenta, quando Milão era um foco do futebol global, e nos anos oitenta, com a ilusão de um segundo boom e a chegada de um pioneiro (em termos políticos, econômicos, culturais e esportivos) como Silvio Berlusconi. O Mundial de 1990 parecia apresentar uma nova era de estilo esportivo “Made in Italy”, com a fusão perfeita entre design, arquitetura, música e tradição. Mas era uma falsa largada: as bases da economia eram frágeis, assim como aquelas do sistema futebolístico. Dúzias de clubes foram à falência porque suas contas eram maquiadas. A chegada de proprietários estrangeiros não culminou no retorno do status global, parecido com aquele dos anos oitenta e noventa. Apesar disso, a “Velha Senhora” (nome dado à Juventus pelos torcedores), ainda nas mãos da família Agnelli (industriais), conseguiu manter o seu domínio, vencendo campeonato após campeonato e atraindo para território italiano craques internacionais (incluindo Cristiano Ronaldo). O futebol italiano, assim como a Itália, ainda possui centros de excelência (como os sistemas de treino ou os grandes técnicos, por exemplo) mas está vivendo uma crise profunda e complexa. Uma “crise” tão longa que a própria palavra começa a perder o seu significado.
Sobre o mapa que abre o seu livro: a Série A hoje representa um país marcado pela crise, estagnação e desigualdade – entre classes, territórios, gerações. O Sul sumiu, com times na Série C; as grandes cidades resistem, junto com o que sobra do Norte produtivo. Enquanto todo o futebol se financeiriza, a Juve tenta aproveitar suas isenções fiscais para manter Cristiano Ronaldo. O Milan, time com mais títulos da Europa, está enrolado em uma crise sem fim; sobre ele, avançam os capitais chineses, assim como avançam sobre o Atalanta, obrigado a adotar preços baixos para se vender. Os grandes times do centro-sul também são obrigados a aderir ao trading, como o caso do Roma, à deflação salarial, como o Napoli e até mesmo à repressão de greves. Contudo, parece que o retorno de grandes treinadores e craques, junto com o “Renascimento” da Seleção, clamam por uma mudança de tendência. Essa promessa de mudança é real? O que podemos esperar da Série A italiana?
A Série A continua sendo um campeonato incrível para se assistir. Ainda possui aquela combinação de táticas sofisticadas, defesa de alta qualidade e estádios (apesar de decrépitos) fascinantes. Os estereótipos de Catenaccio são ridículos, utilizados apenas por quem não assiste de verdade o futebol italiano. Mas é, de fato, difícil de assistir fora da Itália: os direitos televisivos foram administrados muito mal. Isso resultou na marginalização da Série A. Claro, é necessário que outros também vençam – um campeonato em que vence apenas a Juventus não é saudável, nem mesmo para a própria Juventus! O Atalanta fornece certa esperança e o Inter finalmente voltou a ser competitivo. Roma e Napoli parecem ter iniciado um longo declínio, e não há sinal do retorno da glória do Milan como nos tempos de Berlusconi. Quanto a Itália, o futuro não parece bom. O sistema político do país simplesmente não funciona mais; a extrema-direita é ágil, tem a confiança das pessoas e está pronta para tomar o poder e usá-lo para gerar mais raiva e conduzir uma campanha eleitoral permanente contra os imigrantes e os “bondosos” [é um termo popular que se tornou político na Itália hoje, após ser usado incansavelmente pela extrema-direita]. Como se não bastasse, a Itália não produziu um campeão de nível mundial após a aposentadoria de Andrea Pirlo. Com certeza existem ótimos jogadores que estão se formando, mas nenhum deles parece ser como foram aqueles da geração anterior. A “fuga dos cérebros” continua forte até mesmo no mundo do futebol. O futuro ainda deve ser escrito, mas, infelizmente, a continuação do declínio parece inevitável.
É difícil dizer. Acredito que nos últimos anos presenciamos um distanciamento dos italianos da Seleção e o aumento da lealdade com o próprio time, especialmente em relação aos clubes com maior número de torcedores: Juventus, Milan, Inter e depois Napoli e Roma. No passado, essas duas identidades costumavam coexistir de maneira bastante eficaz – a fidelidade para com o próprio time não interferia muito ao apoio à Seleção italiana, pela qual existia uma forte identificação expressa nas grandes vitórias. Mas existe a evidência de que a força de atração da Seleção caiu nos últimos anos e a falta de qualificação para a última Copa do Mundo (2018) não causou um grande trauma. Contudo, o aumento do nacionalismo da Liga, liderada por Matteo Salvini, poderia ter um efeito interessante sobre a adesão à torcida para a Seleção. Ainda é cedo para tirar conclusões, os próximos campeonatos europeus serão um primeiro teste para essa hipótese. Política, identidade e Seleção sempre foram fortemente entrelaçados na Itália, desde o fascismo até como Pertini utilizou a vitória de 1982 para fortalecer seu próprio mito. De certa forma, o futebol sempre representou um dos poucos lugares onde sempre foi aceitável envolver-se na bandeira tricolor. Aliás, após a vitória de 1982, os jornais reportaram casos de pessoas de esquerda que celebraram nas praças com velhas bandeiras esburacadas, porque tinham retirado só naquele momento o velho brasão de Saboia, depois de deixá-las décadas acumulando pó em suas casas! É interessante que hoje, o movimento das chamadas Sardinhas entoa canções como Bella Ciao e Hino de Mameli. No passado, esse “envolvimento” com a bandeira nacional no futebol demonstrou ser um fenômeno breve e não deteve as divisões políticas. Cada derrota transformou-se em polêmica contra jogadores, treinadores ou outros personagens; sempre foi fácil achar bodes expiatórios. O futebol continua sendo uma linguagem universal, utilizado pelos políticos para comunicar com as massas de torcedores.
Dos grandes “santos” do banco (o mago Herrera, Liedholm, até Mourinho) até os jogadores (os estrangeiros dos quais devemos nos “defender”, aqueles que devem ser acolhidos pela “glória da pátria”, até a segunda geração “não completamente italiana”), o futebol italiano talvez tenha antecipado a relação problemática da Itália com a imigração. É um fenômeno recente e talvez efêmero também aquele da “fuga dos cérebros”, com os nossos grandes treinadores (Ancelotti, Conte, Sarri) e nossas jovens esperanças (como Kean) saindo da Itália para procurar sucesso em outro país. Podemos utilizar a Série A para traçar a história da relação entre a Itália e a imigração? O que aprendemos com isso?
A emigração, a imigração, a identidade, são continuamente compreendidas e representadas pelo esporte. O futebol, desde sua origem, absorveu e representou com veemência as contradições presentes nesses movimentos e identidades. Basta lembrar como os jogadores do sul da Itália, durante a grande migração interna entre os anos 1960 e 1970, tornaram-se representantes de alguns dos times mais importantes na época. O futebol italiano, assim como muitas outras instituições futebolísticas, foi globalizado. Quando o pressing [é uma tática do futebol que consiste em atacar o adversário limitando a área de jogo do campo oponente] conquistou o futebol italiano, na era de Arrigo Sacchi e do futebol total, muitos fanáticos deixaram o país para jogar o seu estilo em outro lugar – foi o caso de Gianfranco Zola, Benito Carbone, Paolo Di Canio. Recentemente, o relativo declínio financeiro da Série A aumentou a importância de jogadores de nacionalidades menos presentes até o momento, como os poloneses. O racismo das arquibancadas era mais ou menos ausente no final dos anos 1980 e no início dos anos 90, mas tornou-se frequente quando o racismo político decolou a partir da metade de 1990. As autoridades não tiveram a capacidade de detê-lo nos estádios, em parte devido ao poder dos Ultras, em parte pela falta de vontade política, por uma incompreensão do que seja racismo e por fim pela completa ausência de representatividade das comunidades de migrantes no interior das estruturas do futebol e de instituições sociais em geral. Mario Balotelli é a representação emblemática de tudo isso. Nascido e crescido na Itália (e durante grande parte da sua vida com pais adotivos italianos) ele foi o primeiro italiano negro que tornou-se uma estrela de fama internacional. Foi também o jogador mais insultado da história italiana, vítima de racismo quotidiano. A gravidade do problema foi negada; chegaram a dizer que não era racismo. Aqueles que ocupam lugares de poder e liderança dentro da sociedade italiana não tem nenhuma noção do que é racismo e de como combatê-lo. Enquanto isso, a Liga de Salvini estimula a divulgação de propagandas anti-imigração nas redes sociais. A recente campanha “Antirracismo” criada pela Série A, que utilizava macacos como ilustração (!) é apenas um exemplo dessa situação, talvez o mais grotesco.
Outro aspecto da relação entre política e futebol é aquele de ordem pública. Ainda que sejam descritos em tom sensacionalista, desde o começo o futebol italiano teve episódios de violência. Como citado em seu livro, os primeiros registros são de 1905; houve um pequeno aumento com a Grande Guerra. A primeira ligação do futebol com a política ocorreu em pleno Biênio Vermelho, com as “jornadas vermelhas” de Viareggio. O autoritarismo fascista sancionou a ligação entre futebol e repressão depois da crise ligada ao assassinato de Giacomo Matteotti; a final do campeonato italiano ocorreu em Bolonha, em 1925, com um jogo muito contestado e disputado a portas-fechadas, após diversos confrontos e tiroteios. Em 1926, é decretado outro arrocho das liberdades políticas, devido ao atentado fracassado contra Mussolini por parte de Anteo Zamboni, sempre em Bolonha, durante a inauguração do Estádio Littoriale no dia do aniversário da Marcha de Roma. Antonio Gramsci foi preso poucos dias depois. Hoje temos o Daspo Urbano e o Decreto de Segurança; as políticas experimentadas nos estádios são estendidas para o conflito social. Podemos dizer que o problema não são os estádios, mas sim as práticas repressivas de gestão da ordem pública de um Estado decisivamente pouco liberal?
Os estádios italianos são uma espécie de prisão, lugares dominados por lógicas de supervisão e custódia, onde torcedores são vistos como perigosos e por isso devem ser trancafiados. O Estado entende o futebol como uma questão de segurança pública. O outro lado da moeda são os Ultras – que no passado foram uma espécie de movimento social, mas hoje são, na maior parte da Itália, um grupo criminoso e violento de extrema-direita. Os ultras se alimentam da ligação entre o estádio-prisão e as sociedades futebolísticas; vendem bilhetes ilegalmente, drogas e ameaçam as próprias sociedades. Obviamente existem exceções, como o caso do trabalho de Tobias Jones com os ultras de Cosenza; mas ainda assim, o modelo Ultras é autoritário, hierárquico e nada inclusivo. O que devemos fazer? Difícil dizer. Ninguém possui a resposta e as detenções contínuas de torcedores não parecem surtir efeitos. A organização Ultras sobrevive graças ao mundo altamente controlado do “futebol moderno”. Pode parecer um anacronismo, mas é um modelo que inspira muitos outros torcedores de outros países, como demonstra David Goldblatt no seu livro “A era do futebol” (“The Age of Football”). O Estado italiano continua a administrar o sistema futebolístico de forma desastrosa, tentando gerir um longo declínio desde as vitórias dos anos noventa. O sucesso da Seleção feminina italiana na última Copa do Mundo nos dá esperanças de que o futebol feminino irá conquistar os recursos e o reconhecimento que merece – e que meninas sejam encorajadas a jogar futebol no nível mirim (como está ocorrendo com incrível velocidade no Reino Unido). Mas devo dizer que, pessoalmente, não tenho muita esperança. A renovação que parecia possível nos tempos do Calciopoli foi sufocada.
No momento em que Arcelor Mittal iniciou um traumático braço-de-ferro contra o governo italiano para decidir o futuro do ex Ilva de Taranto, o Daily Mail reportou o interesse da família Al-Thani pelo Napoli. Em poucos anos o Inter tornou-se tailandês e depois chinês; enquanto isso, Milan, Roma, Bologna e Fiorentina passaram pelas mãos de norte-americanos. A Juve, legalmente holandesa desde 2016, corre o risco de ver sua histórica ligação com a Fiat cortada, devido a suposta aquisição da gigante automobilística pela Psa francesa. Essa tendência segue o modelo inglês, de campeonatos cada vez mais internacionalizados, projetados para uma Superliga Europeia, com a Série B tornando-se cada vez mais o “campeonato dos italianos”. O que pode nos dizer sobre o declínio econômico da Itália e o seu papel na economia global?
O futebol italiano tinha a possibilidade de dominar o mundo quando a economia italiana era forte nos anos sessenta, quando Milão era um foco do futebol global, e nos anos oitenta, com a ilusão de um segundo boom e a chegada de um pioneiro (em termos políticos, econômicos, culturais e esportivos) como Silvio Berlusconi. O Mundial de 1990 parecia apresentar uma nova era de estilo esportivo “Made in Italy”, com a fusão perfeita entre design, arquitetura, música e tradição. Mas era uma falsa largada: as bases da economia eram frágeis, assim como aquelas do sistema futebolístico. Dúzias de clubes foram à falência porque suas contas eram maquiadas. A chegada de proprietários estrangeiros não culminou no retorno do status global, parecido com aquele dos anos oitenta e noventa. Apesar disso, a “Velha Senhora” (nome dado à Juventus pelos torcedores), ainda nas mãos da família Agnelli (industriais), conseguiu manter o seu domínio, vencendo campeonato após campeonato e atraindo para território italiano craques internacionais (incluindo Cristiano Ronaldo). O futebol italiano, assim como a Itália, ainda possui centros de excelência (como os sistemas de treino ou os grandes técnicos, por exemplo) mas está vivendo uma crise profunda e complexa. Uma “crise” tão longa que a própria palavra começa a perder o seu significado.
Sobre o mapa que abre o seu livro: a Série A hoje representa um país marcado pela crise, estagnação e desigualdade – entre classes, territórios, gerações. O Sul sumiu, com times na Série C; as grandes cidades resistem, junto com o que sobra do Norte produtivo. Enquanto todo o futebol se financeiriza, a Juve tenta aproveitar suas isenções fiscais para manter Cristiano Ronaldo. O Milan, time com mais títulos da Europa, está enrolado em uma crise sem fim; sobre ele, avançam os capitais chineses, assim como avançam sobre o Atalanta, obrigado a adotar preços baixos para se vender. Os grandes times do centro-sul também são obrigados a aderir ao trading, como o caso do Roma, à deflação salarial, como o Napoli e até mesmo à repressão de greves. Contudo, parece que o retorno de grandes treinadores e craques, junto com o “Renascimento” da Seleção, clamam por uma mudança de tendência. Essa promessa de mudança é real? O que podemos esperar da Série A italiana?
A Série A continua sendo um campeonato incrível para se assistir. Ainda possui aquela combinação de táticas sofisticadas, defesa de alta qualidade e estádios (apesar de decrépitos) fascinantes. Os estereótipos de Catenaccio são ridículos, utilizados apenas por quem não assiste de verdade o futebol italiano. Mas é, de fato, difícil de assistir fora da Itália: os direitos televisivos foram administrados muito mal. Isso resultou na marginalização da Série A. Claro, é necessário que outros também vençam – um campeonato em que vence apenas a Juventus não é saudável, nem mesmo para a própria Juventus! O Atalanta fornece certa esperança e o Inter finalmente voltou a ser competitivo. Roma e Napoli parecem ter iniciado um longo declínio, e não há sinal do retorno da glória do Milan como nos tempos de Berlusconi. Quanto a Itália, o futuro não parece bom. O sistema político do país simplesmente não funciona mais; a extrema-direita é ágil, tem a confiança das pessoas e está pronta para tomar o poder e usá-lo para gerar mais raiva e conduzir uma campanha eleitoral permanente contra os imigrantes e os “bondosos” [é um termo popular que se tornou político na Itália hoje, após ser usado incansavelmente pela extrema-direita]. Como se não bastasse, a Itália não produziu um campeão de nível mundial após a aposentadoria de Andrea Pirlo. Com certeza existem ótimos jogadores que estão se formando, mas nenhum deles parece ser como foram aqueles da geração anterior. A “fuga dos cérebros” continua forte até mesmo no mundo do futebol. O futuro ainda deve ser escrito, mas, infelizmente, a continuação do declínio parece inevitável.
Sobre o entrevistado
John Foot é professor de história italiana moderna na Universidade de Bristol. Seus trabalhos incluem "The Man Who Closed the Asylums: Franco Basaglia and the Revolution in Mental Health Care" e "The Archipelago: Italy Since 1945".
Sobre os entrevistadores
Sobre os entrevistadores
Giacomo Gabbuti é estudante de doutorado na Universidade de Oxford e membro do conselho editorial da Jacobin Itália.
Francesco Santimone é ativista do ARCI Sparwasser e do sindicato FLC-CGIL.
Francesco Santimone é ativista do ARCI Sparwasser e do sindicato FLC-CGIL.
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