1 de agosto de 2019

A grama do vizinho

Se o Fed pode ter sido cauteloso com os EUA em pleno emprego, o que dizer de nosso BC

Laura Carvalho


A retaliação aos EUA veio após os americanos elevarem, de 10% para 25%, as tarifas contra US$ 200 bilhões (R$ 791,4 bilhões) em produtos chineses, decisão tomada na segunda semana de maio. Andy Wong/AFP

Em um movimento que não ocorria desde a crise de 2008, o banco central norte-americano, o Fed, reduziu sua taxa básica de juros em 0,25 ponto percentual nesta quarta (31). Os dois votos contrários, dos presidentes do Fed de Boston e de Kansas City, ressaltaram o aspecto que, sem dúvida, é o mais surpreendente da decisão: a taxa de desemprego nos EUA encontra-se em seu patamar mais baixo dos últimos 50 anos.

Ao questionar o presidente do Fed, Jerome Powell, no Congresso americano no dia 10, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), do Partido Democrata, já havia alertado para a quebra de uma das principais relações teóricas da macroeconomia convencional, que serve como base para a atuação da política monetária ao redor do mundo: a curva de Phillips.

A curva, cujo nome deriva da evidência apresentada pelo economista William Phillips de uma relação negativa entre desemprego e inflação na economia britânica entre 1861 e 1957, ganhou versões distintas, entre as quais a desenvolvida por Milton Friedman e Edmund Phelps em 1968.

Nascem daí os conceitos de taxa natural de desemprego e Nairu —a taxa de desemprego não aceleradora da inflação ("Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment").

Em outras palavras, existiria um valor específico para a taxa de desemprego que seria sustentável do ponto de vista do controle inflacionário: se o banco central reduzisse demais a taxa de juros, deixando o desemprego cair para abaixo da Nairu, a inflação subiria.

No entanto, como apontou AOC, as estimativas do Fed para a Nairu eram de 5,4% em 2014. Desde então, o desemprego observado já caiu três pontos percentuais, chegando aos atuais 3,7%, sem provocar nenhum aumento na inflação. Além disso, o baixíssimo desemprego tem se revelado fundamental para garantir algum crescimento dos salários na base da pirâmide —o que não ocorria havia várias décadas, como mostrou reportagem da Folha na segunda (29).

Diversos economistas já haviam apontado que a economia norte-americana poderia operar a uma taxa de desemprego bem mais baixa sem gerar inflação e que uma elevação precipitada da taxa de juros pelo banco central impediria, na prática, o aumento da parcela de salários na renda —com efeitos deletérios sobre a desigualdade.

O ex-economista-chefe do FMI Olivier Blanchard ressaltou um elemento que parece estar na essência do que hoje ocorre na economia norte-americana: mesmo que os salários cresçam mais rápido pelo desemprego menor, as margens de lucro não são necessariamente estáveis. Ou seja, a concorrência pode forçar os empresários a não repassar os custos maiores com a mão de obra para os preços.

Enquanto isso, no Brasil, a leve queda no desemprego entre abril e junho revelada pelo IBGE nesta quarta-feira mostrou-se insuficiente até mesmo para puxar algum crescimento de salários: a renda média real do trabalhador caiu 0,2% em relação ao segundo trimestre do ano passado.

Mesmo diante de uma economia próxima do pleno emprego, a estabilidade da inflação mostra que o banco central norte-americano pode ter sido cauteloso demais ao elevar sua taxa de juros oito vezes entre dezembro de 2016 e dezembro de 2018.

O que dizer então, do nosso Copom, que, em meio ao desemprego elevado, à estagnação da economia, às crescentes desigualdades salariais e às expectativas de inflação abaixo do centro da meta, esperou até esta quarta-feira (31) para reduzir a taxa Selic em 0,5 ponto percentual, para 6% ao ano?

Sobre a autora

Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".

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