A vergonha do país, e não o amor por ele, é a marca mais verdadeira de pertencimento? Lineamentos de uma emoção política, na interseção da biologia e da história, desde a invocação de Nestor no campo de batalha de Tróia até a lembrança do Exército Vermelho de Primo Levi. Como podemos imaginar os limites de uma comunidade baseada na vergonha?
Carlo Ginzburg
NLR 120 • Nov/Dec 2019 |
Tradução / Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos. A vergonha pode ser um vínculo mais forte que o amor. Repetidas vezes testei minha descoberta com amigos de diferentes países: todos reagiram da mesma forma – com surpresa, seguida imediatamente de completa concordância, como se minha sugestão fosse uma verdade evidente por si só. Não estou afirmando que esse fardo de vergonha seja sempre o mesmo: na verdade, ele varia imensamente de um país para outro. Mas o vínculo da vergonha – a vergonha como um vínculo – está sempre lá, para um número maior ou menor de indivíduos. Aristóteles incluiu a “vergonha” (aidos) no rol das paixões, assinalando que ela “não é uma virtude” (Ética a Nicômaco 1108 a 30-31). A definição ainda faz sentido. A vergonha não é, em absoluto, uma questão de escolha: ela se abate sobre nós, ela nos invade – invade nossos corpos, nossos sentimentos, nossos pensamentos – como uma moléstia súbita. A vergonha é uma paixão na encruzilhada entre a biologia e a história: o domínio que Sigrid Weigel soube tornar tão distintamente seu.*
Mas será possível submeter uma paixão como a vergonha à análise histórica? Em seu famoso livro Os gregos e o irracional, Eric R. Dodds sugeriu, com base em fontes literárias, da Ilíada às tragédias, que a Grécia antiga assistira ao desenvolvimento de uma cultura da culpa a partir de uma prévia cultura da vergonha.[1] Dodds tomara essa dicotomia do livro de Ruth Benedict, O crisântemo e a espada, uma análise antropológica, muito influente e muito polêmica, do Japão como exemplo de uma cultura da vergonha.[2] Essa dicotomia era descrita nos seguintes termos: nas culturas da vergonha, o indivíduo se vê confrontado a uma sanção externa, corporificada na comunidade a que ele ou ela pertence; nas culturas da culpa, a sanção é introjetada.[3]
Mas Dodds e, até certo ponto, Benedict recusavam-se a considerar os dois tipos de cultura como incompatíveis, admitindo portanto a existência de estágios intermediários. Outros estudos, porém, deram nova forma à dicotomia numa perspectiva evolucionista, de conotações potencialmente racistas. Num artigo publicado em 1972 no The American Journal of Psychiatry, Harold W. Glidden postulava a existência de um “comportamento árabe” baseado numa cultura focada na vingança.5 As implicações eram óbvias: a alternativa às culturas da vergonha – arcaicas e atrasadas – eram as culturas da culpa, cujos traços distintivos são a interiorização e um código moral maduro – em outras palavras, a modernidade.
São óbvios os maus usos possíveis da dicotomia, mas seu potencial cognitivo merece um exame mais atento. Para os fins do meu teste, vou partir de dois livros, ambos de 1993 e de tema coincidente: as conferências Sather de Bernard Williams, publicadas sob o título de Vergonha e necessidade, e o estudo de Douglas L. Cairns, Aidos: a psicologia e a ética da honra e da vergonha na literatura grega antiga. Suas abordagens são muito diferentes entre si. Williams, filósofo, oferecia uma “descrição filosófica de uma realidade histórica” ao sugerir que as ideias gregas sobre a ação e a responsabilidade eram tão próximas quanto distintas das nossas, insistindo, ao mesmo tempo, que “o passado grego é o passado da modernidade”.[5] Cairns, o classicista, reunia e analisava em minúcia um dossiê volumoso de uma perspectiva quase etnográfica, enfatizando a distância entre a cultura grega e a nossa. [6]
“A experiência básica relacionada à vergonha”, escreveu Williams, “é a de ser visto, de modo constrangedor, pelas pessoas erradas na situação errada.”7 Essa hipótese inicial, oriunda do esforço introspectivo de um filósofo britânico do fim do século 20, é consistente com um método que explica fenômenos culturais a partir de um foco voltado para o indivíduo. Mas partir da mesma noção de individualismo que se busca demonstrar parece implicar uma petitio principii: o risco de anacronismo é evidente. Para evitá-lo, Williams alega “levantar-se pelos próprios cabelos” (a metáfora é inspirada numa famosa história do barão de Münchhausen), recorrendo a um processo cognitivo que se autoalimenta e procede sem auxílio externo.8 A hipótese inicial deve servir como um ponto de partida que novos dados enriquecerão ou transformarão. Até que ponto essa estratégia de pesquisa rendeu frutos?
Um teste crucial para a hipótese inicial de Williams tem a ver com o uso frequente, na Ilíada, do termo aidos a fim de inspirar coragem no campo de batalha. Aidos! (“Vergonha!”) é uma censura dirigida aos guerreiros, às vezes seguida de um argumento compacto: “Tende vergonha uns dos outros nos potentes combates!/ A maior parte dos homens com vergonha não morre, mas salva-se.” Em outras palavras, agir corajosamente é o melhor modo de sobreviver. Essa fórmula ocorre duas vezes no poema (v, 529-532 e xv, 561-564). Contudo, numa passagem famosa (xv, 661-666), a relação face a face ganha outra amplitude. Diz Nestor: Amigos, sede homens! Ponde nos corações a vergonha/ perante outros homens e lembrai-vos, cada um de vós,/ dos vossos filhos e mulheres, dos haveres e dos pais,/ independentemente de ainda serem vivos, ou já mortos./ Por aqueles que aqui não estão vos suplico que firmes/ permaneçais e que não vireis as costas em fuga![9]
Williams faz uma breve citação dessa passagem, e então a comenta: “É possível ver essa espécie de vergonha prospectiva como uma forma de medo”.[10] Mas essa sugestão leva o autor a um novo desdobramento, ensejado por uma palavra – nemesis – que a Ilíada muitas vezes associa a aidos e que evoca a raiva e a indignação:
Nemesis, como aidos, pode se dar dos dois lados de uma relação social. As pessoas têm ao mesmo tempo um sentido de honra pessoal e um respeito pela honra alheia; elas podem sentir indignação ou outras formas de raiva diante da violação da honra, tanto a própria como a de outrem. Esses são sentimentos compartilhados a propósito de objetos semelhantes, e servem para vincular as pessoas umas às outras numa comunidade de sentimentos.[11]
“As pessoas têm ao mesmo tempo um sentido [...]; elas podem sentir indignação ou outras formas de raiva [...]. Esses são sentimentos compartilhados a propósito de objetos semelhantes [...]” – sobre quais bases, pode-se bem indagar, Williams faz afirmações dessa ordem? Terá ele acesso aos sentimentos íntimos das “pessoas” com base em suas próprias experiências? A referência a “pessoas” implica que a conexão entre “vergonha” e “raiva” é um fenômeno transcultural? A cuidadosa formulação da passagem citada contrasta com a referência lacônica de Williams ao estudo de James M. Redfield sobre Natureza e cultura na Ilíada: a tragédia de Heitor.[12] Nesse livro, o autor tenta ganhar acesso às paixões e aos sentimentos vividos pelos gregos antigos não a partir de nossas próprias paixões e sentimentos (que podem apenas servir para que formulemos perguntas), e sim a partir da evidência linguística. Com efeito, a conexão entre aidos e nemesis já fora assinalada pelo grande linguista (e grande filósofo) Émile Benveniste, em seu estudo sobre Nomes de agente e nomes de ação em indo-europeu:
A partir desse ponto, a evolução do sentido [de nemesis] pode ser iluminada pela evolução do sentido de um termo associado na língua homérica, aidos (Ilíada, xiii, 122: aidos kai nemesis, “a vergonha e a indignação”): ambos se referem a representações coletivas. Aidos designa o sentido coletivo de honra e as obrigações decorrentes para o grupo. Mas esse sentimento é fortalecido e essas obrigações são sentidas de modo mais agudo quando a honra coletiva é ferida. Nesse momento, a “honra” ferida de todos torna-se a “vergonha” de cada um.12
Benveniste traduz a conexão entre aidos e nemesis na forma de um argumento acessível a nós. Estamos longe da suposta transparência do autoexame psicológico. Voltemos por um instante a Williams: “Esses são sentimentos compartilhados a propósito de objetos semelhantes, e servem para vincular as pessoas umas às outras numa comunidade de sentimentos”.
Mas a que se refere Williams – a sentimentos compartilhados ou a palavras compartilhadas? De nada valeria fugir à pergunta, respondendo “a ambos”. A relação entre o fluxo incessante de sentimentos e emoções, de um lado, e a taxonomia discreta criada pelas palavras, de outro, continua a nos escapar. Chegaremos um dia a captar o impacto da palavra aidos, gritada num campo de batalha, sobre o “efeito vinculante e interativo da vergonha”? 13 O que teria acontecido se aidos, esse termo poderosamente performativo, não existisse?
De resto, aidos é e não é idêntico a “vergonha”.14 Na língua homérica, como bem demonstrou Cairns em seu estudo minucioso, aidos e afins significam “medo”, “respeito”, “honra”, “veneração”, “modéstia”, “partes sexuais”. O substantivo latino verecundia cobre um campo semelhante, uma gama de sentidos que incluem “temor religioso”, “vergonha”, “veneração”, “partes sexuais” (verenda).17 Quando nos voltamos para outras línguas, logo nos damos conta de que substantivos como fear, Furcht, crainte, timore coincidem apenas em parte com a gama de sentidos associada a aidos. Mais uma vez, duas verdades se impõem a nós: traduções são sempre possíveis; traduções são sempre inadequadas.
Verdades singelas e desafios tremendos: as palavras que Nestor dirige aos soldados confrontam-nos com uma associação entre vergonha e honra, estranha às nossas intuições.18 Aidos é um sentimento (uma paixão) que envolve uma comunidade, visível e invisível, de vivos e de mortos: Amigos, sede homens! Ponde nos corações [thumos] a vergonha [aidos]/ perante outros homens e lembrai--vos, cada um de vós,/ dos vossos filhos e mulheres, dos haveres e dos pais,/ independentemente de ainda serem vivos, ou já mortos./ Por aqueles que aqui não estão vos suplico que firmes/ permaneçais e que não vireis as costas em fuga!
Essa passagem da Ilíada explica por que o vínculo suscitado pela vergonha pode ser estendido não apenas ao ato de ter vergonha de si mesmo, mas também ao ato de ter vergonha pelo comportamento de outrem, vivo ou morto. Numa nota de rodapé, Cairns trata explicitamente dessa extensão do sentido de aidos, citando um exemplo de Ésquines, o orador: os “homens de bem [...] cobriram seus olhos, sentindo vergonha pela cidade”, quando se viram diante do aspecto repugnante do corpo nu de Timarco.17 A fórmula patética e verbal, a Pathos- e Logosformel, que Homero associara a relações face a face ou a vínculos familiares (inclusive entre os vivos e os mortos) terminou por ser expandida de modo a incluir a cidade.
A vergonha encarna a relação entre o corpo individual e o corpo político. Como animal político, o homem não pode ser identificado exclusivamente a seu corpo físico: é por isso que as fronteiras do ego são sempre problemáticas. Fazendo eco a Ernst Kantorowicz, poderíamos falar dos “dois corpos” de todos nós.
2
Os gregos antigos não tinham uma palavra específica para “culpa”.20 Seria tentador presumir que essa ausência captura perfeitamente a diferença entre uma cultura da vergonha como a da Grécia antiga e uma cultura da culpa como a nossa, conformada pela ênfase judaica e cristã no pecado original e na Queda. Mas essa espécie de dicotomia nítida seria ilusória. As ideias de pecado original e de culpa primordial não circulavam apenas no Livro do Gênese: espalharam-se pelo Mediterrâneo e podiam ser encontradas em sociedades conformadas pela “comunidade da honra”.21 Como interagiam esses dois conjuntos de ideias tão distintas?
O estudo de um exemplo particular pode nos dar uma resposta. A escolha mais óbvia recairia sobre Santo Agostinho, o professor de retórica pagão que descreveu em detalhe o longo e doloroso percurso que o conduziu ao cristianismo. A começar pelo título – Confissões –, a culpa ocupa o centro de seu relato. Mas a linguagem que Santo Agostinho usa para se confessar a Deus é cheia de nuances. Ao falar de seus próprios pecados, ele insiste em distinguir facinora e flagitia. A mesma distinção reaparece, mais ou menos ao mesmo tempo, em seu escrito De doctrina christiana.22 Facinora são sempre crimes. Numa passagem famosa, Santo Agostinho contava como, aos 16 anos, ele roubou com seus amigos incontáveis frutos de uma pereira que havia em sua cidade natal: “Não para nosso banquete, mas para jogá-los aos porcos; ainda que tenhamos comido alguns, fizemos aquilo pelo prazer do proibido [dum tamen fieret a nobis quod eo liberet, quo non liceret]”.23 Recordando, consternado, Santo Agostinho tenta entender o que fez e por que o fez:
E eu, miserável, o que amava em ti, meu roubo, delito [facinus] meu noturno, no décimo sexto ano de minha idade? Não eras belo [pulchrum], porque eras um roubo. [...] Eram belos [pulchra] os frutos que roubamos, porque eram tuas criaturas, ó mais belo de todos, criador de tudo, Deus bom [...]. E agora, Senhor meu Deus, investigo o que me agradou no roubo [quid me in furto delectaverit], e não encontro nenhuma beleza.
Alguns leitores modernos zombaram dessa passagem: quanto barulho por umas poucas peras! Não atinaram para o ponto essencial. Santo Agostinho estava sugerindo a seus leitores que o furto juvenil das peras repetia a cena do pecado original: “A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista [pulchrum oculis aspectuque delectabile] […]. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu.” (Gênese 3, 6)
Santo Agostinho está dizendo que a propensão humana para o mal evidencia-se até num furto juvenil. Depois da Queda, ninguém é inocente – nem mesmo os bebês: “E se fui concebido na iniquidade e minha mãe me alimentou no útero entre os pecados [Salmos 51, 5], onde, peço-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde ou quando fui inocente?” (Confissões, i, vii, 12).
Mas Santo Agostinho não deixava de traçar cuidadosamente uma distinção entre o criminoso facinus e o vergonhoso flagitium, na medida em que este último pertencia a um âmbito que devia ser avaliado segundo as circunstâncias.24 Em De doctrina christiana, Santo Agostinho escreveu: Desnudar-se num banquete, entre bêbados e dissolutos, é vergonhoso [flagitiose], mas nem por isso é vergonhoso [flagitium] desnudar-se nos banhos. […] É preciso, pois, considerar cuidadosamente o que é conveniente em relação aos momentos e aos lugares e às pessoas, para que não se acusem temerariamente os homens de pecados [flagitia].23
O antigo professor de retórica, conhecedor da noção de decoro ou conveniência (to prepon, em grego), estava implicitamente relendo o Livro do Gênese: “Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam [et non erubescebant]” (Gênese 2, 25). Depois da Queda, a vergonha penetra no mundo: “Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus [cumque cognovissent se esse nudos]; entrelaçaram folhas de figueira e cingiram-se” (Gênese 3, 7). O sentido da nudez agora é outro. Homem e mulher sentiram necessidade de cobrir suas partes sexuais, agora transformadas em vergonhas (pudenda). Doravante, a vergonha será associada à condição humana, ao lado do medo e da culpa, inextricavelmente vinculados na resposta de Adão ao chamado de Deus após a Queda: “‘Ouvi teu passo no jardim’, respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi’. Ele [Deus] retomou: ‘E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer?’” (Gênese 3, 10-11)
A despeito de seu uso do Livro do Gênese como subtexto, Santo Agostinho quer sublinhar a dimensão social da nudez – assim como, de modo mais geral, do flagitium. Outra passagem de De doctrina christiana refere-se às roupas, em vez da nudez, a fim de assinalar que a percepção de um dado comportamento como vergonhoso ou deplorável pode mudar ao longo do tempo: Outrora, entre os antigos romanos, era considerado infame [flagitium] vestir uma túnica que chegasse até os tornozelos e tivesse mangas compridas, ao passo que hoje, entre as pessoas bem-nascidas, é uma vergonha [flagitium] não vestir túnicas: do mesmo modo, deve-se tentar evitar que a paixão se misture no uso que fazemos das coisas.24 O contexto da passagem – uma discussão da poligamia dos patriarcas bíblicos – torna a observação de Santo Agostinho ainda mais notável. Os costumes matrimoniais mudam, assim como mudam as roupas; nossa percepção a respeito varia de lugar para lugar, de ano para ano, o que pode lhes conferir um aspecto vergonhoso. Facinus não está submetido à mudança – ao contrário de flagitium. A vergonha é parte da história da humanidade.
As Confissões de Santo Agostinho apresentam--se como um solilóquio dirigido a Deus. Em seu ser mais íntimo, por meio de um autoexame sem quartel, Santo Agostinho descobriu um Deus que era um juiz eterno – ao mesmo tempo que não perdeu de vista que comunidades diversas julgam de forma diferente, seja para aprovar, seja para reprovar. Em sua experiência, a cultura da culpa e a cultura da vergonha estavam estreitamente entretecidas.
3
Partimos de uma experiência disseminada: o país a que pertencemos é o país do qual nos envergonhamos. Podemos testar o argumento tanto reduzindo a escala de referência (cidade, família) como ampliando-a. Surge então a seguinte questão: se a vergonha supõe proximidade, quais serão os limites plausíveis de uma comunidade baseada na vergonha? Talvez seja o caso de recordar, neste contexto, o começo de A trégua, de Primo Levi. A guerra acabou; junto a um grupo de sobreviventes de Auschwitz, Levi vai ao encontro de seus libertadores, quatro cavalarianos do Exército Vermelho:
Não acenavam, não sorriam; pareciam sufocados não apenas pela compaixão, mas também por uma confusa reserva, que selava suas bocas e prendia seus olhos ao cenário funesto. Era a mesma vergonha conhecida por nós, a que nos esmagava após as seleções e sempre que tínhamos de suportar ou assistir a um ultraje: a vergonha que os alemães desconheciam, aquela que o justo experimenta diante do crime alheio, afligindo-se que o crime exista, que tenha sido irrevogavelmente introduzido no mundo das coisas que existem, e que sua própria boa vontade tenha sido fraca ou nula e não lhe tenha servido de defesa.[25]
As vítimas e os libertadores, pensava Levi, estavam envergonhados e sentiam-se culpados por terem sido incapazes de evitar a injustiça; os algozes e seus cúmplices não sentiam vergonha. Essas palavras, escritas em 1947, foram publicadas em 1963. Em seu último livro, Os submersos e os salvos, publicado em 1986, Levi voltou ao tema num capítulo intitulado “Vergonha”, novamente associando vergonha e culpa: “A vergonha, que é um sentimento de culpa”, “um sentimento de vergonha ou culpa”.26 Em páginas de intolerável lucidez, Levi explorou seus sentimentos de culpa e falou dos que haviam sobrevivido aos campos de extermínio apenas para, pouco depois, cometerem suicídio. Mencionou então “uma vergonha mais vasta, a vergonha do mundo”: vergonha diante do mal cometido por outrem, vergonha de pertencer, como os algozes e os cúmplices, a uma mesma humanidade. “O mar de dor, passada e presente, circundava-nos, e seu nível foi subindo ano a ano, até quase nos afogar.”27 Levi suicidou-se um ano depois.
Só em casos extremos o mundo chega a viver essa espécie de vergonha. Mas sua mera possibilidade lança alguma luz sobre a questão geral que mencionei acima: as fronteiras do ego. Não basta dizer que cada ser humano é constituído por dois corpos (o físico e o social, o visível e o invisível). Talvez seja mais útil considerar o indivíduo como ponto de convergência de muitos conjuntos. Pertencemos simultaneamente a uma espécie (Homo sapiens), a um gênero sexual, a uma comunidade linguística, a uma comunidade política, a uma comunidade profissional, e assim por diante. Ao fim e ao cabo, chegaremos a um conjunto, definido por dez impressões digitais, em que só há um membro: cada um de nós. Definir um indivíduo com base em suas impressões digitais só faz sentido em alguns contextos. Mas um indivíduo não pode ser identificado a seus traços singulares. Se quisermos chegar a entender de maneira mais plena os atos e os pensamentos de um indivíduo, no passado ou no presente, devemos explorar a interação entre os conjuntos, específicos ou genéricos, a que ele ou ela pertence. A emoção da qual parti – a vergonha por alguém que é distinto de nós, a vergonha por algo em que não estamos envolvidos – é uma chave para que repensemos de um ângulo inesperado nossas múltiplas identidades, suas interações e sua unidade.
Notas:
* Este ensaio foi publicado originalmente em um volume em homenagem a Sigrid Weigel, Passionen. Objekte – Schauplätze – Denkstile (Munique, 2010), organizado por Corina Caduff, Anne-Kathrin Reulecke e Ulrike Vedder. Agradeço a Sam Gilbert pelos conselhos linguísticos e a Maria Luisa Catoni pelas sugestões.
1. Eric R. Dodds, The Greeks and the Irrational. Berkeley: University of California Press, 1951; edição italiana: I Greci e l’irrazionale. Introdução de Arnaldo Momigliano. Florença: La Nuova Italia, 1959, pp. 59 e seguintes. [Edição brasileira: Os gregos e o irracional. Trad. Paulo Domenech Oneto. São Paulo: Escuta, 2002.]
2. Ruth Benedict, The Chrysanthemum and the Sword. Patterns of Japanese Culture. Nova York: Houghton Mifflin, 1946; edição italiana: Il crisantemo e la spada. Introdução de Paolo Beonio Brocchieri. Milão: Rizzoli, 1991, cap. X; à p. 244, Benedict diz que a dicotomia é mencionada com frequência em pesquisas de antropologia cultural. [Edição brasileira: O crisântemo e a espada. Trad. Cesar Tozzi. São Paulo: Perspectiva, 1972.]
3. Há uma boa discussão a respeito em Douglas L. Cairns, Aidos. The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature. Oxford: Clarendon Press, 1993, pp. 27-47.
4. Harold W. Glidden, “The Arab World”. The American Journal of Psychiatry, v. 128, n. 8, fev. 1972, pp. 984-988. Atentei para esse artigo a partir da crítica severa a que o submeteu Edward W. Said em Orientalism (Nova York: Pantheon Books, 1978, pp. 48-49). [Edição brasileira: Orientalismo. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.]
5. Bernard Williams, Shame and Necessity. Berkeley: University of California Press, 1993, pp. 16 e 3.
6. Leia-se a conclusão: “Essas são categorias do nosso pensamento moral, não as dos gregos [...]”, in: Douglas L. Cairns, op. cit., p. 434.
7. Bernard Williams, op. cit., pp. 78 e seguintes, 219-223.
8. Ibidem, pp. 219 e seguintes (“Endnote I. Mechanisms of Shame and Guilt”).
9. Segundo a tradução de Frederico Lourenço. [N. do T.]
10. Bernard Williams, op. cit., p. 79.
11. Ibidem, p. 80.
12. Émile Benveniste, Noms d’agent et noms d’action en indo-européen. Paris: Adrien-Maisonneuve, 1948, p. 79. Ver também: Benveniste, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes. I: Économie, parenté, société. Paris: Éditions de Minuit, 1969, pp. 340-341 (a propósito de philia e aidos). Esta obra é mencionada por Douglas L. Cairns, op. cit., a propósito de nemesis e aidos, pp. 51-54. Nem Williams nem Cairns recorreram a Noms d’agent et noms d’action.
13. Bernard Williams, op. cit., p. 83.
14. Douglas L. Cairns, op. cit., p. 14, entre outras passagens.
15. Jean-François Thomas, Déshonneur et honte en latin: étude sémantique. Louvain: Peeters, 2007, pp. 401-439 (a propósito de verecundia).
16. Douglas L. Cairns, op. cit., pp. 12-13.
17. Ibidem, p. 294, nota 100. Ver também Ésquines, Contra Timarco, I, 26.
18. Bernard Williams, op. cit., p. 88, entre outras passagens.
19. Douglas L. Cairns, op. cit., p. 70.
20. Santo Agostinho, On Christian Doctrine. Trad. J. F. Shaw. Chicago: University of Chicago Press, 1996, pp. 744-745 (correspondente a De doctrina christiana, III. X, 16). [Edição brasileira: A doutrina cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002.] Eu analiso essa distinção, de outro ponto de vista, em meu ensaio “The Letter Kills: On Some Implications of 2 Cor. 3,6”. History and Theory, v. 49, n. 1, fev. 2010, pp. 71-89.
21. Santo Agostinho, Confessions and Enchiridion. Trad. Albert C. Outler. Londres: SCM Press, 1955, II, IV, 9 [citado aqui na tradução de Lorenzo Mammì: Confissões. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017)].
22. Jean-François Thomas, op. cit., pp. 179-213 (a propósito de flagitium).
23. Santo Agostinho, op. cit., 1996, pp. 745-746 (De doctrina christiana, III. XII, 18-19).
24. Ibidem, p. 746 (De doctrina christiana, III. XIII, 20).
25. Primo Levi, La Tregua (1963), in: Opere. Edição de M. Belpoliti e introdução de D. Del Giudice. Turim: Einaudi, 1997, v. 1, p. 206. Sou grato a Pier Cesare Bori, que chamou a minha atenção para essa passagem muito tempo atrás.
26. Primo Levi, I sommersi e i salvati (1986), in: Opere, op. cit., v. II, p. 1047.
27. Ibidem, p. 1057: “Il mare di dolore, passato e presente, ci circondava, ed il suo livello è salito di anno in anno fino a quasi sommergerci”.
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