Você quer ver Donald Trump derrotado em 2020? Claro que você quer. O candidato que está melhor posicionado para fazer exatamente isso: Bernie Sanders.
Meagan Day e Matt Karp
David McNew / Getty Images |
Tradução / Na corrida pela nomeação do partido Democrata, uma figura se destaca: a grande, laranja e deformada imagem do presidente Donald Trump. O trauma da vitória chocante de Trump em novembro de 2016, e o reino de ganância, brutalidade e arrogância que se seguiu – aparentemente impermeável à oposição organizada – tem dado a Trump uma proeminência especial entre os democratas.
As pesquisas são unânimes: uma maioria considerável dos eleitores nas primárias dos democratas (entre 60% e 65%) dizem que é mais importante encontrar um candidato que possa vencer Trump do que um que eles concordem com as pautas. Isso não é um padrão para eleitores que fazem oposição a um presidente em exercício. Na prévia da sua campanha de reeleição em 2004, por exemplo, menos da metade de todos os democratas diziam o mesmo sobre George W. Bush.
Ao longo das primárias, Bernie Sanders e muitos de seus apoiadores têm argumentado que não é suficiente vencer Trump: precisamos nos organizar para transformar as condições econômicas abismais que produziram Trump também. E isso é extremamente verdadeiro.
Mas, enquanto isso, existem eleições para vencer. Os EUA não podem suportar outra vitória de Trump nas urnas, ou outros quatros anos da avareza de um governo de extrema-direita. Para prevenir este pesadelo, nós devemos convencer eleitores ansiosos que Sanders pode e irá derrotar Trump na eleição geral.
A verdade é que os democratas gostam genuinamente de Bernie: ele tem as maiores taxas de popularidade nas primárias, e entre os eleitores democratas que priorizam “pautas” Sanders lidera o conjunto – isto é, o que um presidente pode de fato tentar fazer no cargo. No entanto, o establishment hostil do partido e uma mídia nada amigável parecem ter convencido muitos dos eleitores que Sanders é “muito radical” ou “muito à esquerda” para vencer uma eleição geral.
E enquanto Sanders ganha fôlego nas primárias nos Estados, você pode esperar que os consultores de Beltway e âncoras de TV vão pegar ainda mais pesado nesses alertas. Muito do trabalho é feito por analogia, com Sanders associado a George McGovern, Jeremy Corbyn, ou qualquer personagem histórico distante ou líder estrangeiro longínquo que pareça conveniente.
Claro, nós não precisamos atravessar oceanos ou gerações para encontrar contra exemplos: essa é a mesma hegemonia do partido Democrata que engendrou a mais desastrosa e humilhante derrota eleitoral na história norte-americana, quatro anos atrás. Entretanto, você dificilmente pode culpar os experts centristas do partido ou filiados por escolher esta linha de ataque. Eles não entendem que sua marca política desbotada não fala com as necessidades, desejos ou esperanças dos eleitores. A única coisa que os restou foi o medo. E a perspectiva de outra vitória de Donald Trump pode ser assustadora o suficiente para convencer milhares de eleitores a engolir qualquer pílula amarga que a liderança do partido os sirva.
Contudo, na temporada das primárias, democratas ansiosos deveriam acreditar em seus instintos. Acontece que o candidato que eles mais gostam, Bernie Sanders, é também o candidato com a melhor chance de varrer Trump da Casa Branca.
Ao passo que qualquer outro confronto nas eleições gerais pareça desembocar no sombrio e confuso embate de 2016, uma disputa entre Sanders e Trump apresentaria aos eleitores norte-americanos uma escolha sólida: um populista que quer te garantir plano de saúde e quitar suas dívidas, ou um idiota rico que não se importa se você vive ou morre contanto que seu chefe tenha lucros.
A verdadeira fraqueza eleitoral de Trump não é sua grosseria, sua mitomania, ou mesmo seu caráter corrompido. É a sua função como instrumento dos homens ricos do partido Republicano e seu flagrante desinteresse em tornar a vida melhor para a grande parte dos americanos que vivem apenas de salário em salário.
Ao longo dos últimos 40 anos, nenhum político nos EUA focou tão francamente ou incansavelmente nas dificuldades econômicas enfrentadas por pessoas comuns como Bernie Sanders. Essa ênfase arroz-com-feijão é parte daquilo que faz Sanders o candidato presidencial mais popular nas pesquisas, especialmente entre eleitores independentes. E em uma eleição geral – em uma escala muito mais ampla do que qualquer disputa nas primárias – ninguém está melhor preparado do que ele para usar essa arma econômica popular para aniquilar Donald Trump.
De Obama a Trump e Sanders
Para democratas ainda marcados pela memória de novembro de 2016, é fácil imaginar que Donald Trump seja um titã eleitoral, dotado de poderes ocultos e incríveis. Mas a verdade está mais próxima do oposto: Trump é um líder historicamente impopular que teve uma vitória apertada no colégio eleitoral concorrendo com um rival igualmente impopular.
Fora um núcleo de republicanos ferrenhos, a maioria dos norte-americanos não gosta de Trump. Desde os seus primeiros meses no gabinete, a taxa de aprovação dele pairou entre 38% e 42%, que o tornam, de longe, o presidente dos EUA mais impopular da história moderna. George H.W. Bush e Jimmy Carter, os últimos dois titulares a perder uma eleição, apresentavam números bem melhores do que Trump em seus primeiros três anos na Casa Branca.
Mesmo nos principais Estados onde ele derrotou Hillary Clinton – Wisconsin, Michigan, e Pensilvânia – a taxa de aprovação de Trump tem sido subaquático há mais de um ano.
Trump pode ser vencido e o caminho para realizar isso envolve conquistar três grupos de eleitores no campo de batalha do Cinturão da Ferrugem: primeiro, os democratas e independentes que apoiaram Obama duas vezes antes de voltarem-se para Trump; segundo, eleitores de Obama que não votaram em 2016; e terceiro, o grupo ainda maior de norte-americanos que tipicamente não vota de jeito nenhum.
Existem razões para acreditar que em termos puramente pragmáticos no terreno eleitoral, Sanders é o democrata com mais chances de reconquistar os apoiadores decepcionados de Obama no Cinturão da Ferrugem. Pesquisas direcionadas a eleitores de Obama-Trump mostram Sanders e Joe Biden com uma margem significante sobre Elizabeth Warren em Michigan e Wisconsin; mesmo que Biden ainda pareça mais forte na Pensilvânia, as diferenças são pequenas.
Entretanto, o verdadeiro salto está nos 206 distritos que elegeram Obama em 2008 e 2012, e Trump em 2016, onde Sanders tem superado as arrecadações de todos os seus competidores – por uma margem alta. Por volta de setembro de 2019, ele saltou de 81.841 doadores individuais para 33.185 doadores nesses mesmos distritos oscilantes. Isso é aproximadamente três vezes mais do que Biden, Warren ou Pete Buttigieg.
Esse alto volume de pequenas doações individuais em distritos Obama-Trump mostram que Sanders tem suporte das bases nesses lugares – o que faz sentido, visto que sua mensagem política é dirigida para pessoas cujas vidas tem se tornado pior na medida em que as elites enriquecem. Isso captura a experiência de muitas pessoas da classe trabalhadora no Cinturão da Ferrugem desindustrializado, abandonado por corporações que buscam mão de obra barata e lucros maiores em outros lugares.
O mais detalhado estudo sobre essa oscilação eleitoral decisiva foi realizado por dois cientistas políticos de John Hopkins que confirmaram recentemente o que outros analistas já haviam entendido faz um tempo: a “ansiedade econômica” teve, de fato, um papel crucial nas eleições de 2016. Um olhar mais atento aos dados da Pesquisa Eleitoral Americana Nacional mostrou que eleitores Obama-Trump, em 2016, estavam, em média, mais preocupados sobre sua “atual situação financeira” do que os eleitores Romney-Trump ou Obama-Clinton.
Eleitores Obama-Trump também acreditavam que “os ricos estão comprando as eleições” e apoiavam taxação de grandes fortunas. E eles eram muito mais dispostos a se opor a acordos de livre comércio que custam que caiam sobre o lombo dos trabalhadores norte-americanos.
Trump cortejou e conquistou esses eleitores de Obama, concluem os autores de John Hopkins, com uma combinação de “trem da alegria do fanatismo” com “populismo econômico”. Em 2020, os republicanos com certeza tentarão reativar a máquina de fanatismo novamente. Se os democratas não responderem com uma agenda econômica alternativa confiável – uma que implique mudança real – eles estão condenados a perder esses eleitores mais uma vez – e, consequentemente, provavelmente a eleição.
Apesar de sua popularidade residual entre os democratas que vem da época do Obama (atualmente em declínio), Joe Biden não consegue entregar essa mensagem.
Ele faz forte oposição à taxação dos ultra ricos; não é coincidência que ele tem mais doadores bilionários do que qualquer outro candidato na disputa, inclusive Trump. O pior de tudo é que Biden não tem credibilidade como um economista populista: ele dedicou muito se sua vida política apoiando o livre comércio, incluindo NAFTA e o Acordo Trans-Pacífico.
Em uma eleição geral, o histórico de longa data de Biden como amigo de bancos e empresas de terceirização – para não mencionar os serviços lucrativos de seu filho a bordo de uma companhia de gás ucraniana – irá certamente sufocar qualquer tentativa dos democratas de lutar contra Trump no terreno econômico. Ao invés disso, uma disputa Biden-Trump tem todas as chances de oferecer uma sequência do espetáculo insólito ao enigma de 2016 que pôs Trump na Casa Branca. Dos dois candidatos que apresentam oscilações nas pesquisas dos Estados no Cinturão da Ferrugem, apenas Bernie Sanders pode realizar o debate econômico que os democratas precisam fazer para vencer.
Voltar às urnas por Bernie
Tão importante quanto os eleitores Obama-Trump são os milhões de eleitores de Obama que não compareceram às urnas em 2016. Qualquer boa autópsia das últimas eleições presidenciais enfatizará que o comparecimento dos votantes nos principais Estados foi uma decepção. Em Wiscosin, por exemplo, foram votar menos de 3% dos previstos para 2016, e em Ohio foram menos que 4%. Para vencer, essas margens precisam ser recuperadas ou excedidas pelos oponentes de Trump nestas eleições.
Alguns analistas são velozes em atribuir a pequena presença nas urnas em 2016 às leis restritivas de votação, insinuando que nada pode ser feito para trazer eleitores de volta às urnas. Mas então como explicar o fato de que 1,7 milhões de pessoas depositaram cédulas incompletas nesses e outros Estados, recusando votar por qualquer candidato presidencial – muito mais do que em 2012? Em Michigan, Donald Trump venceu com cerca de 10 mil votos, enquanto 75 mil pessoas votaram, mas decidiram não registrar preferência para presidente. Enquanto isso, aproximadamente 3 milhões de eleitores válidos sequer se importaram em ir aos colégios eleitorais.
O Pew Research Center descobriu que, mundialmente, a maior razão para a abstenção dos votos em 2016 foi que eles “não gostaram dos candidatos e suas campanhas”. Mais de 25% dos ausentes citaram aversão a ambos os candidatos como justificativa para ficar em casa, comparado com apenas 13% em 2012 e 8% em 2000. A verdade é que muitas pessoas nos Estados oscilantes – incluindo muitos eleitores democratas fieis – não estavam suficientemente animados com Hillary Clinton, alguém que eles associavam corretamente à política-como-negócio. E a “ansiedade econômica” que ajudou a levar eleitores brancos de Obama à Trump, como o relatório de Malaika Jabali demostra, ajudou a dissuadir muitos eleitores negros de Obama de comparecerem às urnas, especialmente em campos de batalha como as cidades de Milwaukee, Detroit e Philadelphia.
Os eleitores de Obama que ficaram em casa em 2016, uma pesquisa mostrou, são extremamente preocupados com questões de sobrevivência (café-com-pão), com uma larga fatia (64%) enfatizando economia, plano de saúde, Medicare, e segurança social do que os eleitores registrados como um todo (55%) ou mesmo os sabidamente eleitores indecisos Obama-Trump (58%).
Se você acha que isso sugere que esses eleitores críticos podem ser receptivos às mensagens de Bernie Sanders sobre planos de saúde, educação e bom trabalho para todos, você está certo: a preferência de Bernie entre esse grupo (+38%) supera em muito a de Elizabeth Warren (+16%) e excede a de Joe Biden (+35%).
Acordando o gigante adormecido
Contudo, o argumento mais robusto para defender Bernie Sanders diz respeito a um grupo muito maior do que qualquer fatia de eleitores decepcionados de Obama: os 10 milhões de pessoas, cerca de 40% do país, que geralmente não vota nas eleições presidenciais.
Os não votantes, incluindo os ausentes em Estados centrais, são desproporcionalmente jovens, não-brancos e da classe trabalhadora. Bernie é distintamente popular entre todos esses grupos, sugerindo que ele é de longe a melhor chance de mobilizar esse vasto exército adormecido em uma eleição geral contra Trump.
Nas primárias de 2016, mais pessoas abaixo dos 30 votaram em Sanders do que em Trump e Clinton juntos. Hoje, Sanders é o favorito nas primárias do partido Democrata entre os jovens. A taxa de aprovação de Trump entre pessoas abaixo de 30 é patética, mas, conforme aprendemos quatro anos atrás, isso não é garantia que todo jovem que menospreza Trump irá aparecer para votar contra ele.
Os democratas têm uma escolha: ou eles nomeiam um desafiante que energiza pessoas jovens e pode contar com seu apoio em massa, ou nomeia alguém que não os motiva, lubrificando as engrenagens para a vitória de Trump.
Eleitores latinos e jovens negros estão especialmente entusiasmados com Bernie. Nos Rstados oscilantes do Cinturão da Ferrugem e no Cinturão do Sol, a margem crucial de vitória pode estar atrelada à habilidade do candidato democrata de trazer eleitores jovens afrodescendentes que tipicamente são menos inclinados a votar. Não há nenhum político nos EUA em melhor posição para fazer isso do que Sanders.
E, finalmente, uma categoria guarda-chuva: Sanders é o candidato da classe trabalhadora, que engloba a maioria dos jovens e não-brancos, mas também muitas das pessoas brancas mais velhas.
Seus apoiadores têm menor probabilidade de possuírem um diploma universitário dentre todos os outros candidatos democratas nas primárias. Nas primárias, Sanders recebe a maior parte das doações individuais de enfermeiros, professores, trabalhadores do varejo, servidores, técnicos, caminhoneiros e trabalhadores da construção civil.
Em contraste, Biden recebe a maior quantia de doações de presidentes de companhia, advogados, grandes proprietários e investidores.
Pessoas que trabalham por um salário mínimo são a maioria da população norte-americana, e trabalhadores com baixos salários compõem a maioria das pessoas que não vota. Quase 3/4 dos ausentes em 2016 tem uma renda familiar de menos de U$ 75.000.
Se quisermos que os eleitores ocasionais – ou os que nunca votam – dos estados oscilantes compareçam, o candidato precisa ser bem quisto pela classe-trabalhadora. E esse candidato é Bernie Sanders.
Sanders tem vencido Trump em enquetes de confronto direto por anos, e sua liderança é especialmente forte entre eleitores de baixa renda e frequência eleitoral. Uma pesquisa recente do SurveyUSA mostrou que em uma disputa contra Trump, Bernie possui alguns pontos a mais do que Biden (e muitos mais do que Warren) entre eleitores que ganham menos de $80.000 por ano, e entre eleitores que descrevem a si mesmos como “pobres” ou “da classe trabalhadora”. E essas são apenas as pessoas que já são registradas. Dos candidatos democratas mais importantes, Sanders claramente tem a maior chance de acordar o gigante adormecido da juventude e da classe trabalhadora que não vota e de trazê-los para o eleitorado.
Os EUA possuem uma das menores presenças nas urnas do mundo. Dada a alienação política da classe trabalhadora aqui, nenhuma eleição isolada vai nos pôr a par com nações como Bélgica ou Suécia, onde mais de 80% da população em idade votante comparece às urnas, comparado como nossa insignificante 55% de presença nas eleições presidenciais de 2016. Mas é precisamente porque a proporção de ausentes é tão grande nos EUA, que mesmo uma subida tímida no comparecimento de pessoas que geralmente não votam poderia ser um fator decisivo em 2020.
Bernie Sanders pode incitar pessoas que normalmente não votam a saírem de suas tocas. Algo que ninguém poderá fazer.
Política de classe em alta escala
Nosso entusiasmo com um possível ringue Sanders vs. Trump não se resume à previsão vitoriosa do candidato socialista. A possível derrota Trump tem enormes implicações para o futuro da política norte-americana.
Primeiro, devemos lembrar de uma simples questão de proporção, fácil de esquecer se você acompanha a política como uma vocação ou obsessão: eleições gerais são muito, muito mais amplas do que as primárias.
Cerca de 31 milhões de pessoas votaram nas primárias dos democratas em 2016, uma das disputas mais acirradas na história dos EUA. Mais de 136 milhões de pessoas votaram nas eleições gerais. A mesma variação se aplica aos gastos eleitorais: juntos, Hillary Clinton e Bernie Sanders gastaram em torno de U$ 445 milhões nas primárias. Nas eleições gerais, Clinton e Trump gastaram cerca de U$ 1.8 bilhões.
Utilizando as primárias de 2016 como plataforma, Sanders foi capaz de demonstrar que ideias “radicais” de esquerda como Medicare For All [Sistema de Saúde Para Todos], universidades gratuitas e um salário mínimo de U$ 15/h teve uma enorme base de apoio, mais do que qualquer nicho de autodeclarados progressistas. Essa revelação já deixou uma marca profunda no partido Democrata – que absorveu muito do programa de Sanders, de fato ou retoricamente – e provavelmente vai moldar a política norte-americana nos próximos anos.
Uma campanha para as eleições de gerais de Sanders apresentaria uma oportunidade da mesma natureza, mas em uma escala quatro vezes maior, no mínimo.
Grande parte dos norte-americanos, que não são atentos à política primária, de repente passariam a considerar os elementos básicos da política de Sanders pela primeira vez: o retrato cru que ele traça na guerra entre o 1% e os 99%; sua devoção à entrega de planos de saúde de qualidade, educação e emprego a todos os cidadãos ao custo dos lucros corporativos, bônus de CEOs e retorno de acionistas.
Esse tipo de política de classe – e de plataforma social democrata simples – estava ausente do partido Democrata por mais de meio século, e silenciada na mídia televisiva e impressa por quase o mesmo período. Mas se Sanders for o nomeado pelo partido, esses argumentos serão apresentados para o público em uma larga escala.
O que acontece quando um candidato fala não apenas para viciados em política, mas para 136 milhões de eleitores – ou 200 milhões de eleitores em potencial – e a mensagem é um novo tipo de “sim, nós podemos”: não um “sim, podemos eleger um candidato novo inspirador para o cargo”, mas “sim, podemos garantir dignidades fundamentais para cada cidadão”, e “sim, podemos fazer isso destruindo o estrangulamento tirânico da classe bilionária”?
Bernie vs. os milionários
Talvez a característica mais promissora desse cenário, contudo, seja o contraste binária entre Sanders e Trump. (Sim, outros candidatos podem concorrer, mas a estrutura bipartidária do nosso Estado, e a atual profundidade da polarização partidária, os dirija rapidamente à insignificância).
Por causa dessa ênfase política no conflito de classe, uma disputa Trump-Sanders promete nãos ser apena um choque de valores, mas um referendum sobre o papel dos ricos e do resto da sociedade, com cada candidato representando lados diferentes nessa divisão.
Sanders já nos deu uma prévia do que pode acontecer. Quando lançou sua campanha em março, ele contrastou sua formação com a de Trump, dizendo, “eu não tive um pai que me deu milhões de dólares para construir arranha-céus luxuosos, casinos e clubes privados. Eu não venho de uma família que me deu U$ 200,00 de mesada todo ano desde que tinha 3 anos de idade”.
Ele continuou, “ao contrário de Trump, que paralisou o governo e deixou 800 mil funcionários federais sem pagamento para quitar suas dívidas, eu sei o que é viver em uma família que vive de salário em salário”.
Em um floreio retórico que ressalta as implicações sociais da especulação de Trump, Sanders acrescentou, “eu não venho de uma família que me ensino a construir um império corporativo a partir da especulação imobiliária. Eu protestei contra a especulação imobiliária, fui preso por protestar contra a segregação escolar”.
Com Trump, os democratas têm nas mãos uma oportunidade de ouro para incendiar uma agitação contra os ultra ricos, personificados pelos bilionários que conseguiram pavimentar um caminho direto para dentro da Casa Branca. Mas eles vacilam repetidamente, concentrando-se nas papagaiadas de Trump.
As recentes audiências do impeachment – focadas estritamente nas armações de Trump na Ucrânia, ao invés de seus esforços obscenos em se enriquecer e proteger sua classe – exemplificam os limites dessa estratégia. A ênfase política dos democratas falha no mirar o ponto fraco de Trump: a forma que sua administração tem funcionado, como toda outra administração republicana, como uma máquina para transferir riquezas dos trabalhadores para os patrões.
Na campanha de 2016, Clinton deixou de lado as questões materiais e escolheu travar uma guerra no tabuleiro do Trump. Desde então, a hegemonia democrata e seus aliados midiáticos tem colocado temperamento, caráter e estabilidade no centro de sua estratégia de oposição. Se você limitar seu olhar ao MSNBC, você tem a impressão de que os maiores problemas com a ameaça laranja é que ele é um convidado excepcionalmente desagradável para o jantar, ao invés de um plutocrata em um país controlado por plutocratas.
Líderes hegemônicos e especialistas tem se habituado a alfinetar Trump por ser menos rico que ele diz ser, implicando que ele é um mal empreendedor. Eles se comprazem chamando-o de perdedor, quando a carreira de Trump é, de fato, uma imagem vitoriosa em um sistema feito para concentrar riqueza no topo e transformá-la, alquimicamente, em poder político.
Trump é o símbolo perfeito da perversidade em nossa economia capitalista falida, seu mandato é a coisa grotesca e mais bem-acabada produzida por uma ordem política asquerosa. E ninguém pode deixar isso mais explícito do que Bernie Sanders.
Enquanto Bidden nostalgicamente brada pelas normas abandonadas, e Warren celebra a sacralidade das normas, Sanders deixa o rei nu. Sua independência dos financiadores torna possível que ele faça o que Clinton não fez e que Biden não fará: emparedar a presidência de Trump entre as corporações bipartidária pró-establishment.
Essa estratégia tem potencial não apenas para uma vitória a curto prazo, mas para longo, com uma dose saudável de antagonismo de classe para o discurso político. E isso é justamente o que precisamos para construir uma luta real contra o sistema econômico e político que produziu Trump.
É hora da briga
Você não saberia isso através dos analistas nos principais veículos de comunicação, mas Sanders tem pegado relativamente leve com seus oponentes nas primárias. Isso porque as regras das primárias são diferentes das eleições gerais. Candidatos das primárias correm o risco de alienar os seus possíveis apoiadores com críticas pesadas sobre seus oponentes de uma forma que candidatos de eleições gerais tipicamente não encaram.
Em uma eleição geral, nós esperamos que Sanders se comporte um pouco mais como ele fez durante sua primeira corrida eleitoral ao Senado contra o republicano mega milionário Rich Tarrant.
Em 2006, Vermont seguia claramente uma tendência democrata, mas seis anos depois, o senador republicano Jim Jeffords se reelegeu por 40 pontos de diferença. Sentindo a oportunidade, Tarrand injetou milhões de seu próprio dinheiro na disputa, tentando etiquetar Sanders – que ainda era uma curiosidade socialista no palco nacional – como um radical fora de alcance de Burlington.
Mas Bernie também cerrou os punhos contra “Richie Rich”, ativando sua base de pequenos doadores e criticando os esforços do seu oponente de comprar as eleições como um sintoma de aparelhamento econômico. Na campanha ao Senado mais cara da história de Vermont, Sanders venceu por 33 pontos de vantagem.
Se Sanders trouxer esse tipo de energia irrestrita para uma eleição geral contra Donald Trump, seria o equivalente ao maior espetáculo de alto nível sobre o conflito de classe na história moderna das eleições políticas.
A campanha se escreveu praticamente sozinho na história. Na Nova York de 1940, dois garotos nasceram apenas alguns anos e quilômetros afastados.
Um, o filho de um magnata imobiliário, cresceu em uma mansão de pilares brancos, e traçou sua rota no banco de trás da limusine de seu pai.
O outro, filho de um imigrante sem um tostão no bolso cuja família foi morta no Holocausto, cresceu em um apartamento apertado no Brooklyn, dormindo em uma cama barulhenta na sala de estar.
Um, educado pelas melhores escolas privadas que o dinheiro pode pagar, devotou sua vida a perseguir lucro e poder, abusando de inquilinos, enganando trabalhadores e ostentando sua riqueza nos círculos da alta sociedade novaiorquina.
O outro passou a vida trabalhando nas trincheiras em prol da grande maioria – protestando contra a segregação em Chicago, protegendo os inquilinos pobres de Burlington, lutando por trabalhadores em Washington e tendo como alvo a elite mimada que controla a economia de suas coberturas.
Essa é uma dinâmica que nunca vimos antes em uma eleição presidencial. Raramente vimos algo parecido com isso na história dos EUA, de tão submersa que a política de classe esteve, abaixo do consenso bipartidário pro-corporações e suas falácias sobre meritocracia e as delicias do livre mercado capitalista.
O bilionário egoísta contra o militante da classe trabalhadora: seria potente, sonora e emblemático, de uma profunda cisão econômica que as pessoas entendem intuitivamente, mas não possuem linguagem para ela ainda. Seria o tipo de rivalidade simbólica na qual você imagina as pessoas tomando um lado pela primeira vez em suas vidas.
Quando as pessoas dizem que Sanders é um risco, elas geralmente querem dizer que sua campanha e sua retórica estão muito fora do conforto do mainstream político dos democratas. Entretanto, essa conjuntura na história coloca o conforto versus o risco. A direita tem tido vantagem em usar o apetite do público por transformação para enriquecer os bilionários. Seus oponentes terão que usar o mesmo apetite para fazer exatamente o oposto.
A ambiciosa agenda de Sanders representa uma dramática ruptura do consenso neoliberal entre os democratas e isso é exatamente o que precisamos para triunfar. Se queremos vencer Trump e construir uma força de compensação capaz de se apropriar do sistema e das instituições que o produziram, não podemos pagar o preço de não nomear Bernie Sanders.
As pesquisas são unânimes: uma maioria considerável dos eleitores nas primárias dos democratas (entre 60% e 65%) dizem que é mais importante encontrar um candidato que possa vencer Trump do que um que eles concordem com as pautas. Isso não é um padrão para eleitores que fazem oposição a um presidente em exercício. Na prévia da sua campanha de reeleição em 2004, por exemplo, menos da metade de todos os democratas diziam o mesmo sobre George W. Bush.
Ao longo das primárias, Bernie Sanders e muitos de seus apoiadores têm argumentado que não é suficiente vencer Trump: precisamos nos organizar para transformar as condições econômicas abismais que produziram Trump também. E isso é extremamente verdadeiro.
Mas, enquanto isso, existem eleições para vencer. Os EUA não podem suportar outra vitória de Trump nas urnas, ou outros quatros anos da avareza de um governo de extrema-direita. Para prevenir este pesadelo, nós devemos convencer eleitores ansiosos que Sanders pode e irá derrotar Trump na eleição geral.
A verdade é que os democratas gostam genuinamente de Bernie: ele tem as maiores taxas de popularidade nas primárias, e entre os eleitores democratas que priorizam “pautas” Sanders lidera o conjunto – isto é, o que um presidente pode de fato tentar fazer no cargo. No entanto, o establishment hostil do partido e uma mídia nada amigável parecem ter convencido muitos dos eleitores que Sanders é “muito radical” ou “muito à esquerda” para vencer uma eleição geral.
E enquanto Sanders ganha fôlego nas primárias nos Estados, você pode esperar que os consultores de Beltway e âncoras de TV vão pegar ainda mais pesado nesses alertas. Muito do trabalho é feito por analogia, com Sanders associado a George McGovern, Jeremy Corbyn, ou qualquer personagem histórico distante ou líder estrangeiro longínquo que pareça conveniente.
Claro, nós não precisamos atravessar oceanos ou gerações para encontrar contra exemplos: essa é a mesma hegemonia do partido Democrata que engendrou a mais desastrosa e humilhante derrota eleitoral na história norte-americana, quatro anos atrás. Entretanto, você dificilmente pode culpar os experts centristas do partido ou filiados por escolher esta linha de ataque. Eles não entendem que sua marca política desbotada não fala com as necessidades, desejos ou esperanças dos eleitores. A única coisa que os restou foi o medo. E a perspectiva de outra vitória de Donald Trump pode ser assustadora o suficiente para convencer milhares de eleitores a engolir qualquer pílula amarga que a liderança do partido os sirva.
Contudo, na temporada das primárias, democratas ansiosos deveriam acreditar em seus instintos. Acontece que o candidato que eles mais gostam, Bernie Sanders, é também o candidato com a melhor chance de varrer Trump da Casa Branca.
Ao passo que qualquer outro confronto nas eleições gerais pareça desembocar no sombrio e confuso embate de 2016, uma disputa entre Sanders e Trump apresentaria aos eleitores norte-americanos uma escolha sólida: um populista que quer te garantir plano de saúde e quitar suas dívidas, ou um idiota rico que não se importa se você vive ou morre contanto que seu chefe tenha lucros.
A verdadeira fraqueza eleitoral de Trump não é sua grosseria, sua mitomania, ou mesmo seu caráter corrompido. É a sua função como instrumento dos homens ricos do partido Republicano e seu flagrante desinteresse em tornar a vida melhor para a grande parte dos americanos que vivem apenas de salário em salário.
Ao longo dos últimos 40 anos, nenhum político nos EUA focou tão francamente ou incansavelmente nas dificuldades econômicas enfrentadas por pessoas comuns como Bernie Sanders. Essa ênfase arroz-com-feijão é parte daquilo que faz Sanders o candidato presidencial mais popular nas pesquisas, especialmente entre eleitores independentes. E em uma eleição geral – em uma escala muito mais ampla do que qualquer disputa nas primárias – ninguém está melhor preparado do que ele para usar essa arma econômica popular para aniquilar Donald Trump.
De Obama a Trump e Sanders
Para democratas ainda marcados pela memória de novembro de 2016, é fácil imaginar que Donald Trump seja um titã eleitoral, dotado de poderes ocultos e incríveis. Mas a verdade está mais próxima do oposto: Trump é um líder historicamente impopular que teve uma vitória apertada no colégio eleitoral concorrendo com um rival igualmente impopular.
Fora um núcleo de republicanos ferrenhos, a maioria dos norte-americanos não gosta de Trump. Desde os seus primeiros meses no gabinete, a taxa de aprovação dele pairou entre 38% e 42%, que o tornam, de longe, o presidente dos EUA mais impopular da história moderna. George H.W. Bush e Jimmy Carter, os últimos dois titulares a perder uma eleição, apresentavam números bem melhores do que Trump em seus primeiros três anos na Casa Branca.
Mesmo nos principais Estados onde ele derrotou Hillary Clinton – Wisconsin, Michigan, e Pensilvânia – a taxa de aprovação de Trump tem sido subaquático há mais de um ano.
Trump pode ser vencido e o caminho para realizar isso envolve conquistar três grupos de eleitores no campo de batalha do Cinturão da Ferrugem: primeiro, os democratas e independentes que apoiaram Obama duas vezes antes de voltarem-se para Trump; segundo, eleitores de Obama que não votaram em 2016; e terceiro, o grupo ainda maior de norte-americanos que tipicamente não vota de jeito nenhum.
Existem razões para acreditar que em termos puramente pragmáticos no terreno eleitoral, Sanders é o democrata com mais chances de reconquistar os apoiadores decepcionados de Obama no Cinturão da Ferrugem. Pesquisas direcionadas a eleitores de Obama-Trump mostram Sanders e Joe Biden com uma margem significante sobre Elizabeth Warren em Michigan e Wisconsin; mesmo que Biden ainda pareça mais forte na Pensilvânia, as diferenças são pequenas.
Entretanto, o verdadeiro salto está nos 206 distritos que elegeram Obama em 2008 e 2012, e Trump em 2016, onde Sanders tem superado as arrecadações de todos os seus competidores – por uma margem alta. Por volta de setembro de 2019, ele saltou de 81.841 doadores individuais para 33.185 doadores nesses mesmos distritos oscilantes. Isso é aproximadamente três vezes mais do que Biden, Warren ou Pete Buttigieg.
Esse alto volume de pequenas doações individuais em distritos Obama-Trump mostram que Sanders tem suporte das bases nesses lugares – o que faz sentido, visto que sua mensagem política é dirigida para pessoas cujas vidas tem se tornado pior na medida em que as elites enriquecem. Isso captura a experiência de muitas pessoas da classe trabalhadora no Cinturão da Ferrugem desindustrializado, abandonado por corporações que buscam mão de obra barata e lucros maiores em outros lugares.
O mais detalhado estudo sobre essa oscilação eleitoral decisiva foi realizado por dois cientistas políticos de John Hopkins que confirmaram recentemente o que outros analistas já haviam entendido faz um tempo: a “ansiedade econômica” teve, de fato, um papel crucial nas eleições de 2016. Um olhar mais atento aos dados da Pesquisa Eleitoral Americana Nacional mostrou que eleitores Obama-Trump, em 2016, estavam, em média, mais preocupados sobre sua “atual situação financeira” do que os eleitores Romney-Trump ou Obama-Clinton.
Eleitores Obama-Trump também acreditavam que “os ricos estão comprando as eleições” e apoiavam taxação de grandes fortunas. E eles eram muito mais dispostos a se opor a acordos de livre comércio que custam que caiam sobre o lombo dos trabalhadores norte-americanos.
Trump cortejou e conquistou esses eleitores de Obama, concluem os autores de John Hopkins, com uma combinação de “trem da alegria do fanatismo” com “populismo econômico”. Em 2020, os republicanos com certeza tentarão reativar a máquina de fanatismo novamente. Se os democratas não responderem com uma agenda econômica alternativa confiável – uma que implique mudança real – eles estão condenados a perder esses eleitores mais uma vez – e, consequentemente, provavelmente a eleição.
Apesar de sua popularidade residual entre os democratas que vem da época do Obama (atualmente em declínio), Joe Biden não consegue entregar essa mensagem.
Ele faz forte oposição à taxação dos ultra ricos; não é coincidência que ele tem mais doadores bilionários do que qualquer outro candidato na disputa, inclusive Trump. O pior de tudo é que Biden não tem credibilidade como um economista populista: ele dedicou muito se sua vida política apoiando o livre comércio, incluindo NAFTA e o Acordo Trans-Pacífico.
Em uma eleição geral, o histórico de longa data de Biden como amigo de bancos e empresas de terceirização – para não mencionar os serviços lucrativos de seu filho a bordo de uma companhia de gás ucraniana – irá certamente sufocar qualquer tentativa dos democratas de lutar contra Trump no terreno econômico. Ao invés disso, uma disputa Biden-Trump tem todas as chances de oferecer uma sequência do espetáculo insólito ao enigma de 2016 que pôs Trump na Casa Branca. Dos dois candidatos que apresentam oscilações nas pesquisas dos Estados no Cinturão da Ferrugem, apenas Bernie Sanders pode realizar o debate econômico que os democratas precisam fazer para vencer.
Voltar às urnas por Bernie
Tão importante quanto os eleitores Obama-Trump são os milhões de eleitores de Obama que não compareceram às urnas em 2016. Qualquer boa autópsia das últimas eleições presidenciais enfatizará que o comparecimento dos votantes nos principais Estados foi uma decepção. Em Wiscosin, por exemplo, foram votar menos de 3% dos previstos para 2016, e em Ohio foram menos que 4%. Para vencer, essas margens precisam ser recuperadas ou excedidas pelos oponentes de Trump nestas eleições.
Alguns analistas são velozes em atribuir a pequena presença nas urnas em 2016 às leis restritivas de votação, insinuando que nada pode ser feito para trazer eleitores de volta às urnas. Mas então como explicar o fato de que 1,7 milhões de pessoas depositaram cédulas incompletas nesses e outros Estados, recusando votar por qualquer candidato presidencial – muito mais do que em 2012? Em Michigan, Donald Trump venceu com cerca de 10 mil votos, enquanto 75 mil pessoas votaram, mas decidiram não registrar preferência para presidente. Enquanto isso, aproximadamente 3 milhões de eleitores válidos sequer se importaram em ir aos colégios eleitorais.
O Pew Research Center descobriu que, mundialmente, a maior razão para a abstenção dos votos em 2016 foi que eles “não gostaram dos candidatos e suas campanhas”. Mais de 25% dos ausentes citaram aversão a ambos os candidatos como justificativa para ficar em casa, comparado com apenas 13% em 2012 e 8% em 2000. A verdade é que muitas pessoas nos Estados oscilantes – incluindo muitos eleitores democratas fieis – não estavam suficientemente animados com Hillary Clinton, alguém que eles associavam corretamente à política-como-negócio. E a “ansiedade econômica” que ajudou a levar eleitores brancos de Obama à Trump, como o relatório de Malaika Jabali demostra, ajudou a dissuadir muitos eleitores negros de Obama de comparecerem às urnas, especialmente em campos de batalha como as cidades de Milwaukee, Detroit e Philadelphia.
Os eleitores de Obama que ficaram em casa em 2016, uma pesquisa mostrou, são extremamente preocupados com questões de sobrevivência (café-com-pão), com uma larga fatia (64%) enfatizando economia, plano de saúde, Medicare, e segurança social do que os eleitores registrados como um todo (55%) ou mesmo os sabidamente eleitores indecisos Obama-Trump (58%).
Se você acha que isso sugere que esses eleitores críticos podem ser receptivos às mensagens de Bernie Sanders sobre planos de saúde, educação e bom trabalho para todos, você está certo: a preferência de Bernie entre esse grupo (+38%) supera em muito a de Elizabeth Warren (+16%) e excede a de Joe Biden (+35%).
Acordando o gigante adormecido
Contudo, o argumento mais robusto para defender Bernie Sanders diz respeito a um grupo muito maior do que qualquer fatia de eleitores decepcionados de Obama: os 10 milhões de pessoas, cerca de 40% do país, que geralmente não vota nas eleições presidenciais.
Os não votantes, incluindo os ausentes em Estados centrais, são desproporcionalmente jovens, não-brancos e da classe trabalhadora. Bernie é distintamente popular entre todos esses grupos, sugerindo que ele é de longe a melhor chance de mobilizar esse vasto exército adormecido em uma eleição geral contra Trump.
Nas primárias de 2016, mais pessoas abaixo dos 30 votaram em Sanders do que em Trump e Clinton juntos. Hoje, Sanders é o favorito nas primárias do partido Democrata entre os jovens. A taxa de aprovação de Trump entre pessoas abaixo de 30 é patética, mas, conforme aprendemos quatro anos atrás, isso não é garantia que todo jovem que menospreza Trump irá aparecer para votar contra ele.
Os democratas têm uma escolha: ou eles nomeiam um desafiante que energiza pessoas jovens e pode contar com seu apoio em massa, ou nomeia alguém que não os motiva, lubrificando as engrenagens para a vitória de Trump.
Eleitores latinos e jovens negros estão especialmente entusiasmados com Bernie. Nos Rstados oscilantes do Cinturão da Ferrugem e no Cinturão do Sol, a margem crucial de vitória pode estar atrelada à habilidade do candidato democrata de trazer eleitores jovens afrodescendentes que tipicamente são menos inclinados a votar. Não há nenhum político nos EUA em melhor posição para fazer isso do que Sanders.
E, finalmente, uma categoria guarda-chuva: Sanders é o candidato da classe trabalhadora, que engloba a maioria dos jovens e não-brancos, mas também muitas das pessoas brancas mais velhas.
Seus apoiadores têm menor probabilidade de possuírem um diploma universitário dentre todos os outros candidatos democratas nas primárias. Nas primárias, Sanders recebe a maior parte das doações individuais de enfermeiros, professores, trabalhadores do varejo, servidores, técnicos, caminhoneiros e trabalhadores da construção civil.
Em contraste, Biden recebe a maior quantia de doações de presidentes de companhia, advogados, grandes proprietários e investidores.
Pessoas que trabalham por um salário mínimo são a maioria da população norte-americana, e trabalhadores com baixos salários compõem a maioria das pessoas que não vota. Quase 3/4 dos ausentes em 2016 tem uma renda familiar de menos de U$ 75.000.
Se quisermos que os eleitores ocasionais – ou os que nunca votam – dos estados oscilantes compareçam, o candidato precisa ser bem quisto pela classe-trabalhadora. E esse candidato é Bernie Sanders.
Sanders tem vencido Trump em enquetes de confronto direto por anos, e sua liderança é especialmente forte entre eleitores de baixa renda e frequência eleitoral. Uma pesquisa recente do SurveyUSA mostrou que em uma disputa contra Trump, Bernie possui alguns pontos a mais do que Biden (e muitos mais do que Warren) entre eleitores que ganham menos de $80.000 por ano, e entre eleitores que descrevem a si mesmos como “pobres” ou “da classe trabalhadora”. E essas são apenas as pessoas que já são registradas. Dos candidatos democratas mais importantes, Sanders claramente tem a maior chance de acordar o gigante adormecido da juventude e da classe trabalhadora que não vota e de trazê-los para o eleitorado.
Os EUA possuem uma das menores presenças nas urnas do mundo. Dada a alienação política da classe trabalhadora aqui, nenhuma eleição isolada vai nos pôr a par com nações como Bélgica ou Suécia, onde mais de 80% da população em idade votante comparece às urnas, comparado como nossa insignificante 55% de presença nas eleições presidenciais de 2016. Mas é precisamente porque a proporção de ausentes é tão grande nos EUA, que mesmo uma subida tímida no comparecimento de pessoas que geralmente não votam poderia ser um fator decisivo em 2020.
Bernie Sanders pode incitar pessoas que normalmente não votam a saírem de suas tocas. Algo que ninguém poderá fazer.
Política de classe em alta escala
Nosso entusiasmo com um possível ringue Sanders vs. Trump não se resume à previsão vitoriosa do candidato socialista. A possível derrota Trump tem enormes implicações para o futuro da política norte-americana.
Primeiro, devemos lembrar de uma simples questão de proporção, fácil de esquecer se você acompanha a política como uma vocação ou obsessão: eleições gerais são muito, muito mais amplas do que as primárias.
Cerca de 31 milhões de pessoas votaram nas primárias dos democratas em 2016, uma das disputas mais acirradas na história dos EUA. Mais de 136 milhões de pessoas votaram nas eleições gerais. A mesma variação se aplica aos gastos eleitorais: juntos, Hillary Clinton e Bernie Sanders gastaram em torno de U$ 445 milhões nas primárias. Nas eleições gerais, Clinton e Trump gastaram cerca de U$ 1.8 bilhões.
Utilizando as primárias de 2016 como plataforma, Sanders foi capaz de demonstrar que ideias “radicais” de esquerda como Medicare For All [Sistema de Saúde Para Todos], universidades gratuitas e um salário mínimo de U$ 15/h teve uma enorme base de apoio, mais do que qualquer nicho de autodeclarados progressistas. Essa revelação já deixou uma marca profunda no partido Democrata – que absorveu muito do programa de Sanders, de fato ou retoricamente – e provavelmente vai moldar a política norte-americana nos próximos anos.
Uma campanha para as eleições de gerais de Sanders apresentaria uma oportunidade da mesma natureza, mas em uma escala quatro vezes maior, no mínimo.
Grande parte dos norte-americanos, que não são atentos à política primária, de repente passariam a considerar os elementos básicos da política de Sanders pela primeira vez: o retrato cru que ele traça na guerra entre o 1% e os 99%; sua devoção à entrega de planos de saúde de qualidade, educação e emprego a todos os cidadãos ao custo dos lucros corporativos, bônus de CEOs e retorno de acionistas.
Esse tipo de política de classe – e de plataforma social democrata simples – estava ausente do partido Democrata por mais de meio século, e silenciada na mídia televisiva e impressa por quase o mesmo período. Mas se Sanders for o nomeado pelo partido, esses argumentos serão apresentados para o público em uma larga escala.
O que acontece quando um candidato fala não apenas para viciados em política, mas para 136 milhões de eleitores – ou 200 milhões de eleitores em potencial – e a mensagem é um novo tipo de “sim, nós podemos”: não um “sim, podemos eleger um candidato novo inspirador para o cargo”, mas “sim, podemos garantir dignidades fundamentais para cada cidadão”, e “sim, podemos fazer isso destruindo o estrangulamento tirânico da classe bilionária”?
Bernie vs. os milionários
Talvez a característica mais promissora desse cenário, contudo, seja o contraste binária entre Sanders e Trump. (Sim, outros candidatos podem concorrer, mas a estrutura bipartidária do nosso Estado, e a atual profundidade da polarização partidária, os dirija rapidamente à insignificância).
Por causa dessa ênfase política no conflito de classe, uma disputa Trump-Sanders promete nãos ser apena um choque de valores, mas um referendum sobre o papel dos ricos e do resto da sociedade, com cada candidato representando lados diferentes nessa divisão.
Sanders já nos deu uma prévia do que pode acontecer. Quando lançou sua campanha em março, ele contrastou sua formação com a de Trump, dizendo, “eu não tive um pai que me deu milhões de dólares para construir arranha-céus luxuosos, casinos e clubes privados. Eu não venho de uma família que me deu U$ 200,00 de mesada todo ano desde que tinha 3 anos de idade”.
Ele continuou, “ao contrário de Trump, que paralisou o governo e deixou 800 mil funcionários federais sem pagamento para quitar suas dívidas, eu sei o que é viver em uma família que vive de salário em salário”.
Em um floreio retórico que ressalta as implicações sociais da especulação de Trump, Sanders acrescentou, “eu não venho de uma família que me ensino a construir um império corporativo a partir da especulação imobiliária. Eu protestei contra a especulação imobiliária, fui preso por protestar contra a segregação escolar”.
Com Trump, os democratas têm nas mãos uma oportunidade de ouro para incendiar uma agitação contra os ultra ricos, personificados pelos bilionários que conseguiram pavimentar um caminho direto para dentro da Casa Branca. Mas eles vacilam repetidamente, concentrando-se nas papagaiadas de Trump.
As recentes audiências do impeachment – focadas estritamente nas armações de Trump na Ucrânia, ao invés de seus esforços obscenos em se enriquecer e proteger sua classe – exemplificam os limites dessa estratégia. A ênfase política dos democratas falha no mirar o ponto fraco de Trump: a forma que sua administração tem funcionado, como toda outra administração republicana, como uma máquina para transferir riquezas dos trabalhadores para os patrões.
Na campanha de 2016, Clinton deixou de lado as questões materiais e escolheu travar uma guerra no tabuleiro do Trump. Desde então, a hegemonia democrata e seus aliados midiáticos tem colocado temperamento, caráter e estabilidade no centro de sua estratégia de oposição. Se você limitar seu olhar ao MSNBC, você tem a impressão de que os maiores problemas com a ameaça laranja é que ele é um convidado excepcionalmente desagradável para o jantar, ao invés de um plutocrata em um país controlado por plutocratas.
Líderes hegemônicos e especialistas tem se habituado a alfinetar Trump por ser menos rico que ele diz ser, implicando que ele é um mal empreendedor. Eles se comprazem chamando-o de perdedor, quando a carreira de Trump é, de fato, uma imagem vitoriosa em um sistema feito para concentrar riqueza no topo e transformá-la, alquimicamente, em poder político.
Trump é o símbolo perfeito da perversidade em nossa economia capitalista falida, seu mandato é a coisa grotesca e mais bem-acabada produzida por uma ordem política asquerosa. E ninguém pode deixar isso mais explícito do que Bernie Sanders.
Enquanto Bidden nostalgicamente brada pelas normas abandonadas, e Warren celebra a sacralidade das normas, Sanders deixa o rei nu. Sua independência dos financiadores torna possível que ele faça o que Clinton não fez e que Biden não fará: emparedar a presidência de Trump entre as corporações bipartidária pró-establishment.
Essa estratégia tem potencial não apenas para uma vitória a curto prazo, mas para longo, com uma dose saudável de antagonismo de classe para o discurso político. E isso é justamente o que precisamos para construir uma luta real contra o sistema econômico e político que produziu Trump.
É hora da briga
Você não saberia isso através dos analistas nos principais veículos de comunicação, mas Sanders tem pegado relativamente leve com seus oponentes nas primárias. Isso porque as regras das primárias são diferentes das eleições gerais. Candidatos das primárias correm o risco de alienar os seus possíveis apoiadores com críticas pesadas sobre seus oponentes de uma forma que candidatos de eleições gerais tipicamente não encaram.
Em uma eleição geral, nós esperamos que Sanders se comporte um pouco mais como ele fez durante sua primeira corrida eleitoral ao Senado contra o republicano mega milionário Rich Tarrant.
Em 2006, Vermont seguia claramente uma tendência democrata, mas seis anos depois, o senador republicano Jim Jeffords se reelegeu por 40 pontos de diferença. Sentindo a oportunidade, Tarrand injetou milhões de seu próprio dinheiro na disputa, tentando etiquetar Sanders – que ainda era uma curiosidade socialista no palco nacional – como um radical fora de alcance de Burlington.
Mas Bernie também cerrou os punhos contra “Richie Rich”, ativando sua base de pequenos doadores e criticando os esforços do seu oponente de comprar as eleições como um sintoma de aparelhamento econômico. Na campanha ao Senado mais cara da história de Vermont, Sanders venceu por 33 pontos de vantagem.
Se Sanders trouxer esse tipo de energia irrestrita para uma eleição geral contra Donald Trump, seria o equivalente ao maior espetáculo de alto nível sobre o conflito de classe na história moderna das eleições políticas.
A campanha se escreveu praticamente sozinho na história. Na Nova York de 1940, dois garotos nasceram apenas alguns anos e quilômetros afastados.
Um, o filho de um magnata imobiliário, cresceu em uma mansão de pilares brancos, e traçou sua rota no banco de trás da limusine de seu pai.
O outro, filho de um imigrante sem um tostão no bolso cuja família foi morta no Holocausto, cresceu em um apartamento apertado no Brooklyn, dormindo em uma cama barulhenta na sala de estar.
Um, educado pelas melhores escolas privadas que o dinheiro pode pagar, devotou sua vida a perseguir lucro e poder, abusando de inquilinos, enganando trabalhadores e ostentando sua riqueza nos círculos da alta sociedade novaiorquina.
O outro passou a vida trabalhando nas trincheiras em prol da grande maioria – protestando contra a segregação em Chicago, protegendo os inquilinos pobres de Burlington, lutando por trabalhadores em Washington e tendo como alvo a elite mimada que controla a economia de suas coberturas.
Essa é uma dinâmica que nunca vimos antes em uma eleição presidencial. Raramente vimos algo parecido com isso na história dos EUA, de tão submersa que a política de classe esteve, abaixo do consenso bipartidário pro-corporações e suas falácias sobre meritocracia e as delicias do livre mercado capitalista.
O bilionário egoísta contra o militante da classe trabalhadora: seria potente, sonora e emblemático, de uma profunda cisão econômica que as pessoas entendem intuitivamente, mas não possuem linguagem para ela ainda. Seria o tipo de rivalidade simbólica na qual você imagina as pessoas tomando um lado pela primeira vez em suas vidas.
Quando as pessoas dizem que Sanders é um risco, elas geralmente querem dizer que sua campanha e sua retórica estão muito fora do conforto do mainstream político dos democratas. Entretanto, essa conjuntura na história coloca o conforto versus o risco. A direita tem tido vantagem em usar o apetite do público por transformação para enriquecer os bilionários. Seus oponentes terão que usar o mesmo apetite para fazer exatamente o oposto.
A ambiciosa agenda de Sanders representa uma dramática ruptura do consenso neoliberal entre os democratas e isso é exatamente o que precisamos para triunfar. Se queremos vencer Trump e construir uma força de compensação capaz de se apropriar do sistema e das instituições que o produziram, não podemos pagar o preço de não nomear Bernie Sanders.
Sobre os autores
Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.
Matt Karp é professor assistente de história na Universidade de Princeton e editor na Jacobin.
Meagan Day faz parte da equipe de articulistas da Jacobin.
Matt Karp é professor assistente de história na Universidade de Princeton e editor na Jacobin.
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