Ilustração: André Stefanini. |
O retorno do ex-presidente Lula ao convívio dos brasileiros e brasileiras, após um ano e sete meses de prisão ilegal e injusta, é o dado novo do cenário político nacional. É um fato auspicioso para os que confiam na verdadeira justiça e trabalham pela retomada plena do processo democrático, abalado desde o afastamento da presidenta Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade e comprometido pela interdição política da maior liderança do país por meio de uma condenação arbitrária.
Mesmo lutando ainda por um julgamento justo, no qual se reconheça sua inocência e se resgatem seus direitos, Lula já foi capaz de injetar nova esperança aos amplos setores que buscam uma saída democrática para a profunda crise social, econômica, política e civilizatória em que o país foi mergulhado pelo governo de extrema direita e seu projeto obscurantista e de regressão social.
Ao mesmo tempo, o retorno de Lula é perturbador para os poderosos interesses que este governo representa, porque Lula é uma ameaça real aos que querem iludir a população com a reimplantação de modelos econômicos socialmente excludentes, fracassados e com políticas antipopulares travestidas de inevitáveis escolhas técnicas.
Ao mesmo tempo, o retorno de Lula é perturbador para os poderosos interesses que este governo representa, porque Lula é uma ameaça real aos que querem iludir a população com a reimplantação de modelos econômicos socialmente excludentes, fracassados e com políticas antipopulares travestidas de inevitáveis escolhas técnicas.
Steve Bannon, líder da ultradireita mundial, afirmou que Lula é a grande liderança da “esquerda globalista” e que seu retorno à política provocará “grande perturbação”. Essa compreensível resistência da ultradireita à liderança de Lula, dentro e fora do país, tem se revelado também em setores situados no que seria o centro do espectro político e tentam se apresentar em conveniente distância da truculência bolsonarista.
É o que se constata da leitura do artigo aqui publicado (1º/12) por três interlocutores desse campo político-ideológico, Paulo Hartung, Marcos Lisboa e Samuel Pessôa, sob o revelador título [na versão online] “Brasil vive entre riscos de extrema direita e recaída lulista”.
Com excessos retóricos e simplificação artificial do debate, os autores equiparam Lula a Jair Bolsonaro. Não é uma “tese” nova, frise-se. Já foi apresentada em editoriais e artigos que tentam nivelar trajetórias e projetos políticos absolutamente distintos exatamente por serem opostos. A inovação do artigo é tentar encobrir essa falácia política e histórica com argumentos supostamente técnicos e econômicos.
Primeiramente, Lula é um autêntico democrata. Construiu sua trajetória na luta por direitos e liberdade. Uma liderança erguida na difícil arte da negociação sindical, entre os interesses conflitantes de patrões e empregados. Lula viveu para construir a democracia; Bolsonaro, para impedi-la e, agora, ameaçá-la. Estiveram e estão em polos opostos, sim, mas só um deles foi e continua sendo um extremista.
Convidamos os autores a ler o que disse Lula duas semanas atrás, no 7º Congresso Nacional do PT:
“Vamos deixar uma coisa bem clara: se existe um partido identificado com a democracia no Brasil é o Partido dos Trabalhadores. O PT nasceu lutando pela liberdade durante a ditadura. Não tentem negar essa verdade, porque nós apanhamos da repressão, fomos perseguidos, presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional por defender essa ideia.”
“Desde que foi criado, há quase 40 anos, o PT disputou dentro da lei e pacificamente todas as eleições neste país. Quando perdemos, aceitamos o resultado e fizemos oposição, como determinaram as urnas. Quando vencemos, governamos com diálogo social, participação popular e respeito às instituições.”
Alguém é capaz de apresentar alguma objeção factual a tais afirmações? Talvez por isso os autores fujam da realidade e forcem paralelismos entre os governos do PT e a ditadura militar. Por essa lente distorcida, Lula e o general Ernesto Geisel se igualariam politicamente por causa das agendas desenvolvimentistas, tratadas como “delírios”, embora o projeto de desenvolvimento com inclusão de Lula tenha resultado concretamente em estabilidade, crescimento sustentado e na mais ampla ascensão social da história.
O mesmo tipo de paralelismo poderia ser aplicado ao programa econômico neoliberal da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, com as trágicas consequências a que estamos assistindo, e ao que Paulo Guedes replica no Brasil, com apoio do campo que os autores do artigo representam. Aceitariam a comparação?
“Desde que foi criado, há quase 40 anos, o PT disputou dentro da lei e pacificamente todas as eleições neste país. Quando perdemos, aceitamos o resultado e fizemos oposição, como determinaram as urnas. Quando vencemos, governamos com diálogo social, participação popular e respeito às instituições.”
Alguém é capaz de apresentar alguma objeção factual a tais afirmações? Talvez por isso os autores fujam da realidade e forcem paralelismos entre os governos do PT e a ditadura militar. Por essa lente distorcida, Lula e o general Ernesto Geisel se igualariam politicamente por causa das agendas desenvolvimentistas, tratadas como “delírios”, embora o projeto de desenvolvimento com inclusão de Lula tenha resultado concretamente em estabilidade, crescimento sustentado e na mais ampla ascensão social da história.
O mesmo tipo de paralelismo poderia ser aplicado ao programa econômico neoliberal da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, com as trágicas consequências a que estamos assistindo, e ao que Paulo Guedes replica no Brasil, com apoio do campo que os autores do artigo representam. Aceitariam a comparação?
Lula fez um governo de diálogo democrático, que viabilizou um novo padrão de desenvolvimento econômico, socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável. Tirou dezenas de milhões de pessoas da miséria, aumentou as oportunidades para os historicamente excluídos e constituiu um amplo mercado interno de consumo de massas.
Em seu governo, os empresários tiveram grandes oportunidades, pois houve aumento exponencial do consumo popular e expansão do mercado exterior. O Brasil conquistou imenso respeito internacional e construiu iniciativas como o Brics e o G-20, além de imensos avanços na integração regional.
Bolsonaro, ao contrário, governa para poucos, combina fundamentalismo de mercado e obscurantismo civilizatório. Retrocede nos direitos trabalhistas e sociais, ataca impiedosamente minorias, envergonha o país com afirmações misóginas, racistas, homofóbicas e machistas.
Equiparar os dois, identificando-os como polos opostos de um mesmo fenômeno político, é de uma má-fé intelectual mesquinha e descabida. É, “mutatis mutandis”, algo semelhante a comparar Nelson Mandela com Hendrik Verwoerd, o criador do apartheid.
Os autores consideram que “o governo Lula desperdiçou talvez a melhor oportunidade de desenvolvimento sustentado do país”. Certamente temos visões opostas sobre o que é desenvolvimento. A elite conservadora brasileira desperdiçou muitas oportunidades históricas de crescer e distribuir renda. Optou por manter e aprofundar a desigualdade, ignorando que ela é um obstáculo ao próprio crescimento.
A pobreza no Brasil tem muitas causas, mas todas derivam da exclusão social. Nos governos Lula e Dilma, pela primeira vez houve prioridade política no combate à pobreza e à fome, integradas ao acesso à saúde e à educação, com impactos diretos sobre a primeira infância. Construir uma rede de proteção social garantindo acesso de novas gerações nunca fora prioridade de governo.
A eficiência das nossas ações pode ser medida em várias políticas ignoradas pelos autores, mas reconhecidas e replicadas em vários países do mundo. Graças a milhares de estudos já publicados, temos evidências cientificas de que o Bolsa Família respondeu por uma redução de 58% na mortalidade infantil causada por desnutrição, 51% no déficit de estatura das crianças e pela redução da mortalidade materna.
Se hoje podemos comemorar que mais de 50% dos jovens nas universidades públicas são oriundos das escolas públicas, negros e negras, isso se deve a uma transformação que vem da base, impulsionada pela Lei de Cotas e pela expansão da rede pública, com a criação de 18 novas universidades e 178 novos campi, acompanhada por forte desconcentração territorial.
Os autores afirmam que Lula “só atende os setores organizados” da sociedade, referindo-se a corporações econômicas, sejam de empresários ou trabalhadores. Mas qual corporação representaria os 54 milhões de pobres atendidos pelo Bolsa Família? Qual a corporação dos milhões de trabalhadores que recebem o salário mínimo valorizado em 77%? Qual o lobby dos 38 milhões de moradores da cidade e do campo que tiveram acesso à água de beber e de plantar?
Em vez de apoiar, aberta ou veladamente, medidas cegas da ortodoxia fiscal permanente e seus efeitos nocivos prolongados, os autores poderiam se perguntar: quanto custará ao Brasil ter acabado com o Mais Médicos? Quanto custará aos cofres públicos o desmonte do Farmácia Popular com impactos sobre doenças crônicas como asma, diabetes e hipertensão? Qual o custo da exclusão educacional dos jovens filhos da pobreza e da ignorância? Afinal, quanto custa não fazer?
Ao afirmar que os governos do PT promoveram um “surto” insustentável de crescimento, brigam com a lógica. Que surto foi esse que durou pelo menos uma década? Onde estaria a insustentabilidade do crescimento nos governos Lula, que concluiu dois mandatos com significativa melhora dos indicadores macroeconômicos relevantes, mesmo enfrentando a maior crise econômica e financeira internacional desde 1929?
Se o governo Lula aplicou duro ajuste nas contas públicas nos dois primeiros anos, não foi por adesão ao neoliberalismo que os autores elogiam. Foi porque os governos neoliberais de FHC, apesar de contribuir para estabilidade monetária, dobraram a dívida pública e praticaram um populismo cambial que minou as contas externas e quase destruiu nossa indústria para conseguir a reeleição.
Problemas evidentemente existiram nos governos do PT, mas surtos insustentáveis foram os passivos externos acumulados no governo FHC, quando acabamos no FMI mendigando dólares. Nos governos Lula e Dilma tivemos restrições fiscais importantes, mas o país se livrou do fantasma da escassez de divisas, que nos assombrou por todo o século 20, ao acumular reservas e pagar a dívida externa pública, na mais clara demonstração de sustentabilidade da estratégia de desenvolvimento socialmente inclusivo.
Aliás, não fossem os US$ 370 bilhões em reservas internacionais acumulados nos governos do PT, o Brasil hoje estaria, aí sim, quebrado, como estava quando herdamos o governo subordinado ao FMI, em 2003.
Ao contrário do que dizia a oposição neoliberal da época e de agora, mantivemos uma trajetória fiscal sólida, com superávits primários elevados, de 2003 a 2013, quando comparados com o histórico brasileiro e do mundo, especialmente depois do poderoso impacto da crise internacional de 2008-2009.
Houve ainda trajetória declinante das dívidas públicas, líquida e bruta, e o pagamento de juros foi reduzido e manteve-se relativamente controlado. A inflação foi contida dentro das metas, sem para isso provocar recessão e desemprego.
A crise iniciada em 2014 mudou o cenário e precisa ser analisada com mais profundidade. E não se devem omitir seus múltiplos determinantes, como o fim abrupto do superciclo das commodities, o impacto inflacionário da seca prolongada e a sabotagem da oposição golpista, que interditou a pauta parlamentar e o esforço de ajuste, impondo pautas-bomba fiscais que tiveram papel decisivo na deterioração do cenário econômico.
A política econômica anticíclica de enfrentamento da crise financeira global de 2008-2009 teve como objetivo principal reforçar o investimento produtivo. A taxa agregada de investimento, representada pela proporção da formação bruta de capital fixo sobre o PIB, cresceu expressivamente, de uma média de 16,8% do PIB, entre 2001 e 2007, para 20,1%, entre 2008 e 2014. Em números de hoje, isso significaria mais R$ 243 bilhões ao ano em investimentos, ou mais R$ 1,7 trilhão de investimento adicional no período.
Esses volumes de investimento foram viabilizados por financiamentos de longo prazo, ofertados pelos bancos públicos. De fato, o Tesouro Nacional reforçou a capacidade de crédito do BNDES em R$ 440,8 bilhões (em valores nominais), entre 2008 e 2014. No período de 2009 a 2016, os desembolsos totais do banco alcançaram R$ 1,2 trilhão em valores correntes, sendo que, desse total, cerca de R$ 623 bilhões foram viabilizados pelos empréstimos do Tesouro (considerando o retorno de parcela dos empréstimos no período).
Esses empréstimos ao BNDES foram autorizados por lei, reportados ao Congresso Nacional e compuseram uma carteira diversificada de projetos, abarcando mais de 1,8 milhão de operações de financiamento. Se querem saber quem foram os beneficiários, foram primeiramente as micro, pequenas e médias empresas, que absorveram 87% dessas operações (R$ 243 bilhões).
Considerando apenas os recursos viabilizados pelo Tesouro, entre 2009 e 2016, a área de infraestrutura recebeu R$ 225 bilhões, a indústria de transformação, R$ 210 bilhões, o comércio e serviços, R$ 139 bilhões e a agropecuária, R$ 74 bilhões. O financiamento à inovação cresceu oito vezes em termos reais, e o financiamento à sustentabilidade ambiental mais que dobrou.
Os números falam mais alto que as lendas sobre a eficácia, transparência e a universalidade dessa política pública. O BNDES apoiou 91 das 100 maiores empresas do país e 783 das 1.000 maiores, sem discriminação. A grande maioria continua produzindo e honrando compromissos. Registre-se que, desde 2016, o BNDES já pagou antecipadamente R$ 380 bilhões ao Tesouro Nacional.
Da mesma forma, a trajetória da Petrobras e da produção de petróleo, gás e derivados nos governos do PT é bem diferente da narrativa ideologizada e irresponsavelmente travestida de senso comum. Os que hoje recriminam um suposto “atraso de cinco anos” nos leilões do pré-sal são os mesmos que reforçavam a falsa ideia de que o pré-sal seria inviável economicamente, pelos custos e desafios tecnológicos.
Pretendem dar lições de política energética, omitindo que legaram ao país um apagão no setor elétrico, que a competente gestão da ministra Dilma Rousseff dobrou a capacidade de geração de energia elétrica e que foram a mudança de concepção e a determinação dos governos do PT que permitiram a descoberta e o desenvolvimento do pré-sal.
O pré-sal já é responsável por 64% da produção nacional de petróleo. As reservas, em torno de 12 bilhões de barris, correspondem a mais de 11 anos da produção atual. A taxa de crescimento da produção de petróleo pela Petrobras foi cinco vezes maior que o crescimento da oferta mundial, e isso se deu na vigência do regime de partilha e das políticas de conteúdo local, atacadas pelos fundamentalistas do “livre mercado”.
A estratégia de impulsionar a indústria setorial de gás e petróleo visa a não repetir o grave equívoco de nos tornarmos um país meramente exportador de óleo cru. Por que o Brasil não pode produzir navios, se é um dos oito países do mundo que produzem aviões? Essa perspectiva histórica de um projeto de nação precisa ser resgatada.
Essa estratégia foi, sim, duramente atingida pelos métodos da Lava Jato no necessário combate à corrupção. É fato que os acordos de leniência —que em outros países preservam as empresas sem prejuízo de punir os controladores por seus crimes— não foram adotados da forma prudencial. Réus confessos negociaram benefícios penais e financeiros, enquanto empresas foram condenadas à falência, e 2 milhões de trabalhadores, ao desemprego, com perda estimada de 2,5% do PIB no conjunto da economia.
O esforço narrativo alegadamente técnico do artigo culmina na mais grave de suas falácias quando responsabiliza o “populismo” (de Lula e do PT) por “fortalecer a extrema direita”.
Alto lá! Quais foram as forças políticas, sociais e econômicas que desviaram o Brasil do caminho constitucional para derrubar uma presidenta eleita que não cometeu crime? Quais as forças políticas e midiáticas que sustentaram a farsa judicial, desnudada pela Vaza Jato, para prender e cassar o líder das pesquisas presidenciais?
As mesmas que trataram Bolsonaro como um candidato respeitável. Que o pouparam de debater propostas durante a campanha e toleraram a indústria de mentiras contra o candidato do PT, Fernando Haddad, plantada nas redes sociais com dinheiro oculto, que até o momento não foi devidamente investigado pela Justiça Eleitoral.
Parte dessas forças tenta agora se desvincular do monstro político que contribuiu decisivamente para criar. Como se nada tivessem a ver com o processo de deslegitimação da política desencadeado para impedir o projeto de desenvolvimento com inclusão que estava em curso no país.
Quem colaborou para a ascensão de Bolsonaro foram os mesmos que disseram que bastava tirar o PT do governo e todos os problemas estariam resolvidos. Foi quem, após o golpe, implantou uma agenda neoliberal que, sem passar pelas urnas, aumentou o descrédito das instituições, abrindo caminho para um aventureiro chegar ao governo.
Quem contribuiu decisivamente para eleger Bolsonaro foi o discurso de ódio contra o PT.
A causa principal da crise dos sistemas políticos e das democracias é basicamente a mesma em todas as regiões: a predominância do modelo neoliberal e das políticas ortodoxas de austeridade combinadas com a crise econômica mundial.
Muitos autores, como Thomas Piketty, Christian Laval, Noam Chomsky e Joseph E. Stiglitz, destacam essa relação estreita entre o capitalismo financeirizado e desregulado, o aumento das desigualdades, a erosão do Estado de bem-estar social e a crise que atinge em cheio as democracias e a legitimidade dos sistemas de representação política.
O grande inimigo da democracia, do diálogo e da conciliação é hoje um modelo econômico fracassado, que beneficia somente uma pequena minoria, mas que se traveste de responsabilidade macroeconômica e de racionalidade técnica única.
Lula e o PT defendem uma economia compartilhada, com políticas sociais solidárias, com sustentabilidade econômica, ambiental e social. Um modelo que enfrente a pobreza e a desigualdade, sem o que não haverá crescimento sustentado, democracia sólida nem a superação desta grave crise.
No papel de oposição que assumimos com coragem, não nos limitamos à crítica e à denúncia. Apresentamos alternativas para o país. Lançamos o plano emergencial de geração de emprego e renda, mostrando como é possível criar 7 milhões de empregos em curto e médio prazos, com um financiamento que assegure a sustentabilidade fiscal.
Apresentamos ao Congresso, junto com os partidos de oposição, o projeto de reforma tributária justa e solidária, que vai muito além da necessária racionalização dos impostos indiretos, que hoje representam 49% da carga tributária no Brasil, contra 32% na OCDE e 17% nos EUA. Esta estrutura fiscal regressiva sobrecarrega os assalariados e a classe média. Nossa proposta respeita o pacto federativo e propõe uma consistente justiça fiscal, taxando com progressividade a renda, a riqueza e as grandes fortunas.
Também estamos apresentando uma proposta de novo marco de responsabilidade fiscal, para permitir a retomada do investimento público.
Na disputa legítima por corações e mentes da sociedade, há os que têm um importante legado a defender e apresentam propostas para o debate nacional e os que, na dificuldade de defender seu legado e justificar os problemas do presente, aferram-se a uma visão distorcida do passado e vão fazer a autocrítica alheia.
Fica para os bolsonaristas, envergonhados ou de raiz, o temor de uma “recaída lulista”. O Brasil precisa de um debate qualificado, que discuta propostas para o futuro e fortaleça a democracia.
Sobre os autores
Aloizio Mercadante
Bolsonaro, ao contrário, governa para poucos, combina fundamentalismo de mercado e obscurantismo civilizatório. Retrocede nos direitos trabalhistas e sociais, ataca impiedosamente minorias, envergonha o país com afirmações misóginas, racistas, homofóbicas e machistas.
Equiparar os dois, identificando-os como polos opostos de um mesmo fenômeno político, é de uma má-fé intelectual mesquinha e descabida. É, “mutatis mutandis”, algo semelhante a comparar Nelson Mandela com Hendrik Verwoerd, o criador do apartheid.
Os autores consideram que “o governo Lula desperdiçou talvez a melhor oportunidade de desenvolvimento sustentado do país”. Certamente temos visões opostas sobre o que é desenvolvimento. A elite conservadora brasileira desperdiçou muitas oportunidades históricas de crescer e distribuir renda. Optou por manter e aprofundar a desigualdade, ignorando que ela é um obstáculo ao próprio crescimento.
A pobreza no Brasil tem muitas causas, mas todas derivam da exclusão social. Nos governos Lula e Dilma, pela primeira vez houve prioridade política no combate à pobreza e à fome, integradas ao acesso à saúde e à educação, com impactos diretos sobre a primeira infância. Construir uma rede de proteção social garantindo acesso de novas gerações nunca fora prioridade de governo.
A eficiência das nossas ações pode ser medida em várias políticas ignoradas pelos autores, mas reconhecidas e replicadas em vários países do mundo. Graças a milhares de estudos já publicados, temos evidências cientificas de que o Bolsa Família respondeu por uma redução de 58% na mortalidade infantil causada por desnutrição, 51% no déficit de estatura das crianças e pela redução da mortalidade materna.
Se hoje podemos comemorar que mais de 50% dos jovens nas universidades públicas são oriundos das escolas públicas, negros e negras, isso se deve a uma transformação que vem da base, impulsionada pela Lei de Cotas e pela expansão da rede pública, com a criação de 18 novas universidades e 178 novos campi, acompanhada por forte desconcentração territorial.
Os autores afirmam que Lula “só atende os setores organizados” da sociedade, referindo-se a corporações econômicas, sejam de empresários ou trabalhadores. Mas qual corporação representaria os 54 milhões de pobres atendidos pelo Bolsa Família? Qual a corporação dos milhões de trabalhadores que recebem o salário mínimo valorizado em 77%? Qual o lobby dos 38 milhões de moradores da cidade e do campo que tiveram acesso à água de beber e de plantar?
Em vez de apoiar, aberta ou veladamente, medidas cegas da ortodoxia fiscal permanente e seus efeitos nocivos prolongados, os autores poderiam se perguntar: quanto custará ao Brasil ter acabado com o Mais Médicos? Quanto custará aos cofres públicos o desmonte do Farmácia Popular com impactos sobre doenças crônicas como asma, diabetes e hipertensão? Qual o custo da exclusão educacional dos jovens filhos da pobreza e da ignorância? Afinal, quanto custa não fazer?
Ao afirmar que os governos do PT promoveram um “surto” insustentável de crescimento, brigam com a lógica. Que surto foi esse que durou pelo menos uma década? Onde estaria a insustentabilidade do crescimento nos governos Lula, que concluiu dois mandatos com significativa melhora dos indicadores macroeconômicos relevantes, mesmo enfrentando a maior crise econômica e financeira internacional desde 1929?
Se o governo Lula aplicou duro ajuste nas contas públicas nos dois primeiros anos, não foi por adesão ao neoliberalismo que os autores elogiam. Foi porque os governos neoliberais de FHC, apesar de contribuir para estabilidade monetária, dobraram a dívida pública e praticaram um populismo cambial que minou as contas externas e quase destruiu nossa indústria para conseguir a reeleição.
Problemas evidentemente existiram nos governos do PT, mas surtos insustentáveis foram os passivos externos acumulados no governo FHC, quando acabamos no FMI mendigando dólares. Nos governos Lula e Dilma tivemos restrições fiscais importantes, mas o país se livrou do fantasma da escassez de divisas, que nos assombrou por todo o século 20, ao acumular reservas e pagar a dívida externa pública, na mais clara demonstração de sustentabilidade da estratégia de desenvolvimento socialmente inclusivo.
Aliás, não fossem os US$ 370 bilhões em reservas internacionais acumulados nos governos do PT, o Brasil hoje estaria, aí sim, quebrado, como estava quando herdamos o governo subordinado ao FMI, em 2003.
Ao contrário do que dizia a oposição neoliberal da época e de agora, mantivemos uma trajetória fiscal sólida, com superávits primários elevados, de 2003 a 2013, quando comparados com o histórico brasileiro e do mundo, especialmente depois do poderoso impacto da crise internacional de 2008-2009.
Houve ainda trajetória declinante das dívidas públicas, líquida e bruta, e o pagamento de juros foi reduzido e manteve-se relativamente controlado. A inflação foi contida dentro das metas, sem para isso provocar recessão e desemprego.
A crise iniciada em 2014 mudou o cenário e precisa ser analisada com mais profundidade. E não se devem omitir seus múltiplos determinantes, como o fim abrupto do superciclo das commodities, o impacto inflacionário da seca prolongada e a sabotagem da oposição golpista, que interditou a pauta parlamentar e o esforço de ajuste, impondo pautas-bomba fiscais que tiveram papel decisivo na deterioração do cenário econômico.
A política econômica anticíclica de enfrentamento da crise financeira global de 2008-2009 teve como objetivo principal reforçar o investimento produtivo. A taxa agregada de investimento, representada pela proporção da formação bruta de capital fixo sobre o PIB, cresceu expressivamente, de uma média de 16,8% do PIB, entre 2001 e 2007, para 20,1%, entre 2008 e 2014. Em números de hoje, isso significaria mais R$ 243 bilhões ao ano em investimentos, ou mais R$ 1,7 trilhão de investimento adicional no período.
Esses volumes de investimento foram viabilizados por financiamentos de longo prazo, ofertados pelos bancos públicos. De fato, o Tesouro Nacional reforçou a capacidade de crédito do BNDES em R$ 440,8 bilhões (em valores nominais), entre 2008 e 2014. No período de 2009 a 2016, os desembolsos totais do banco alcançaram R$ 1,2 trilhão em valores correntes, sendo que, desse total, cerca de R$ 623 bilhões foram viabilizados pelos empréstimos do Tesouro (considerando o retorno de parcela dos empréstimos no período).
Esses empréstimos ao BNDES foram autorizados por lei, reportados ao Congresso Nacional e compuseram uma carteira diversificada de projetos, abarcando mais de 1,8 milhão de operações de financiamento. Se querem saber quem foram os beneficiários, foram primeiramente as micro, pequenas e médias empresas, que absorveram 87% dessas operações (R$ 243 bilhões).
Considerando apenas os recursos viabilizados pelo Tesouro, entre 2009 e 2016, a área de infraestrutura recebeu R$ 225 bilhões, a indústria de transformação, R$ 210 bilhões, o comércio e serviços, R$ 139 bilhões e a agropecuária, R$ 74 bilhões. O financiamento à inovação cresceu oito vezes em termos reais, e o financiamento à sustentabilidade ambiental mais que dobrou.
Os números falam mais alto que as lendas sobre a eficácia, transparência e a universalidade dessa política pública. O BNDES apoiou 91 das 100 maiores empresas do país e 783 das 1.000 maiores, sem discriminação. A grande maioria continua produzindo e honrando compromissos. Registre-se que, desde 2016, o BNDES já pagou antecipadamente R$ 380 bilhões ao Tesouro Nacional.
Da mesma forma, a trajetória da Petrobras e da produção de petróleo, gás e derivados nos governos do PT é bem diferente da narrativa ideologizada e irresponsavelmente travestida de senso comum. Os que hoje recriminam um suposto “atraso de cinco anos” nos leilões do pré-sal são os mesmos que reforçavam a falsa ideia de que o pré-sal seria inviável economicamente, pelos custos e desafios tecnológicos.
Pretendem dar lições de política energética, omitindo que legaram ao país um apagão no setor elétrico, que a competente gestão da ministra Dilma Rousseff dobrou a capacidade de geração de energia elétrica e que foram a mudança de concepção e a determinação dos governos do PT que permitiram a descoberta e o desenvolvimento do pré-sal.
O pré-sal já é responsável por 64% da produção nacional de petróleo. As reservas, em torno de 12 bilhões de barris, correspondem a mais de 11 anos da produção atual. A taxa de crescimento da produção de petróleo pela Petrobras foi cinco vezes maior que o crescimento da oferta mundial, e isso se deu na vigência do regime de partilha e das políticas de conteúdo local, atacadas pelos fundamentalistas do “livre mercado”.
A estratégia de impulsionar a indústria setorial de gás e petróleo visa a não repetir o grave equívoco de nos tornarmos um país meramente exportador de óleo cru. Por que o Brasil não pode produzir navios, se é um dos oito países do mundo que produzem aviões? Essa perspectiva histórica de um projeto de nação precisa ser resgatada.
Essa estratégia foi, sim, duramente atingida pelos métodos da Lava Jato no necessário combate à corrupção. É fato que os acordos de leniência —que em outros países preservam as empresas sem prejuízo de punir os controladores por seus crimes— não foram adotados da forma prudencial. Réus confessos negociaram benefícios penais e financeiros, enquanto empresas foram condenadas à falência, e 2 milhões de trabalhadores, ao desemprego, com perda estimada de 2,5% do PIB no conjunto da economia.
O esforço narrativo alegadamente técnico do artigo culmina na mais grave de suas falácias quando responsabiliza o “populismo” (de Lula e do PT) por “fortalecer a extrema direita”.
Alto lá! Quais foram as forças políticas, sociais e econômicas que desviaram o Brasil do caminho constitucional para derrubar uma presidenta eleita que não cometeu crime? Quais as forças políticas e midiáticas que sustentaram a farsa judicial, desnudada pela Vaza Jato, para prender e cassar o líder das pesquisas presidenciais?
As mesmas que trataram Bolsonaro como um candidato respeitável. Que o pouparam de debater propostas durante a campanha e toleraram a indústria de mentiras contra o candidato do PT, Fernando Haddad, plantada nas redes sociais com dinheiro oculto, que até o momento não foi devidamente investigado pela Justiça Eleitoral.
Parte dessas forças tenta agora se desvincular do monstro político que contribuiu decisivamente para criar. Como se nada tivessem a ver com o processo de deslegitimação da política desencadeado para impedir o projeto de desenvolvimento com inclusão que estava em curso no país.
Quem colaborou para a ascensão de Bolsonaro foram os mesmos que disseram que bastava tirar o PT do governo e todos os problemas estariam resolvidos. Foi quem, após o golpe, implantou uma agenda neoliberal que, sem passar pelas urnas, aumentou o descrédito das instituições, abrindo caminho para um aventureiro chegar ao governo.
Quem contribuiu decisivamente para eleger Bolsonaro foi o discurso de ódio contra o PT.
A causa principal da crise dos sistemas políticos e das democracias é basicamente a mesma em todas as regiões: a predominância do modelo neoliberal e das políticas ortodoxas de austeridade combinadas com a crise econômica mundial.
Muitos autores, como Thomas Piketty, Christian Laval, Noam Chomsky e Joseph E. Stiglitz, destacam essa relação estreita entre o capitalismo financeirizado e desregulado, o aumento das desigualdades, a erosão do Estado de bem-estar social e a crise que atinge em cheio as democracias e a legitimidade dos sistemas de representação política.
O grande inimigo da democracia, do diálogo e da conciliação é hoje um modelo econômico fracassado, que beneficia somente uma pequena minoria, mas que se traveste de responsabilidade macroeconômica e de racionalidade técnica única.
Lula e o PT defendem uma economia compartilhada, com políticas sociais solidárias, com sustentabilidade econômica, ambiental e social. Um modelo que enfrente a pobreza e a desigualdade, sem o que não haverá crescimento sustentado, democracia sólida nem a superação desta grave crise.
No papel de oposição que assumimos com coragem, não nos limitamos à crítica e à denúncia. Apresentamos alternativas para o país. Lançamos o plano emergencial de geração de emprego e renda, mostrando como é possível criar 7 milhões de empregos em curto e médio prazos, com um financiamento que assegure a sustentabilidade fiscal.
Apresentamos ao Congresso, junto com os partidos de oposição, o projeto de reforma tributária justa e solidária, que vai muito além da necessária racionalização dos impostos indiretos, que hoje representam 49% da carga tributária no Brasil, contra 32% na OCDE e 17% nos EUA. Esta estrutura fiscal regressiva sobrecarrega os assalariados e a classe média. Nossa proposta respeita o pacto federativo e propõe uma consistente justiça fiscal, taxando com progressividade a renda, a riqueza e as grandes fortunas.
Também estamos apresentando uma proposta de novo marco de responsabilidade fiscal, para permitir a retomada do investimento público.
Na disputa legítima por corações e mentes da sociedade, há os que têm um importante legado a defender e apresentam propostas para o debate nacional e os que, na dificuldade de defender seu legado e justificar os problemas do presente, aferram-se a uma visão distorcida do passado e vão fazer a autocrítica alheia.
Fica para os bolsonaristas, envergonhados ou de raiz, o temor de uma “recaída lulista”. O Brasil precisa de um debate qualificado, que discuta propostas para o futuro e fortaleça a democracia.
Sobre os autores
Aloizio Mercadante
Doutor em economia, professor, ex-deputado e senador (PT-SP), ex-ministro de Ciência e Tecnologia e da Educação e ex-chefe da Casa Civil da Presidência (Dilma Rousseff)
Tereza Campello
Tereza Campello
Economista, doutora por notório saber em saúde pública, pesquisadora associada à Universidade de Nottingham e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (governo Dilma)
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