14 de setembro de 2021

Ainda sobre o uso de evidências em políticas públicas

Ignorar dimensão política pode ser tão danoso quanto uso distorcido da ciência

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

Folha de S.Paulo


Os colegas do Insper Marcelo Marchesini da Costa, Laura Muller Machado, Ricardo Paes de Barros e Sandro Cabral criticaram o uso distorcido da ciência neste espaço (“O que são evidências para políticas públicas?” - 22/8). Argumentam, com razão, que se emprega inadvertidamente o rótulo de “evidências” para elementos frágeis como a opinião de especialistas não fundamentada cientificamente, casos anedóticos ou estudos em andamento. É o chamado viés técnico, definido como o uso de evidências que não seguem as melhores práticas científicas.

Embora seja pertinente criticar evocações desqualificadas sobre o uso de evidências, argumentamos que os aspectos relacionados ao contexto de funcionamento das políticas públicas e às escolhas governamentais devem ser considerados. Propomos duas complementações à perspectiva dos colegas do Insper e uma perspectiva adicional.

A primeira complementação é a de que evidências devem ser úteis, lidando com os limites de tempo e com a finalidade de uso na política pública. A melhor evidência não necessariamente é aquela no topo de uma hierarquia de evidências. Em alguns casos, avaliações e revisões sistemáticas são necessárias; em outros, a comparação de práticas internacionais, de indicadores ou o mapeamento de séries históricas são mais adequados.

A segunda complementação é a de que há múltiplas fontes de informação para as políticas públicas, como indicam os primeiros resultados do projeto do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) “O que informa as políticas públicas: uso e não uso de evidências no Brasil”. Ao lado dos estudos científicos, há fontes internas, como leis e normas, registros administrativos, notas técnicas, recomendações de órgãos de controle; fontes externas não científicas, como a opinião dos beneficiários, boas práticas de gestão, deliberações de instâncias participativas; e fontes experienciais, decorrentes da vivência prática dos gestores governamentais. Essas fontes irão mediar a utilização da ciência no dia a dia da ação governamental. Considerá-las é importante para compreender as possibilidades e limites das evidências nas políticas públicas.

A perspectiva adicional para o uso de evidências em políticas públicas é o viés na constituição dos problemas. É necessário reconhecer que soluções baseadas em evidências não se dão apartadas da política. Demandas por políticas públicas são originadas em contextos de disputa, muitas vezes inconciliáveis. Nem todas as questões serão contempladas no processo político de definição do problema a ser enfrentado. O enquadramento dos problemas delimita o escopo das soluções e modifica o universo de escolha das evidências.

Assim, se é verdade que a “política é o espaço para discussão ampla e democrática entre diferentes projetos”, é verdade também que ela está inserida e é indissociável das decisões posteriores nas políticas públicas. Basta pensar nos relevantíssimos “detalhes técnicos” em reformas de qualquer natureza, como a definição de indicadores, alíquotas, linhas de corte para isenções ou benefícios etc. É onde se definem os perdedores e os ganhadores, os priorizados e os preteridos. Longe de serem escolhas meramente técnicas, são definições políticas. Ignorar a natureza política do processo pode torná-lo mais opaco e menos plural, facilitando a atuação dos grupos de interesse.

A pandemia exemplifica a ocorrência das duas perspectivas. A primeira ocorreu na defesa de tratamentos ineficazes baseada em resultados distorcidos de pesquisa ou a partir da opinião de supostos especialistas. A segunda ocorreu na organização da fila da vacinação. Quem deveria vir depois dos públicos prioritários —idosos, profissionais de saúde e pessoas com comorbidade?

Profissionais essenciais, como motoristas de caminhão, de transporte público e vigilantes, além de territórios vulneráveis, não foram, em geral, priorizados. A ausência de discussão sobre esse “detalhe técnico” cobrou vidas adicionais de brasileiros, nos lembrando da importância da dimensão política no debate sobre os possíveis usos de evidências em políticas públicas.

Sobre os autores

Pedro Lucas de Moura Palotti

Natália Massaco Koga

Janine Mello dos Santos

Pesquisadores da Diest/Ipea e e especialistas em políticas públicas e gestão governamental

​Maurício Mota Saboya Pinheiro

Pesquisador da Diest/Ipea e técnico de planejamento e pesquisa

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