Sérgio Abranches
Sociólogo, escritor e analista da rádio CBN. É autor de “Presidencialismo de Coalizão - Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro” e “O Tempo dos Governantes Incidentais” (ambos da Companhia das Letras), entre outros livros
Folha de S.Paulo
[RESUMO] Cientista político avalia que Bolsonaro escolheu um caminho sem volta rumo ao autoritarismo depois de seus discursos de 7 de Setembro. Um amplo consenso democrático é único meio para interromper a escalada golpista, mas as respostas do mundo político se mostram ainda aquém da gravidade do momento.
*
Jair Bolsonaro ultrapassou todos os limites de possibilidade de convivência institucional e democrática. Mostrou que a maioria da sociedade brasileira não lhe interessa —dedica-se exclusivamente ao núcleo duro de seguidores fanatizados, que não é pequeno. Ele pode encher vários quarteirões da avenida Paulista, mas isso não é suficiente para elegê-lo. Adotou uma rota sem retorno rumo ao autoritarismo.
Jair Bolsonaro ultrapassou todos os limites de possibilidade de convivência institucional e democrática. Mostrou que a maioria da sociedade brasileira não lhe interessa —dedica-se exclusivamente ao núcleo duro de seguidores fanatizados, que não é pequeno. Ele pode encher vários quarteirões da avenida Paulista, mas isso não é suficiente para elegê-lo. Adotou uma rota sem retorno rumo ao autoritarismo.
Nos discursos do 7 de Setembro, reforçou que não aceita outro resultado das urnas que não a vitória, como Trump fez nos EUA. Ele trabalha por um golpe híbrido, misturando o padrão mais frequente no século 21, de desmonte por dentro das instituições democráticas usando as próprias regras da democracia, ao padrão clássico de golpe militar, que é o seu modelo mental de intervenção “restauradora” na política.
Cultiva o apoio militar cooptando oficiais e distribuindo privilégios, para a eventualidade de não conseguir a demolição que lhe assegure ficar no poder, mesmo sem apoio na sociedade e na elite política. Neste caso, tropas na rua lhe dariam a força necessária.
O problema é que o processo de ruptura nunca segue caminhos previsíveis e raramente repete padrões. Se não houver forças suficientes para abortá-lo, ele se completa, e o regime democrático é interrompido. Todavia, não há como determinar como, quando e com que consequências isso se dá. São eventos singulares, somente passíveis de análises mais precisas quando examinados retrospectivamente.
No 7 de Setembro, Bolsonaro desenhou uma agenda antidemocrática típica de anarquistas da extrema direita. A liberdade pressuporia reduzir o papel dos freios e contrapesos e de regulação institucional. Sem peias, o povo se relacionaria diretamente com o chefe, sem partidos, Judiciário e voto secreto.
O sistema eleitoral de Bolsonaro é quase uma aclamação popular. A turba grita o nome do governante e o constitui como tal. É um falso libertarianismo, que significa de fato a transferência de todo o poder para o chefe supremo aclamado pela massa abestalhada.
Mais de uma vez, ao ouvir Bolsonaro, me vem à mente o filósofo Thomas Hobbes descrevendo o estado pré-moderno, no qual prevalece o poder privado totalmente livre, desobstruído, natural. Ele descreve esse estado natural como um ambiente desinstitucionalizado, de guerra de todos contra todos.
No entanto, não é o que Hobbes deseja, mesmo defendendo um individualismo possessivo baseado no direito absoluto à propriedade e à liberdade de cada um. Para que o direito de todos seja preservado da tirania, o filósofo propõe mínima institucionalidade, que reputa artificial, mas necessária. E, para garantir essa proteção aos direitos individuais, um sistema básico de freios e contrapesos.
Esse arcabouço mínimo distingue os anarquistas de direita dos liberais. Todo o pensamento político posterior, ainda que veja criticamente a obra de Hobbes, se constrói sobre esse consenso mínimo, de proteção aos direitos individuais e de proteção dessa proteção.
Bolsonaro investe contra a proteção da proteção e atinge os direitos. Se tivesse sucesso, deixaria os indivíduos desprotegidos diante de todo arbítrio. É um absolutista. Não quer instituições nem representação.
Deseja que sua vontade prevaleça suprema sobre qualquer direito e qualquer interesse, ainda que seja o interesse coletivo, de toda a população, como a saúde. Não por acaso, não se contenta com o título de comandante em chefe das Forças Armadas. Assina-se comandante supremo das Forças Armadas.
Bolsonaro é um governante incidental, eleito em uma eleição democrática, porém atípica. É candidato a líder autocrático. O seu comportamento é um exemplo quase de manual da personalidade autoritária, com traços graves de rigidez mental, compulsividade, frieza emocional e narcisismo.
Ele persegue um roteiro composto por um pequeno conjunto de ideias fixas. Não aceita conselhos, nem críticas a esse plano-mestre. Para ele, eleição tem que ter comprovação do teor do voto, contagem pública, com participação irrestrita de “seu povo”.
A visão de que nada deve se opor ao crescimento econômico, como deseja, leva ao negacionismo tudo o que diz respeito à pandemia e ao conflito aberto com governadores e prefeitos.
Desde a campanha, ele estimula o culto à sua personalidade. Apresenta-se como detentor de uma missão divina. É um traço narcísico que cumpre uma função fundamental nos regimes absolutistas, especialmente naqueles de natureza totalitária, como o stalinismo, o nazismo e o fascismo.
O núcleo duro de Bolsonaro cultua o líder, como se dotado de atributos superiores, por isso o chama de “messias”, “mito”, “profeta”. Bolsonaro vive num presente imaginário e sonha com um passado idealizado.
Hannah Arendt examinou a lógica desse fascínio da massa pelo líder supremo em seu livro “As Origens do Totalitarismo”. Ao falar de Hitler e seu proverbial magnetismo, argumenta que esse fascínio se origina na crença fanática do chefe em si mesmo e em suas afirmações pseudofundamentadas sobre tudo que existe sob o sol.
É fácil lembrar a enorme quantidade de afirmações de Bolsonaro, sobre os mais variados temas, nas quais ele se considera uma autoridade incontestável. O mito é obra do mitômano, disseminada pela rede de propaganda e mistificação.
Ele acredita fanaticamente na mentira que construiu sobre si mesmo —e sua certeza convence os incautos. No entanto, apesar de ser fruto da autoilusão do chefe, o fascínio é um fenômeno social, como Hannah Arendt explicou.
Depende não apenas de haver um indivíduo que se apresenta, crente em si, como predestinado, mas da busca de parte da massa por alguém como ele, capaz de cuidar dela, dizer-lhe o que fazer e aonde ir. É o líder que constitui o “povo”, e a “seu povo” diz quais são os problemas e como resolvê-los.
Toda essa armação se sustenta em uma rede de mentiras, difamação e propaganda muito bem-articulada. Bolsonaro é dessa linhagem totalitária —e nos seus discursos o que se encontra é o retrato de um regime no qual o líder supremo nunca é contestado.
Os seguidores que lhe devotam lealdade conquistam benefícios e privilégios que os distinguem dos “outros” e são elevados por ele à condição de “povo brasileiro”. Os “outros” são inimigos do chefe, logo “inimigos do povo” e da pátria.
Foi esse o âmago dos discursos de Bolsonaro no 7 de Setembro, especialmente o da avenida Paulista, no qual afirmou que a decisão do Congresso sobre o voto impresso não valeu.
Anunciou que não obedecerá mais às decisões do ministro do STF Alexandre de Moraes, porque não as considera dentro das “quatro linhas” da sua Constituição. Redefine, dessa forma, o princípio constitucional da separação de Poderes, essencial ao funcionamento de uma República democrática.
Bolsonaro se outorga o direito de interpretar as decisões de acordo com a sua leitura da Constituição e não mais pela dos magistrados da Suprema Corte, que deveriam ter o monopólio e a última palavra no controle de constitucionalidade.
As decisões do ministro Alexandre de Moraes não são pétreas, podem ser revistas, por ele mesmo ou pelo colegiado. O processo judicial prevê o agravo como via legítima para recorrer de qualquer decisão do STF. Certamente, contudo, a avenida Paulista não faz parte do roteiro legal dos recursos.
Bolsonaro segue a Constituição que tem na própria cabeça. Ele já havia dito que o Judiciário não constitui um Poder, mas a Constituição real diz, em seu artigo 2º, que ele é.
Além de mostrar ignorância da Carta que deveria proteger e seguir, desconhece o papel de uma instância contramajoritária como freio e contrapeso aos comportamentos dos Poderes majoritários, Legislativo e Executivo, quando transbordam os limites da Constituição.
A resposta das instituições tem ficado aquém não só das ameaças de Bolsonaro, mas também de seus atos concretos de violação da Constituição e desmonte do aparato de freios e contrapesos e de regulação.
No 7 de Setembro, Bolsonaro queimou pontes. Deixou claro que, para ele, a harmonia entre os Poderes pressupõe a rendição do Supremo Tribunal Federal e do Legislativo à sua vontade. Também disse a seus ministros que não pretende recuar do confronto.
As respostas a ele mudaram de tom. Partidos que antes eram recalcitrantes em relação ao impeachment começaram a discuti-lo em suas reuniões, entre eles o PSDB, o PSD, o MDB e o Solidariedade. O PT ainda não parece ter entendido que, para afastar Bolsonaro, caso não se vote o impeachment a tempo, precisa abrir-se a outras forças e deixar de hostilizá-las porque lhe fizeram oposição no passado. A eleição de 2022 em si está ameaçada.
A interrupção dessa escalada golpista de Bolsonaro pelas instituições, a partir de um amplo e plural consenso democrático, é o único meio capaz de pavimentar o caminho para a normalidade em 2023.
A reação do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ainda ficou aquém da gravidade da crise. Fixou-se no argumento de uma quimérica reconciliação entre Executivo e Judiciário, que se propôs a promover. Esta havia sido a empreitada das semanas que antecederam o 7 de Setembro, na qual se empenharam ele, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, e outras lideranças.
A ilusão de uma reconciliação teve fim no comício do presidente em frente ao Masp. Foi sepultada por seus ultimatos e suas ameaças de descumprimento de decisões judiciais e de não se submeter aos resultados das urnas. O único resultado que ele aceita é a vitória. A vitória ou a morte. A senha para o golpe está dada —parece que só o presidente da Câmara não entendeu.
Pacheco condenou os arroubos autoritários, mas insistiu nas frases sem sujeito. O presidente do STF, Luiz Fux, foi mais claro e direto ao responder aos duros ataques ao tribunal e a seus ministros, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
Fux não falou o nome de Bolsonaro, mas referiu-se sempre à posição institucional que o presidente ocupa e que ele comete crime de responsabilidade ao desobedecer à lei e às decisões judiciais. Presidente do TSE, Barroso rebateu com dureza as mentiras de Bolsonaro e disse que ele ultrapassou o limite do tolerável. No Judiciário, as frase têm sujeito.
Fux mostrou que a solução mais rápida para interromper a marcha da insensatez presidencial seria o impeachment. De fato, o presidente é reincidente em crimes de responsabilidade. Bastaria a Arthur Lira admitir o mais bem-fundamentado.
O poder discricionário do presidente da Câmara no exame de pedidos de impeachment é uma falha institucional no regramento constitucional brasileiro. Dá margem ao uso pessoal desse poder, como fez Eduardo Cunha e, agora, faz Lira.
A reação política negativa, em Brasília, foi muito mais forte que os efeitos das manifestações, frustrando as expectativas de Bolsonaro. O impacto econômico da paralisação dos caminhoneiros por ele convocados tornou-se um estorvo inesperado. Cresceram as pressões pelo impeachment.
Acuado, Bolsonaro se socorreu da ajuda oferecida por Michel Temer e divulgou nota, na qual predominou o espírito do ex-presidente, em que supostamente recua de seus ataques. A insinceridade é evidente e emergirá em uma próxima live do presidente. De toda forma, a parada técnica permitiu ao centrão desaquecer o ambiente. Acalmou —até a próxima investida golpista de Bolsonaro.
Ao centrão, do qual Lira faz parte, interessa um presidente fraco, ameaçado por pedidos de impeachment, arriscando-se a sofrer sanções da Justiça Eleitoral e processos por crime comum no STF. Assim, o presidente tem que pagar pedágio, com recursos fiscais e cargos, para se proteger.
Foi o que aconteceu com Temer, após a gravação de suas conversas com o empresário Joesley Batista, da JBS. Para se livrar dos pedidos de autorização para ser processado, Temer pagou caro e não aprovou mais nada relevante no Congresso.
Um golpe, todavia, não interessa ao centrão. Bolsonaro, com todo o poder concentrado em suas mãos, não precisaria dos políticos. Passaria a distribuir as benesses do poder e os cargos a seu círculo de lealdades e aos militares que o apoiam.
Ditadores interferem na política dos estados e prejudicam o controle desses políticos sobre suas bases. Getúlio Vargas fez assim, e a ditadura militar também. No momento em que a maioria do centrão sentir que a ameaça é iminente, abandonará o presidente à sua própria sorte. Pode ser tarde.
O Brasil vive um paradoxo. Cresce o contingente de pessoas que prefere uma eleição despolarizada, que leve ao poder alguém que tenha compromisso com a restauração plena da democracia e o enfrentamento de nossos graves problemas.
Bolsonaro radicaliza no extremo oposto à direita a esse desejo. Lula poderia ser o condutor dessa ampla aliança, mas tem preferido entrincheirar-se no núcleo petista de apoio, atacar a mesma imprensa que Bolsonaro ataca. Parece se satisfazer com a polarização e a certeza de que sairá vitorioso. Diante das ameaças de Bolsonaro, parece pouco realista.
Em síntese, há eleitores em busca de um candidato que desradicalize a polarização. Não há ainda, contudo, um candidato que convença esses eleitores de que é a pessoa adequada a exercer esse papel. Ciro Gomes (PDT), pelas pesquisas, não parece ter convencido mais do que 15%.
Geralmente, espaços vazios tendem a ser ocupados, tanto na política, quanto no mercado, mas nem sempre em velocidade compatível com a urgência das demandas.
O problema é que o processo de ruptura nunca segue caminhos previsíveis e raramente repete padrões. Se não houver forças suficientes para abortá-lo, ele se completa, e o regime democrático é interrompido. Todavia, não há como determinar como, quando e com que consequências isso se dá. São eventos singulares, somente passíveis de análises mais precisas quando examinados retrospectivamente.
No 7 de Setembro, Bolsonaro desenhou uma agenda antidemocrática típica de anarquistas da extrema direita. A liberdade pressuporia reduzir o papel dos freios e contrapesos e de regulação institucional. Sem peias, o povo se relacionaria diretamente com o chefe, sem partidos, Judiciário e voto secreto.
O sistema eleitoral de Bolsonaro é quase uma aclamação popular. A turba grita o nome do governante e o constitui como tal. É um falso libertarianismo, que significa de fato a transferência de todo o poder para o chefe supremo aclamado pela massa abestalhada.
Mais de uma vez, ao ouvir Bolsonaro, me vem à mente o filósofo Thomas Hobbes descrevendo o estado pré-moderno, no qual prevalece o poder privado totalmente livre, desobstruído, natural. Ele descreve esse estado natural como um ambiente desinstitucionalizado, de guerra de todos contra todos.
No entanto, não é o que Hobbes deseja, mesmo defendendo um individualismo possessivo baseado no direito absoluto à propriedade e à liberdade de cada um. Para que o direito de todos seja preservado da tirania, o filósofo propõe mínima institucionalidade, que reputa artificial, mas necessária. E, para garantir essa proteção aos direitos individuais, um sistema básico de freios e contrapesos.
Esse arcabouço mínimo distingue os anarquistas de direita dos liberais. Todo o pensamento político posterior, ainda que veja criticamente a obra de Hobbes, se constrói sobre esse consenso mínimo, de proteção aos direitos individuais e de proteção dessa proteção.
Bolsonaro investe contra a proteção da proteção e atinge os direitos. Se tivesse sucesso, deixaria os indivíduos desprotegidos diante de todo arbítrio. É um absolutista. Não quer instituições nem representação.
Deseja que sua vontade prevaleça suprema sobre qualquer direito e qualquer interesse, ainda que seja o interesse coletivo, de toda a população, como a saúde. Não por acaso, não se contenta com o título de comandante em chefe das Forças Armadas. Assina-se comandante supremo das Forças Armadas.
Bolsonaro é um governante incidental, eleito em uma eleição democrática, porém atípica. É candidato a líder autocrático. O seu comportamento é um exemplo quase de manual da personalidade autoritária, com traços graves de rigidez mental, compulsividade, frieza emocional e narcisismo.
Ele persegue um roteiro composto por um pequeno conjunto de ideias fixas. Não aceita conselhos, nem críticas a esse plano-mestre. Para ele, eleição tem que ter comprovação do teor do voto, contagem pública, com participação irrestrita de “seu povo”.
A visão de que nada deve se opor ao crescimento econômico, como deseja, leva ao negacionismo tudo o que diz respeito à pandemia e ao conflito aberto com governadores e prefeitos.
Desde a campanha, ele estimula o culto à sua personalidade. Apresenta-se como detentor de uma missão divina. É um traço narcísico que cumpre uma função fundamental nos regimes absolutistas, especialmente naqueles de natureza totalitária, como o stalinismo, o nazismo e o fascismo.
O núcleo duro de Bolsonaro cultua o líder, como se dotado de atributos superiores, por isso o chama de “messias”, “mito”, “profeta”. Bolsonaro vive num presente imaginário e sonha com um passado idealizado.
Hannah Arendt examinou a lógica desse fascínio da massa pelo líder supremo em seu livro “As Origens do Totalitarismo”. Ao falar de Hitler e seu proverbial magnetismo, argumenta que esse fascínio se origina na crença fanática do chefe em si mesmo e em suas afirmações pseudofundamentadas sobre tudo que existe sob o sol.
É fácil lembrar a enorme quantidade de afirmações de Bolsonaro, sobre os mais variados temas, nas quais ele se considera uma autoridade incontestável. O mito é obra do mitômano, disseminada pela rede de propaganda e mistificação.
Ele acredita fanaticamente na mentira que construiu sobre si mesmo —e sua certeza convence os incautos. No entanto, apesar de ser fruto da autoilusão do chefe, o fascínio é um fenômeno social, como Hannah Arendt explicou.
Depende não apenas de haver um indivíduo que se apresenta, crente em si, como predestinado, mas da busca de parte da massa por alguém como ele, capaz de cuidar dela, dizer-lhe o que fazer e aonde ir. É o líder que constitui o “povo”, e a “seu povo” diz quais são os problemas e como resolvê-los.
Toda essa armação se sustenta em uma rede de mentiras, difamação e propaganda muito bem-articulada. Bolsonaro é dessa linhagem totalitária —e nos seus discursos o que se encontra é o retrato de um regime no qual o líder supremo nunca é contestado.
Os seguidores que lhe devotam lealdade conquistam benefícios e privilégios que os distinguem dos “outros” e são elevados por ele à condição de “povo brasileiro”. Os “outros” são inimigos do chefe, logo “inimigos do povo” e da pátria.
Foi esse o âmago dos discursos de Bolsonaro no 7 de Setembro, especialmente o da avenida Paulista, no qual afirmou que a decisão do Congresso sobre o voto impresso não valeu.
Anunciou que não obedecerá mais às decisões do ministro do STF Alexandre de Moraes, porque não as considera dentro das “quatro linhas” da sua Constituição. Redefine, dessa forma, o princípio constitucional da separação de Poderes, essencial ao funcionamento de uma República democrática.
Bolsonaro se outorga o direito de interpretar as decisões de acordo com a sua leitura da Constituição e não mais pela dos magistrados da Suprema Corte, que deveriam ter o monopólio e a última palavra no controle de constitucionalidade.
As decisões do ministro Alexandre de Moraes não são pétreas, podem ser revistas, por ele mesmo ou pelo colegiado. O processo judicial prevê o agravo como via legítima para recorrer de qualquer decisão do STF. Certamente, contudo, a avenida Paulista não faz parte do roteiro legal dos recursos.
Bolsonaro segue a Constituição que tem na própria cabeça. Ele já havia dito que o Judiciário não constitui um Poder, mas a Constituição real diz, em seu artigo 2º, que ele é.
Além de mostrar ignorância da Carta que deveria proteger e seguir, desconhece o papel de uma instância contramajoritária como freio e contrapeso aos comportamentos dos Poderes majoritários, Legislativo e Executivo, quando transbordam os limites da Constituição.
A resposta das instituições tem ficado aquém não só das ameaças de Bolsonaro, mas também de seus atos concretos de violação da Constituição e desmonte do aparato de freios e contrapesos e de regulação.
No 7 de Setembro, Bolsonaro queimou pontes. Deixou claro que, para ele, a harmonia entre os Poderes pressupõe a rendição do Supremo Tribunal Federal e do Legislativo à sua vontade. Também disse a seus ministros que não pretende recuar do confronto.
As respostas a ele mudaram de tom. Partidos que antes eram recalcitrantes em relação ao impeachment começaram a discuti-lo em suas reuniões, entre eles o PSDB, o PSD, o MDB e o Solidariedade. O PT ainda não parece ter entendido que, para afastar Bolsonaro, caso não se vote o impeachment a tempo, precisa abrir-se a outras forças e deixar de hostilizá-las porque lhe fizeram oposição no passado. A eleição de 2022 em si está ameaçada.
A interrupção dessa escalada golpista de Bolsonaro pelas instituições, a partir de um amplo e plural consenso democrático, é o único meio capaz de pavimentar o caminho para a normalidade em 2023.
A reação do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ainda ficou aquém da gravidade da crise. Fixou-se no argumento de uma quimérica reconciliação entre Executivo e Judiciário, que se propôs a promover. Esta havia sido a empreitada das semanas que antecederam o 7 de Setembro, na qual se empenharam ele, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, e outras lideranças.
A ilusão de uma reconciliação teve fim no comício do presidente em frente ao Masp. Foi sepultada por seus ultimatos e suas ameaças de descumprimento de decisões judiciais e de não se submeter aos resultados das urnas. O único resultado que ele aceita é a vitória. A vitória ou a morte. A senha para o golpe está dada —parece que só o presidente da Câmara não entendeu.
Pacheco condenou os arroubos autoritários, mas insistiu nas frases sem sujeito. O presidente do STF, Luiz Fux, foi mais claro e direto ao responder aos duros ataques ao tribunal e a seus ministros, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
Fux não falou o nome de Bolsonaro, mas referiu-se sempre à posição institucional que o presidente ocupa e que ele comete crime de responsabilidade ao desobedecer à lei e às decisões judiciais. Presidente do TSE, Barroso rebateu com dureza as mentiras de Bolsonaro e disse que ele ultrapassou o limite do tolerável. No Judiciário, as frase têm sujeito.
Fux mostrou que a solução mais rápida para interromper a marcha da insensatez presidencial seria o impeachment. De fato, o presidente é reincidente em crimes de responsabilidade. Bastaria a Arthur Lira admitir o mais bem-fundamentado.
O poder discricionário do presidente da Câmara no exame de pedidos de impeachment é uma falha institucional no regramento constitucional brasileiro. Dá margem ao uso pessoal desse poder, como fez Eduardo Cunha e, agora, faz Lira.
A reação política negativa, em Brasília, foi muito mais forte que os efeitos das manifestações, frustrando as expectativas de Bolsonaro. O impacto econômico da paralisação dos caminhoneiros por ele convocados tornou-se um estorvo inesperado. Cresceram as pressões pelo impeachment.
Acuado, Bolsonaro se socorreu da ajuda oferecida por Michel Temer e divulgou nota, na qual predominou o espírito do ex-presidente, em que supostamente recua de seus ataques. A insinceridade é evidente e emergirá em uma próxima live do presidente. De toda forma, a parada técnica permitiu ao centrão desaquecer o ambiente. Acalmou —até a próxima investida golpista de Bolsonaro.
Ao centrão, do qual Lira faz parte, interessa um presidente fraco, ameaçado por pedidos de impeachment, arriscando-se a sofrer sanções da Justiça Eleitoral e processos por crime comum no STF. Assim, o presidente tem que pagar pedágio, com recursos fiscais e cargos, para se proteger.
Foi o que aconteceu com Temer, após a gravação de suas conversas com o empresário Joesley Batista, da JBS. Para se livrar dos pedidos de autorização para ser processado, Temer pagou caro e não aprovou mais nada relevante no Congresso.
Um golpe, todavia, não interessa ao centrão. Bolsonaro, com todo o poder concentrado em suas mãos, não precisaria dos políticos. Passaria a distribuir as benesses do poder e os cargos a seu círculo de lealdades e aos militares que o apoiam.
Ditadores interferem na política dos estados e prejudicam o controle desses políticos sobre suas bases. Getúlio Vargas fez assim, e a ditadura militar também. No momento em que a maioria do centrão sentir que a ameaça é iminente, abandonará o presidente à sua própria sorte. Pode ser tarde.
O Brasil vive um paradoxo. Cresce o contingente de pessoas que prefere uma eleição despolarizada, que leve ao poder alguém que tenha compromisso com a restauração plena da democracia e o enfrentamento de nossos graves problemas.
Bolsonaro radicaliza no extremo oposto à direita a esse desejo. Lula poderia ser o condutor dessa ampla aliança, mas tem preferido entrincheirar-se no núcleo petista de apoio, atacar a mesma imprensa que Bolsonaro ataca. Parece se satisfazer com a polarização e a certeza de que sairá vitorioso. Diante das ameaças de Bolsonaro, parece pouco realista.
Em síntese, há eleitores em busca de um candidato que desradicalize a polarização. Não há ainda, contudo, um candidato que convença esses eleitores de que é a pessoa adequada a exercer esse papel. Ciro Gomes (PDT), pelas pesquisas, não parece ter convencido mais do que 15%.
Geralmente, espaços vazios tendem a ser ocupados, tanto na política, quanto no mercado, mas nem sempre em velocidade compatível com a urgência das demandas.
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