Ana Grondona e Pablo Pryluka
Jacobin
Tradução / Às 21h do dia 27 de outubro, a cidade de Buenos Aires entrou em festa. Para muitos argentinos, que sofreram com os últimos quatro anos do governo neoliberal de Mauricio Macri, chegara a hora de celebrar: Alberto Fernández – advogado, professor universitário, ex-chefe de gabinete de Néstor Kirchner e autoproclamado “liberal de esquerda” – venceu as eleições presidenciais, com Cristina Fernández de Kirchner como vice. Macri se tornou o primeiro presidente da história argentina – ou pelo menos do período democrático – a tentar a reeleição e perder.
Como isso aconteceu? Se olharmos para as promessas grandiosas de campanha de Macri, em 2015 – controle da inflação, abertura do país para o capital estrangeiro, “guerra à pobreza” e fim do déficit fiscal –, o mandato conservador de quatro anos fracassou em praticamente todos os aspectos.
E este fracasso se deu, em grande parte, por causa do já ultrapassado manual da globalização que a administração de Macri fez questão de seguir à risca. Na contramão das diretrizes do Consenso de Washington, o sistema capitalista mundial foi atravessado por protecionismos, nacionalismos reacionários e sucessivas guerras comerciais; o boom das commodities ficou para trás e o crescimento econômico regional entrou em declínio. Macri foi surpreendido por essa nova ordem, trazida por pessoas como Donald Trump e Jair Bolsonaro.
As reformas pró-mercado de Macri não acompanharam o clima econômico global. No final do mandato, seu principal slogan de campanha, “uma chuva de investimentos estrangeiros”, tinha virado piada. Seu discurso antipopulista começou a perder força diante de uma população preocupada com a total deterioração de suas condições materiais.
A lembrança dos bons tempos da “era Kirchner” (2003-15) ainda estava muito viva entre a classe trabalhadora e, no Congresso, a ala kirchnerista se mostrou uma importante frente na luta contra a austeridade de Macri. Apesar das tentativas da mídia de difamar “a constante ameaça populista”, nem o peronismo – corrente política aliada ao kirchnerismo – nem o próprio kirchnerismo abandonaram o cenário político.
No entanto, mesmo com o otimismo gerado pelo retorno de uma coalizão peronista ao poder, as previsões para o futuro da Argentina não são as melhores – além da perspectiva de hiperinflação, herdada de Macri, o contexto global está bastante desfavorável. Ao mesmo tempo que precisa urgentemente atender as reivindicações de redistribuição de renda, o governo Fernández terá que retomar o crescimento econômico sem aumentar a inflação, cujas consequências seriam terríveis para as classes média e trabalhadora.
Outro percalço
Na linha das ditaduras sangrentas, que se espalharam pela região na década de 1970, e depois de uma longa crise financeira, alavancada pela dívida externa de 1982, a América Latina precisou abraçar a globalização como única alternativa para o crescimento econômico. À medida que impunham as reformas pró-mercado, com diminuição de tarifas e livre circulação de capital, os países periféricos eram “convidados”, muitas vezes a contragosto, a entrar para o clube.
Entretanto, a crise financeira mundial de 2008 colocou fim a fantasia de uma nova ordem econômica globalizada; além disso, uma nova onda de governos regionais progressistas já estava começando a trilhar um caminho bem diferente. Como não foi possível reverter a natureza de dependência das economias periféricas, essas novas coalizões progressistas (de centro-esquerda) adotaram políticas de redistribuição de renda, financiadas, em parte, pelo boom das commodities. O resultado, de maneira geral, foi a redução significativa dos níveis de pobreza e desigualdade, embora os indicadores sociais ainda ficassem atrás dos índices da maioria dos países desenvolvidos.
O aumento do padrão de vida na América Latina gerou novas expectativas para o futuro. No entanto, quando estes governos progressistas entraram numa fase de estagnação econômica, as políticas sociais tornam-se problemáticas. Muitos dos beneficiados – em particular a classe média – não conseguiram compreender que suas expectativas de prosperidade estavam diretamente ligadas a décadas de políticas redistributivas.
Esta linha de raciocínio nos faz entender por que 2015, ano em que a “Maré Rosa” dos governos progressistas começou a recuar, foi um divisor de águas. A vitória neoliberal de Mauricio Macri, naquele ano, foi só início. Logo em seguida, vieram a eleição de Pedro Pablo Kuczynski, no Peru, o golpe do impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Jair Bolsonaro, no Brasil, a crise na Venezuela e o retorno de Sebastián Piñera, no Chile.
O despertar de Macri
Mauricio Macri assumiu o cargo em 2015 após vencer o candidato peronista Daniel Scioli no segundo turno das eleições. “Pobreza zero” era o lema de uma administração que se apresentava como a solução para o país, depois de “setenta anos de populismo e má administração”. Mas, em vez de acabar com a pobreza, Macri deixou o cargo em 10 de dezembro com quase 40% da população abaixo da linha da pobreza.
Radicalmente antipopulista (lê-se antiperonista), filho de uma elite financiada pelas principais instituições financeiras do mundo e com diplomas da universidades de Ivy League, Macri tem um apego a essa já ultrapassada visão de livre-mercado globalizado que, particularmente, não condiz com o papel da Argentina na economia mundial.
Para entender o porquê, é importante resgatar um pouco da história recente da Argentina. Após a crise financeira de 2001, o país teve um forte crescimento econômico até 2011. Esse período foi marcado por políticas de redistribuição de renda e aumento significativo do padrão de vida das camadas populares. As três sucessivas administrações kirchneristas geraram um novo padrão de expectativas: crescimento econômico contínuo e bem-estar material tornaram-se, nos anos subsequentes, uma demanda social quase que universal.
Os Kirchners chegaram ao poder em meio a uma enorme crise de legitimidade política – em parte, devido à crise financeira de 2001. Contudo, conseguiram restaurar a fé institucional, estabelecendo as bases para um alto nível de organização política, tanto dentro do governo quanto na sociedade civil. Isso atraiu inúmeras organizações, a maioria de jovens entusiastas reunidos pelo Partido Peronista, um movimento sindical revigorado e uma nova safra de movimentos sociais ligados aos trabalhadores informais, que passaram a marchar junto com Cristina Fernández.
Por isso, nos primeiros anos de seu mandato, Macri se deparou com uma sociedade civil extremamente confiante e organizada e, apesar de implementar a economia de livre-mercado, não conseguiu realizar grandes reformas estruturais, nem reduzir o déficit fiscal – pelo menos até 2018. Mas logo depois ele começaria a cumprir suas promessas e às custas de um grande endividamento: sua administração decidiu fazer um acordo com os credores dos chamados “fundos abutre” – que reivindicam o pagamento integral das dívidas através de novas obrigações e juros altíssimos – e obter créditos de curto prazo para equilibrar os gastos públicos. Entretanto, os credores internacionais, descontentes com o ritmo lento das prometidas reformas econômicas, começaram a perder a paciência; e a Argentina teve que recorrer ao FMI, revertendo a decisão de Kirchner, em 2005, de cortar os laços com a organização.
Ao mesmo tempo que sua política econômica enfrentava um clima global hostil, Macri se viu diante de outra barreira. Os argentinos não estavam dispostos a aceitar um corte no salarial real, mesmo que, segundo porta-vozes do governo, a medida impulsionasse as exportações. O país já havia passado por uma onda de reformas estruturais agressivas na década de 1990 – e testemunhara o colapso em 2001. Os argentinos sabiam que empréstimos do FMI, reforma da previdência e cortes nos salários trariam consequências.
Quando Macri tentou aprovar medidas de austeridade no Congresso ou restringiu as negociações de aumento salarial, as ruas de Buenos Aires foram tomadas por manifestantes. Em 2018, com aumento da crise, um sentimento generalizado de frustração tomou conta da sociedade argentina.
O triunfo da realpolitik
As primárias, em agosto de 2019, foram a primeira prova oficial desse crescente descontentamento. Para a surpresa de muitos, que esperavam um resultado apertado, Alberto Fernández venceu com 47,8% dos votos, enquanto Macri obteve 31,8%. Inicialmente, atribuiu-se o resultado à crise econômica. Mas não há dúvida de que a análise deixou de lado a dimensão política dessa vitória.
A chapa de Fernández e Kirchner (Frente de Todos) foi bem sucedida ao se posicionar como um agregador de diferentes demandas – feminista, trabalhista, esquerdista, assim como interesses da classe média e do empresariado. O recuo da “Maré Rosa” servira de alerta: o momento exigia maturidade, ou seja, tanto kirchneristas quanto rivais precisavam deixar de lado as próprias ambições políticas e apresentar ao eleitorado argentino uma opção viável e progressista. Desta maneira, a chapa Frente de Todos conseguiu reunir o fragmentado Partido Peronista e incorporar outras correntes de centro-esquerda, formando uma coalizão de base ampla com o objetivo de atender também demandas socioculturais específicas.
Veio da própria Cristina Fernández de Kirchner o discurso: para derrotar Macri é preciso deixar as antigas intrigas de lado. A ex-presidente, eleita por duas vezes, liderava as pesquisas, no início de 2019, mas sabia que não seria fácil vencer a batalha; com uma crise econômica iminente, precisaria do apoio da maioria governante e, para isso, teria que formar alianças. Concorrer como vice-presidente ao lado de Alberto Fernández, seu camarada e rival por diversas vezes consecutivas, foi um golpe de mestre: era, definitivamente, a alternativa política mais forte e competitiva.
O que vem pela frente
As eleições gerais de outubro foram um pouco decepcionantes aos que esperavam uma vitória tão estrondosa quanto a das primárias. Embora Fernández tenha obtido número semelhante de votos e conquistado a presidência no primeiro turno, Macri obteve significativos 40,3%. O fato de Macri poder recuperar sua popularidade num momento em que a economia vai de mal a pior é algo preocupante.
Se pensarmos na estagnação econômica promovida pelo seu governo, o desempenho eleitoral de Macri é respeitável. Sua coalizão conservadora seguirá como principal oposição e passará os próximos quatro anos juntando forças na esperança de voltar ao poder. A coalização macrista – Juntos por el câmbio (Juntos pela mudança) – ficará cada vez mais forte. Ao se apresentar como uma novidade, Macri conseguiu formar uma coalizão de centro-direita consistente e inédita; e o mais importante, capaz de competir de igual para igual com o peronismo.
A direita “democrática” e “moderna”, como Macri costuma defini-la, já vinha seguindo uma linha social mais severa e autoritária desde o aprofundamento da crise. O fato de os partidos de extrema-direita (neoliberal e ultraconservador) terem ganho cinco pontos percentuais nesta última eleição mostra uma nova guinada à direita do Juntos por el cambio.
Como em outras partes da América Latina, onde a direita evangélica se fundiu com a agenda neoliberal dominante (o golpe na Bolívia é apenas o exemplo mais recente), a guerra contra a chamada “ideologia de gênero” se tornou o grande passatempo da extrema-direita argentina. Isso explica a evolução política de Macri: se antes ele procurava exibir suas credenciais liberais, promovendo debates sobre aborto no Congresso, agora assume uma posição conservadora e se declara contrário à legalização do aborto.
Sistema bipartidário ou polarização?
O desempenho relativamente positivo do Juntos por el Cambio sugere que a Argentina esteja entrando numa Era de política bipartidária. Do outro lado da mesa, a frente de peronistas e esquerdistas parece também estar em conformidade com a nova ordem; o partido peronista, há muito tempo fragmentado, vem se reunificando como estratégia de oposição a Macri.
Para alguns, isso evidencia um clima de estabilidade política, já outros questionam se não é apenas uma nuvem encobrindo um contexto de polarização e, no caso de outra recessão, alianças políticas podem evaporar e teremos um abalo sísmico como os que acabamos de ver no Chile e no Equador.
Embora, por ora, essa coalizão progressista pareça forte, Alberto Fernández e os líderes associados da Frente para Todos enfrentarão desafios importantes ao assumirem o cargo. Combinar slogans de campanha é fácil, já governar em conjunto é bem mais complicado.
Por outro lado, a histórica polarização argentina (populismo x liberalismo, Kirchner x Macri, peronismo x anti-peronismo) pode não ser um fenômeno totalmente distante do sistema bipartidário. Só o tempo dirá se o eleitorado argentino está se dividindo entre dois projetos políticos opostos – um progressista e outro conservador – ou se o descontentamento generalizado é que está impulsionando uma votação dicotômica.
Para não deixar o barco afundar, vai ser preciso garantir alguma forma de estabilidade econômica. Depois de oito anos de estagnação, os argentinos estão inquietos. Alberto Fernández vai ter que implementar um pacote de redistribuição e, ao mesmo tempo, favorecer as exportações como forma de diminuir a dívida externa.
Na tentativa de equilibrar política e econômica, as negociações salariais são o ponto mais delicado. Um aumento dos salários reais tende a aumentar ainda mais a taxa de inflação e, na Argentina, a hiperinflação é um estigma que carrega o colapso institucional. O objetivo do recém-anunciado “pacto social” de Fernández é reunir industriais, setores da agricultura e sindicatos para tentar chegar num acordo a cerca dos salários e metas de produção – uma medida que vai, provavelmente, incomodar a esquerda dentro e fora da Argentina.
Se isso não der certo, um espiral de hiperinflação pode nos levar a dois cenários: uma migração de eleitores de volta ao projeto neoliberal, de Macri, ou uma revolta generalizada, cujos efeitos políticos são imprevisíveis; o que também seria um teste para estabilidade do sistema bipartidário.
Que setor da sociedade vai pagar pelas tão necessárias medidas de redistribuição é uma pergunta ainda sem resposta, mas de extrema importância para o debate. Cristina Fernández de Kirchner virou inimiga da classe dominante quando, em 2008, aplicou um conjunto de medidas tributárias para controlar a exportação agrícola e diminuir a força política do setor. Essa linha à esquerda consolidou o mito kirchnerista, ainda vivo, mas fechou muitas portas com importantes setores das classes média e dominante.
Enquanto isso, Alberto Fernández vem considerando a possibilidade de “comprar uma briga” com os bancos, há rumores de que pretende aplicar um imposto altíssimo em todo setor financeiro. Bancos e agências financeiras têm uma péssima reputação na Argentina e, ao contrário do que aconteceu no embate de Cristina contra a elite agroexportadora, nenhum o argentino de classe-média vai defender um sistema financeiro parasitário criado para favorecer os ultra-ricos.
Na corda bamba
O governo de Fernández terá que conciliar otimismo popular e diretrizes políticas severas. Diante do intenso caos econômico, a Argentina vem se mostrando um modelo de resiliência, capaz minimizar as tensões de classe e transformar pequenas disputas em reivindicações políticas concretas. Só o tempo dirá se a proximidade do número de votos de Fernández e Macri é uma expressão dessas reivindicações políticas ou sinal de que a sociedade está à beira de um conflito maior, como os observados pela região andina. Como aconteceu no Brasil, com a eleição de Bolsonaro, esse pode ser um terreno fértil para a ascensão da extrema-direita.
Que prognóstico podemos fazer para uma força política como a coalizão Frente de Todos, um partido fundado a partir do legado peronista de justiça social e desenvolvimento periférico? Talvez possamos encontrar pistas e uma boa dose de esperança na nova geração de representantes de esquerda, que Fernández trouxe para o cenário político. O exemplo mais notável é Axel Kicillof.
Kicillof, ex-ministro da economia de Cristina Kirchner, conhecido por seu vasto conhecimento da teoria marxista e keynesiana (sendo comparado ao grego Yanis Varoufakis), se elegeu governador da província de Buenos Aires de forma espetacular: combateu sua oponente macrista, María Eugenia Vidal, cuja campanha espalhava “fake news” e “bots” pelas redes sociais, aos moldes do que fez Bolsonaro, com uma estratégia tradicionalista composta de discussões em fóruns públicos. Na noite em que foi eleito, o ex-presidente equatoriano Rafael Correa se manifestou de forma entusiástica; disse que o carismático ex-líder do movimento estudantil seria o sucessor ideal de Alberto Fernández.
Mas antes que as previsões de Correa possam virar realidade, o recém-eleito governo de Fernández tem que enfrentar a próxima tempestade econômica.
As reformas pró-mercado de Macri não acompanharam o clima econômico global. No final do mandato, seu principal slogan de campanha, “uma chuva de investimentos estrangeiros”, tinha virado piada. Seu discurso antipopulista começou a perder força diante de uma população preocupada com a total deterioração de suas condições materiais.
A lembrança dos bons tempos da “era Kirchner” (2003-15) ainda estava muito viva entre a classe trabalhadora e, no Congresso, a ala kirchnerista se mostrou uma importante frente na luta contra a austeridade de Macri. Apesar das tentativas da mídia de difamar “a constante ameaça populista”, nem o peronismo – corrente política aliada ao kirchnerismo – nem o próprio kirchnerismo abandonaram o cenário político.
No entanto, mesmo com o otimismo gerado pelo retorno de uma coalizão peronista ao poder, as previsões para o futuro da Argentina não são as melhores – além da perspectiva de hiperinflação, herdada de Macri, o contexto global está bastante desfavorável. Ao mesmo tempo que precisa urgentemente atender as reivindicações de redistribuição de renda, o governo Fernández terá que retomar o crescimento econômico sem aumentar a inflação, cujas consequências seriam terríveis para as classes média e trabalhadora.
Outro percalço
Na linha das ditaduras sangrentas, que se espalharam pela região na década de 1970, e depois de uma longa crise financeira, alavancada pela dívida externa de 1982, a América Latina precisou abraçar a globalização como única alternativa para o crescimento econômico. À medida que impunham as reformas pró-mercado, com diminuição de tarifas e livre circulação de capital, os países periféricos eram “convidados”, muitas vezes a contragosto, a entrar para o clube.
Entretanto, a crise financeira mundial de 2008 colocou fim a fantasia de uma nova ordem econômica globalizada; além disso, uma nova onda de governos regionais progressistas já estava começando a trilhar um caminho bem diferente. Como não foi possível reverter a natureza de dependência das economias periféricas, essas novas coalizões progressistas (de centro-esquerda) adotaram políticas de redistribuição de renda, financiadas, em parte, pelo boom das commodities. O resultado, de maneira geral, foi a redução significativa dos níveis de pobreza e desigualdade, embora os indicadores sociais ainda ficassem atrás dos índices da maioria dos países desenvolvidos.
O aumento do padrão de vida na América Latina gerou novas expectativas para o futuro. No entanto, quando estes governos progressistas entraram numa fase de estagnação econômica, as políticas sociais tornam-se problemáticas. Muitos dos beneficiados – em particular a classe média – não conseguiram compreender que suas expectativas de prosperidade estavam diretamente ligadas a décadas de políticas redistributivas.
Esta linha de raciocínio nos faz entender por que 2015, ano em que a “Maré Rosa” dos governos progressistas começou a recuar, foi um divisor de águas. A vitória neoliberal de Mauricio Macri, naquele ano, foi só início. Logo em seguida, vieram a eleição de Pedro Pablo Kuczynski, no Peru, o golpe do impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Jair Bolsonaro, no Brasil, a crise na Venezuela e o retorno de Sebastián Piñera, no Chile.
O despertar de Macri
Mauricio Macri assumiu o cargo em 2015 após vencer o candidato peronista Daniel Scioli no segundo turno das eleições. “Pobreza zero” era o lema de uma administração que se apresentava como a solução para o país, depois de “setenta anos de populismo e má administração”. Mas, em vez de acabar com a pobreza, Macri deixou o cargo em 10 de dezembro com quase 40% da população abaixo da linha da pobreza.
Radicalmente antipopulista (lê-se antiperonista), filho de uma elite financiada pelas principais instituições financeiras do mundo e com diplomas da universidades de Ivy League, Macri tem um apego a essa já ultrapassada visão de livre-mercado globalizado que, particularmente, não condiz com o papel da Argentina na economia mundial.
Para entender o porquê, é importante resgatar um pouco da história recente da Argentina. Após a crise financeira de 2001, o país teve um forte crescimento econômico até 2011. Esse período foi marcado por políticas de redistribuição de renda e aumento significativo do padrão de vida das camadas populares. As três sucessivas administrações kirchneristas geraram um novo padrão de expectativas: crescimento econômico contínuo e bem-estar material tornaram-se, nos anos subsequentes, uma demanda social quase que universal.
Os Kirchners chegaram ao poder em meio a uma enorme crise de legitimidade política – em parte, devido à crise financeira de 2001. Contudo, conseguiram restaurar a fé institucional, estabelecendo as bases para um alto nível de organização política, tanto dentro do governo quanto na sociedade civil. Isso atraiu inúmeras organizações, a maioria de jovens entusiastas reunidos pelo Partido Peronista, um movimento sindical revigorado e uma nova safra de movimentos sociais ligados aos trabalhadores informais, que passaram a marchar junto com Cristina Fernández.
Por isso, nos primeiros anos de seu mandato, Macri se deparou com uma sociedade civil extremamente confiante e organizada e, apesar de implementar a economia de livre-mercado, não conseguiu realizar grandes reformas estruturais, nem reduzir o déficit fiscal – pelo menos até 2018. Mas logo depois ele começaria a cumprir suas promessas e às custas de um grande endividamento: sua administração decidiu fazer um acordo com os credores dos chamados “fundos abutre” – que reivindicam o pagamento integral das dívidas através de novas obrigações e juros altíssimos – e obter créditos de curto prazo para equilibrar os gastos públicos. Entretanto, os credores internacionais, descontentes com o ritmo lento das prometidas reformas econômicas, começaram a perder a paciência; e a Argentina teve que recorrer ao FMI, revertendo a decisão de Kirchner, em 2005, de cortar os laços com a organização.
Ao mesmo tempo que sua política econômica enfrentava um clima global hostil, Macri se viu diante de outra barreira. Os argentinos não estavam dispostos a aceitar um corte no salarial real, mesmo que, segundo porta-vozes do governo, a medida impulsionasse as exportações. O país já havia passado por uma onda de reformas estruturais agressivas na década de 1990 – e testemunhara o colapso em 2001. Os argentinos sabiam que empréstimos do FMI, reforma da previdência e cortes nos salários trariam consequências.
Quando Macri tentou aprovar medidas de austeridade no Congresso ou restringiu as negociações de aumento salarial, as ruas de Buenos Aires foram tomadas por manifestantes. Em 2018, com aumento da crise, um sentimento generalizado de frustração tomou conta da sociedade argentina.
O triunfo da realpolitik
As primárias, em agosto de 2019, foram a primeira prova oficial desse crescente descontentamento. Para a surpresa de muitos, que esperavam um resultado apertado, Alberto Fernández venceu com 47,8% dos votos, enquanto Macri obteve 31,8%. Inicialmente, atribuiu-se o resultado à crise econômica. Mas não há dúvida de que a análise deixou de lado a dimensão política dessa vitória.
A chapa de Fernández e Kirchner (Frente de Todos) foi bem sucedida ao se posicionar como um agregador de diferentes demandas – feminista, trabalhista, esquerdista, assim como interesses da classe média e do empresariado. O recuo da “Maré Rosa” servira de alerta: o momento exigia maturidade, ou seja, tanto kirchneristas quanto rivais precisavam deixar de lado as próprias ambições políticas e apresentar ao eleitorado argentino uma opção viável e progressista. Desta maneira, a chapa Frente de Todos conseguiu reunir o fragmentado Partido Peronista e incorporar outras correntes de centro-esquerda, formando uma coalizão de base ampla com o objetivo de atender também demandas socioculturais específicas.
Veio da própria Cristina Fernández de Kirchner o discurso: para derrotar Macri é preciso deixar as antigas intrigas de lado. A ex-presidente, eleita por duas vezes, liderava as pesquisas, no início de 2019, mas sabia que não seria fácil vencer a batalha; com uma crise econômica iminente, precisaria do apoio da maioria governante e, para isso, teria que formar alianças. Concorrer como vice-presidente ao lado de Alberto Fernández, seu camarada e rival por diversas vezes consecutivas, foi um golpe de mestre: era, definitivamente, a alternativa política mais forte e competitiva.
O que vem pela frente
As eleições gerais de outubro foram um pouco decepcionantes aos que esperavam uma vitória tão estrondosa quanto a das primárias. Embora Fernández tenha obtido número semelhante de votos e conquistado a presidência no primeiro turno, Macri obteve significativos 40,3%. O fato de Macri poder recuperar sua popularidade num momento em que a economia vai de mal a pior é algo preocupante.
Se pensarmos na estagnação econômica promovida pelo seu governo, o desempenho eleitoral de Macri é respeitável. Sua coalizão conservadora seguirá como principal oposição e passará os próximos quatro anos juntando forças na esperança de voltar ao poder. A coalização macrista – Juntos por el câmbio (Juntos pela mudança) – ficará cada vez mais forte. Ao se apresentar como uma novidade, Macri conseguiu formar uma coalizão de centro-direita consistente e inédita; e o mais importante, capaz de competir de igual para igual com o peronismo.
A direita “democrática” e “moderna”, como Macri costuma defini-la, já vinha seguindo uma linha social mais severa e autoritária desde o aprofundamento da crise. O fato de os partidos de extrema-direita (neoliberal e ultraconservador) terem ganho cinco pontos percentuais nesta última eleição mostra uma nova guinada à direita do Juntos por el cambio.
Como em outras partes da América Latina, onde a direita evangélica se fundiu com a agenda neoliberal dominante (o golpe na Bolívia é apenas o exemplo mais recente), a guerra contra a chamada “ideologia de gênero” se tornou o grande passatempo da extrema-direita argentina. Isso explica a evolução política de Macri: se antes ele procurava exibir suas credenciais liberais, promovendo debates sobre aborto no Congresso, agora assume uma posição conservadora e se declara contrário à legalização do aborto.
Sistema bipartidário ou polarização?
O desempenho relativamente positivo do Juntos por el Cambio sugere que a Argentina esteja entrando numa Era de política bipartidária. Do outro lado da mesa, a frente de peronistas e esquerdistas parece também estar em conformidade com a nova ordem; o partido peronista, há muito tempo fragmentado, vem se reunificando como estratégia de oposição a Macri.
Para alguns, isso evidencia um clima de estabilidade política, já outros questionam se não é apenas uma nuvem encobrindo um contexto de polarização e, no caso de outra recessão, alianças políticas podem evaporar e teremos um abalo sísmico como os que acabamos de ver no Chile e no Equador.
Embora, por ora, essa coalizão progressista pareça forte, Alberto Fernández e os líderes associados da Frente para Todos enfrentarão desafios importantes ao assumirem o cargo. Combinar slogans de campanha é fácil, já governar em conjunto é bem mais complicado.
Por outro lado, a histórica polarização argentina (populismo x liberalismo, Kirchner x Macri, peronismo x anti-peronismo) pode não ser um fenômeno totalmente distante do sistema bipartidário. Só o tempo dirá se o eleitorado argentino está se dividindo entre dois projetos políticos opostos – um progressista e outro conservador – ou se o descontentamento generalizado é que está impulsionando uma votação dicotômica.
Para não deixar o barco afundar, vai ser preciso garantir alguma forma de estabilidade econômica. Depois de oito anos de estagnação, os argentinos estão inquietos. Alberto Fernández vai ter que implementar um pacote de redistribuição e, ao mesmo tempo, favorecer as exportações como forma de diminuir a dívida externa.
Na tentativa de equilibrar política e econômica, as negociações salariais são o ponto mais delicado. Um aumento dos salários reais tende a aumentar ainda mais a taxa de inflação e, na Argentina, a hiperinflação é um estigma que carrega o colapso institucional. O objetivo do recém-anunciado “pacto social” de Fernández é reunir industriais, setores da agricultura e sindicatos para tentar chegar num acordo a cerca dos salários e metas de produção – uma medida que vai, provavelmente, incomodar a esquerda dentro e fora da Argentina.
Se isso não der certo, um espiral de hiperinflação pode nos levar a dois cenários: uma migração de eleitores de volta ao projeto neoliberal, de Macri, ou uma revolta generalizada, cujos efeitos políticos são imprevisíveis; o que também seria um teste para estabilidade do sistema bipartidário.
Que setor da sociedade vai pagar pelas tão necessárias medidas de redistribuição é uma pergunta ainda sem resposta, mas de extrema importância para o debate. Cristina Fernández de Kirchner virou inimiga da classe dominante quando, em 2008, aplicou um conjunto de medidas tributárias para controlar a exportação agrícola e diminuir a força política do setor. Essa linha à esquerda consolidou o mito kirchnerista, ainda vivo, mas fechou muitas portas com importantes setores das classes média e dominante.
Enquanto isso, Alberto Fernández vem considerando a possibilidade de “comprar uma briga” com os bancos, há rumores de que pretende aplicar um imposto altíssimo em todo setor financeiro. Bancos e agências financeiras têm uma péssima reputação na Argentina e, ao contrário do que aconteceu no embate de Cristina contra a elite agroexportadora, nenhum o argentino de classe-média vai defender um sistema financeiro parasitário criado para favorecer os ultra-ricos.
Na corda bamba
O governo de Fernández terá que conciliar otimismo popular e diretrizes políticas severas. Diante do intenso caos econômico, a Argentina vem se mostrando um modelo de resiliência, capaz minimizar as tensões de classe e transformar pequenas disputas em reivindicações políticas concretas. Só o tempo dirá se a proximidade do número de votos de Fernández e Macri é uma expressão dessas reivindicações políticas ou sinal de que a sociedade está à beira de um conflito maior, como os observados pela região andina. Como aconteceu no Brasil, com a eleição de Bolsonaro, esse pode ser um terreno fértil para a ascensão da extrema-direita.
Que prognóstico podemos fazer para uma força política como a coalizão Frente de Todos, um partido fundado a partir do legado peronista de justiça social e desenvolvimento periférico? Talvez possamos encontrar pistas e uma boa dose de esperança na nova geração de representantes de esquerda, que Fernández trouxe para o cenário político. O exemplo mais notável é Axel Kicillof.
Kicillof, ex-ministro da economia de Cristina Kirchner, conhecido por seu vasto conhecimento da teoria marxista e keynesiana (sendo comparado ao grego Yanis Varoufakis), se elegeu governador da província de Buenos Aires de forma espetacular: combateu sua oponente macrista, María Eugenia Vidal, cuja campanha espalhava “fake news” e “bots” pelas redes sociais, aos moldes do que fez Bolsonaro, com uma estratégia tradicionalista composta de discussões em fóruns públicos. Na noite em que foi eleito, o ex-presidente equatoriano Rafael Correa se manifestou de forma entusiástica; disse que o carismático ex-líder do movimento estudantil seria o sucessor ideal de Alberto Fernández.
Mas antes que as previsões de Correa possam virar realidade, o recém-eleito governo de Fernández tem que enfrentar a próxima tempestade econômica.
Sobre os autores
Ana Grondona é professora associada de sociologia na Universidade de Buenos Aires e membro do Centro Cultural de Cooperação. Ela tweets em @ Anag78Anitag.
Pablo Pryluka é um candidato a PhD no departamento de história da Universidade de Princeton. Ele tweets em @ppryluka.
Pablo Pryluka é um candidato a PhD no departamento de história da Universidade de Princeton. Ele tweets em @ppryluka.
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