24 de setembro de 2021

Uma Copa do Mundo a cada dois anos seria devastadora para o futebol

Os dirigentes da Fifa, órgão regulador do futebol, estão pedindo que a Copa do Mundo seja realizada a cada dois anos, em vez de quatro. O plano é uma grana nua - e mostra que as autoridades esportivas antidemocráticas sempre colocarão as chances de vender publicidade acima da qualidade do jogo.

Dave Braneck

Jacobin

Cristiano Ronaldo de Portugal sendo marcado por Christopher Martins Pereira e Leandro Barreiro de Luxemburgo durante um jogo das eliminatórias da Copa do Mundo FIFA 2022, que será realizada no Qatar. (Sylvain Lefevre / Getty Images)

Tradução / "Eu recordo que, quando criança, meu sonho era jogar em uma Copa do Mundo. Para todos meus amigos, todos que conheci durante minha vida, esse era o nosso sonho", declarou recentemente o ex-jogador da seleção brasileira Ronaldo. Se existe qualquer um que sabe da importância de uma Copa, é ele. Ele jogou em quatro delas – levantando o troféu em duas delas, enquanto se estabelecia como um dos jogadores mais icônicos do esporte durante a virada do milênio.

Respondendo às sugestões de que o torneio deveria acontecer o dobro de vezes, Ronaldo continua ”Com esta mudança, mais e mais pessoas poderão transformar este sonho em realidade”. Tudo que o mundo precisa é de mais Copas e o mundo será agraciado com outros Ronaldos? Ele não pareceu preocupado como exatamente mais torneios como este ajudariam mais jogadores a alcançar seus sonhos – ou simplesmente ver os mesmos jogadores dos países habituais que já se classificam, agora com mais frequência.

Não considerar isso seria compreensível se Ronaldo estivesse apenas pensando em voz alta sobre como realizar sonhos. No entanto, na verdade, ele estava avaliando o que poderia ser uma batalha decisiva para o futuro do esporte.

A FIFA, órgão que governa o futebol internacional, realiza atualmente um estudo de viabilidade sobre a realização da Copa do Mundo a cada dois anos, ao invés do intervalo atual de quatro. A princípio, isso pode parecer uma tentativa benéfica, embora equivocada, de dar aos fãs mais do que eles amam e democratizar a participação. Mas, como a maioria dos órgãos governamentais esportivos no capitalismo, a FIFA tem apenas uma coisa em mente: lucro. Se aprofundarmos a análise, veremos que isso não é apenas uma ideia idiota, mas o último subterfúgio na guerra de classes em que as maiores organizações e clubes de futebol travam há anos contra torcedores, jogadores e funcionários.

Neste sentido, isso também indica um aprofundamento do apodrecimento no esporte: os “vampiros” interessados no futebol o veem apenas como um produto que pode ser espremido para retirar todo lucro possível, mesmo que isso seja extremamente impopular ou prejudique a qualidade do próprio jogo. E mais importante que isso, essa visão do jogo fundamentalmente não compreende o fato de que os jogadores não são somente estrelas que podem ser usados para vender camisas e promover produtos – eles são trabalhadores cujo trabalho torna tudo isso possível.

Duas vezes mais, o dobro da diversão?

Você não precisa ser um anticapitalista ferrenho para ser contra a estratégia da FIFA de realizar tanto a Copa do Mundo masculina quanto a feminina a cada dois anos. Muito da magia da Copa do Mundo está em ser um evento raro e sísmico. A espera de quatro anos para cada torneio pode ser agonizante, mas isso torna cada jogo mais significativo – tornando cada Copa do Mundo uma marca inigualável de um momento específico na vida dos torcedores. Jogadores sonham em alcançar o maior palco do mundo porque sabem que suas chances de aparecer nele – quanto mais de vencer – são limitadas a raras oportunidades.

Em sua última edição, mais da metade do planeta acompanhou os jogos – com mais de 1 bilhão de espectadores assistindo a final. Então, com a FIFA decidindo dobrar a frequência do torneio, poderia hipoteticamente ajudar a dobrar o prazer que traz a Copa do Mundo. Ou poderia arruinar o evento esportivo mais prestigiado e popular na Terra?

Quando o lendário técnico do Arsenal Arsène Wenger, agora chefe de desenvolvimento global da FIFA, pressionou pela primeira vez por uma Copa do Mundo bienal em março do ano passado, ele citou a importância de uma competição significativa, dizendo “as pessoas precisam entender o que está em jogo e apenas ter jogos importantes”. É difícil de compreender como a concepção de Wenger, oficialmente proposta pela Arábia Saudita em maio, atingiria esse objetivo, ao invés de simplesmente diluir seu significado.

O montante de jogos oferecidos atualmente já é esmagador, desde competições de clubes nacionais e internacionais até torneios regionais cada vez maiores e torneios internacionais de seleções.

Normalmente um marco do fim de cada temporada (embora raramente seja o último jogo), a final da Liga dos Campeões de 2021 caiu em 29 de maio. Menos de duas semanas depois, a Eurocopa havia começado (além de outros torneios internacionais em outros continentes). A Itália conquistou o título da Eurocopa em 11 de julho. A maioria dos times da liga inglesa já haviam começado sua pré-temporada, e as maiores ligas do mundo deram aos torcedores um intervalo enorme de quatro semanas de respiro (mesmo que esse espaço tenha sido preenchido com jogos amistosos) antes da temporada 2021/2022 da Premier League começar com a humilhante derrota do Arsenal para o mais novo time da primeira divisão, Brentford.

O futebol simplesmente não tem intervalo e os torcedores não clamam por mais jogos. Se eles conseguem evitar a exaustão por tempo suficiente para clamar por qualquer coisa, eles tendem a clamar por uma pausa. De acordo com o CIES Football Observatory, a maioria dos torcedores acha que há muitos jogos, principalmente entre seleções. Os fãs não estão apenas cansados ​​de todos os jogos. Pelo contrário, muitos já deixaram claro o quanto são contrários à ideia de uma Copa a cada dois anos.

Lucrando com o jogo por todo o mundo

Ofato de a FIFA estar agindo diretamente em desacordo com os torcedores que tornam o futebol possível está perfeitamente alinhado com a forma como ela e outras partes interessadas veem o esporte. Aos seus olhos, o futebol existe somente para encher os bolsos de seus organizadores, geralmente extorquindo os fãs. Isso corresponde há décadas de comercialização escancarada do futebol mundial, uma guerra pelo futuro do esporte travada e amplamente vencida por instituições antidemocráticas como a FIFA e a União das Associações Europeias de Futebol (UEFA).

Espremendo qualquer possibilidade de lucro que saia deste jogo não é um fenômeno recente, muito menos limitado ao futebol internacional. Os torcedores acabaram de se recuperar da tentativa insensível e ridiculamente executada dos maiores clubes da Europa de formar sua própria Superliga Europeia; agora, eles têm que aceitar a última tentativa da FIFA de reordenar o futebol para gerar mais lucro.

Se a FIFA fosse motivada pelo interesse dos torcedores, nunca teria se incomodado com um estudo de viabilidade em primeiro lugar, dado o quão impopular o plano provou ser. A FIFA se preocupa com a renda acima de qualquer coisa. E dado que 95% dos US$ 5.6 bilhões acumulados de 2015 até 2018 foram gerados pela Copa de 2018. Não é surpresa que a FIFA comece a pensar que dobrar o número de torneios seja uma boa ideia.

O desdém dos fãs por esta proposta não será o suficiente para impedir a FIFA ou que várias estrelas aposentadas como Ronaldo de se expressarem favoráveis a ideia – quase todos os quais permanecem ligados à organização ou se beneficiam indiretamente do plano.

Depois de décadas de subornos e direitos de transmissão de torneios comprados abertamente, a FIFA se tornou sinônimo de corrupção – e mostrou uma resistência impressionante a qualquer reforma ou melhoria significativa. O futebol como a própria organização já levou diretores à prisão. A Copa do Mundo de 2022 no Catar foi a culminação de uma década de lavagem esportiva na ditadura do Golfo – e demonstrou o quão longe a FIFA irá para proteger sua vaca leiteira.

Conceder o torneio ao Catar (nada surpreendente, com base em propina e não em suas tradições futebolísticas nulas ou status como uma escolha lógica para o anfitrião) desencadeou uma explosão no mercado de construções, dependente de migrantes trabalhando em condições abomináveis. Mais de 6.500 trabalhadores morreram desde que o Catar foi escolhido como sede há mais de dez anos, incluindo 37 trabalhadores diretamente envolvidos na construção de estádios para o torneio.

O elenco da seleção alemã vestiu camisetas para demonstrar o apoio aos direitos humanos, chamando atenção a abusos de direitos trabalhistas no Catar, seleção que sediou a Copa em 2022 (@DFB_Team_EN / Twitter)

A resposta da FIFA para esta tragédia tem sido uma indiferença devastadora. A decisão pelo Catar como sede foi, aparentemente, grande demais para encontrar outro anfitrião só porque o torneio foi construído sobre os túmulos de milhares de trabalhadores. E enquanto protestos tanto de fãs e jogadores contra a Copa cresciam, ficou claro que a FIFA não teve nenhum interesse em mudar de posição.

Os jogadores também são trabalhadores

Aaposta da FIFA não está apenas enraizada em seu papel na comercialização do futebol – só é possível devido à recusa da organização em reconhecer que, em última análise, os jogadores que ajudam a obter lucros são trabalhadores. Claro, pode ser difícil reconhecer que jogadores de futebol estejam trabalhando por causa de seus elevados ganhos, especialmente dado que muitos são alguns dos mais ricos e famosos atletas do mundo. Mas sem eles, não haveria Copa do Mundo para capitalizar.

E refletindo que o grande negócio do futebol é dependente de seus jogadores, nem todo jogador é Leonel Messi. Mesmo em um torneio prestigiado como a Copa do Mundo, muitos participantes representam nações menores em termos futebolísticos, operam seu negócio entre clubes mais pobres e preenchem a independência financeira dos maiores nomes do esporte. E sejam eles super-estrelas ou não, esses jogadores merecem uma pausa, para não serem forçados a se preparar para torneios cada vez mais frequentes durante o que deveria ser o período entre temporadas.

A FIFA e outros interessados pelos jogadores, que tem uma visão deles como mero capital, foram expostos durante a pandemia. Em muitos países, o futebol foi uma das primeiras atividades a retornar após um período inicial de lockdowns em 2020, mesmo antes de ficar claro quando seria seguro ou não. Enquanto as competições domésticas continuaram, reclamando da que na receitas da TV, até as competições internacionais voltaram rapidamente em meio ao surto global. Não importa como, o show tem que continuar.

Jogadores – assim como técnicos, auxiliares e equipe técnica que fazem o jogo e sua transmissão possível – seguiram enquanto o mundo desmoronava ao seu redor, mesmo que muitos se sentissem desconfortáveis com isso. De acordo com a associação internacional de jogadores FIFPRO, a pandemia potencializou o congestionamento de jogos. Isso não se limitou às ligas mais ricas do mundo, ocorreu da base até o topo da pirâmide e levou a terríveis exemplos, como o time da segunda divisão alemã Dynamo Dresden tendo que jogar nove jogos no intervalo de 29 dias para terminar a temporada após o fim da quarentena ser interrompida.

Mesmo sem a COVID-19, jogadores de futebol já esperam jogar um calendário numeroso de jogos. Se é muita coisa para os fãs, certamente é muito para os jogadores. O meio campista da Espanha e do Barcelona Pedro González López, conhecido como Pedri, jogou incríveis setenta e dois jogos pelo clube e seleção na temporada 2020/21. Mesmo a FIFA reconhecendo que isso é um problema. Mudar para uma Copa do Mundo bienal visa ostensivamente aliviar o congestionamento de jogos: o plano de Wenger envolve menos intervalos internacionais, embora mais longos, e removeria partidas desnecessárias ou não competitivas.

Parece improvável que isso realmente reduza o número de jogos internacionais sendo disputados, especialmente porque a FIFA não tem solução para o que acontecerá com torneios continentais imensamente apreciado, normalmente quadrienais com suas eliminatórias, se a Copa do Mundo ocorrer a cada dois anos. É apenas uma tentativa descarada de aumentar a receita gerada que também diminuiria a importância de um torneio extremamente popular.

Ao invés de ser uma solução, tornaria tudo pior. Mas ainda assim, a FIFA está feliz em permitir que a qualidade do esporte sofra se isso puder permitir que algumas pessoas fiquem mais ricas, como quando expande torneios sob o pretexto de “democratizar” o esporte apenas para gerar mais lucrativas transmissões para uma maior base de regiões participantes. Novamente, se a FIFA se importasse com a preservação da qualidade do futebol, nós não deveríamos estar prestes a presenciar a Copa do Mundo de 2026 com uma expansão de 32 para 48 nações participantes.

Ao invés de abordar as desigualdades gritantes de recursos entre as seleções – ou fazer qualquer coisa para contenção de um sistema de clubes quebrado que vê jogadores talentosos e quase todo dinheiro canalizado para apenas algumas ligas na Europa – a solução da FIFA é simplesmente realizar mais partidas e deixar que os problemas se resolvam sozinhos.

Confrontando a investida da FIFA

Reconhecidamente, a resposta inicial à proposta da FIFA tem sido massivamente negativa. E embora ainda não tenha cedido, a FIFA enfrenta forte resistência. Grandes ligas ao redor do mundo têm se posicionado contrárias a esse movimento, enquanto o presidente da UEFA Aleksander Čeferin expressou “preocupações graves” sobre a iniciativa. Vale a pena notar que tanto a UEFA, ao lado de outros grupos associativos, provavelmente estão mais preocupados com a pressão que as Copas do Mundo bienais colocariam em torneios continentais como a Eurocopa do que com a santidade do esporte.

Tendo em mente que muitos fãs são contra a proposta, a resposta mais clara veio de outros interessados, impacientes em manter sua fatia a nlucratividade do futebol ou fazer o possível para manter o já frágil equilíbrio entre as competições domésticas e internacionais. A rápida rejeição da Superliga Europeia demonstra a importância dos torcedores – e a pressão que colocam em clubes e confederações – em fiscalizar organizações como a FIFA quando elas apenas tem como objetivo aumentar seus lucros.

No entanto, existem alguns sinais promissores. Football Supporters Europe, uma rede independente de torcedores ao redor da Europa, recentemente soltou uma nota apoiada por fãs do mundo todo contra a ideia de Copa a cada dois anos. Ações como essa serão extremamente necessárias para manter a beleza da Copa do Mundo, o grandioso espetáculo que os fãs conhecem e amam. Uma organização de suporte adicional é igualmente necessária se houver alguma chance de reverter anos de mercantilização. Isso significa garantir que aqueles que tornam o esporte mais popular do mundo o que ele é – os torcedores que lotam os estádios, os jogadores que entram em campo e os trabalhadores que tornam tudo isso possível – possam opinar sobre sua direção futura.

Desistir da proposta cínica de organizar uma Copa do Mundo a cada dois anos e encontrar uma solução real para o excessivo número de jogos seria um bom começo.

Colaborador

Dave Braneck é jornalista em Berlim, cobrindo esportes e política.

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