Benjamin Y. Fong
Jeremy Cohan
Moishe Postone
Pelas nossas costas, Parte Um
Uma entrevista com Moishe Postone sobre "Eu, Cultura e Sociedade" e o valor dos requisitos gerais de educação.
Tradução / Moishe Postone, que foi Professor Emérito Thomas E. Donnelley de História Moderna e do Centro de Estudos Judaicos da University of Chicago, faleceu em março de 2018, após uma longa batalha contra o câncer. Editor fundador da revista Critical historical studies, tornou-se mais conhecido por sua importante e nova interpretação de Marx em Tempo, trabalho e dominação social. Sua morte é uma grande perda; sentiremos profundamente a ausência de seu espírito e de sua pessoa.
Na primavera de 2015, encontramo-nos com o professor Postone para conversar sobre tudo, menos sobre Marx. Nossa conversa se concentrou em autores lidos no Ciclo Básico de Ciências Sociais (CBCS) que ministrou de 1990 a 2016, intitulado “Indivíduo, Cultura e Sociedade”. O professor Postone constituiu a maior influência formativa no currículo “Indivíduo, Cultura e Sociedade” durante seu período como titular, e advogou intensamente pelos conhecimentos das Humanidades.
Todos os graduandos da University of Chicago devem cursar um ano de CBCS. "Indivíduo, Cultura e Sociedade" (apelidado "Indivíduo") é um dos três ciclos mais populares de CBCS da universidade; os outros - "Clássicos do Pensamento Social e Político" ("Clássicos") e "Poder, Identidade e Resistência" ("Poder") serão mencionados abaixo. A bibliografia para "Indivíduo, Cultura e Sociedade", por volta de 2015, era a seguinte:
O quadrimestre de outono (Sociedade)
• A riqueza das nações (Adam Smith)
• O capital e outros textos (Karl Marx)
• A ética protestante e o espírito do capitalismo (Max Weber)
O quadrimestre de inverno (Cultura)
• As formas elementares da vida religiosa (Émile Durkheim)
• A riqueza das nações (Adam Smith)
• O capital e outros textos (Karl Marx)
• A ética protestante e o espírito do capitalismo (Max Weber)
O quadrimestre de inverno (Cultura)
• As formas elementares da vida religiosa (Émile Durkheim)
• O Pensamento selvagem (Claude Lévi-Strauss)
• Metáforas históricas e realidades míticas (Marshall Sahlins)
• Vigiar e punir (Michel Foucault)
• "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” (Walter Benjamin)
• "O fetichismo na música e a regressão da audição" (Theodor Adorno)
O quadrimestre da primavera (Indivíduo)
• Conferências introdutórias sobre psicanálise (Sigmund Freud)
• Eros e civilização (Herbert Marcuse)
• O segundo sexo (Simone de Beauvoir)
• Pele negra, máscaras brancas (Frantz Fanon)
A História do Núcleo de Ciências Sociais e o Valor dos Requisitos Educacionais Gerais
Benjamin Y. Fong
Queremos começar pedindo que fale um pouco sobre a história do Ciclo Básico - sobretudo do CBCS -, seu envolvimento nisso, quando começou e algumas mudanças institucionais ou outras que pôde ver ao longo dos anos.
Sei muito vagamente sobre a pré-história deste curso. Havia três anos de CBCS obrigatórios e no fim de cada ano prestava-se uma grande prova de 6 a 9 horas de duração. Em abril, começava-se a rever tudo e de repente via-se sob perspectiva muito diferente aquilo que se pensava havia sido entendido em outubro e novembro. Acho que isso foi muito útil. Outra coisa útil foi que nada do que você teria feito durante o ano contava. Você escrevia artigos e realizava uma prova no fim da cada quadrimestre, mas eles eram apenas um termômetro para que você soubesse como estava indo. A vantagem é que se você ficasse deprimido por algumas semanas ou estivesse escrevendo sua monografia aquilo não te derrubava. Poderia se recuperar. A desvantagem é que abril e maio são épocas de alta ingestão de dexedrina e metedrina. Mas na época em que estava na faculdade [como aluno], havia dois anos de CBCS. O primeiro ano era mais ou menos “Clássicos do Pensamento Social e Político”. (Havia ainda uma eletiva, que era “Documentos da História Americana”.) E o segundo ano era “Indivíduo, Cultura e Sociedade”, que era uma espécie de estado-da-arte da teoria. Quando comecei a lecionar no CBCS em 1987, havia apenas um ano obrigatório; e então você tinha as eletivas. Não havia o costume das eletivas. A faculdade era muito menor e mais seletiva. Eles hoje se vangloriam de aceitar apenas 7% dos candidatos, enquanto na geração passada eram 40%. Mas eram os 40% que realmente queriam estar ali, e era um lugar de ponta, de vanguarda. Não é mais assim.
Benjamin Y. Fong
Então “Poder, Identidade e Resistência” e “Clássicos do Pensamento Social e Político”, enquanto ciclos distintos de CBCS, formaram-se quando houve a compressão para um ano? MP: Sim. Mas “Poder” não existia. Havia somente “Clássicos” e “Indivíduo”. Havia faculdades nos 1980 que sugeriam que todos ensinassem um módulo sobre o que quisessem; e o conseguissem. Pode imaginar o quão caótico isso foi. Aquela aglomeração ficou conhecida como “o estado de natureza”. Depois de um tempo, os reitores decidiram drenar o estado de natureza, e implementaram um curso coordenado por Don Levine, um sociólogo (com, vamos dizer, uma queda para a direita), curso este chamado “Riqueza, Poder e Virtude”. Não sei exatamente como Don se perdeu no conservadorismo. Depois se tornou “Poder”. Um rapaz, em “Poder”, na verdade como uma manobra de marketing, adicionou “Identidade e Resistência”. Não há nada de identidade neste curso. É poder de cima a baixo. “Indivíduo, Cultura e Sociedade” era mais ou menos o mesmo de agora. O quadrimestre de inverno costumava ser a apoteose de Claude Lévi-Strauss. Tudo levava a ele. Então você lia muito Durkheim, lia Saussure e a Interpretação dos sonhos de Freud. E tudo isso desembocava na última aula, que era sobre Lévi-Strauss.
Jeremy Cohan
Era assim por causa da influência de Lévi-Strauss na University of Chicago?
Sim, os antropólogos que a criaram eram, em sua maioria, estruturalistas. E pensavam que a universidade era a última palavra na ciência. Nós respeitosamente não concordávamos. Havia outras coisas que objetava naquela época: uma tarefa comum no quadrimestre da primavera era que os estudantes deveriam interpretar um sonho deles. Não acho que isto seja um assunto para um artigo. Isto para mim transgredia certo limite entre o pessoal e o pedagógico.
Benjamin Y. Fong
• Metáforas históricas e realidades míticas (Marshall Sahlins)
• Vigiar e punir (Michel Foucault)
• "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” (Walter Benjamin)
• "O fetichismo na música e a regressão da audição" (Theodor Adorno)
O quadrimestre da primavera (Indivíduo)
• Conferências introdutórias sobre psicanálise (Sigmund Freud)
• Eros e civilização (Herbert Marcuse)
• O segundo sexo (Simone de Beauvoir)
• Pele negra, máscaras brancas (Frantz Fanon)
A História do Núcleo de Ciências Sociais e o Valor dos Requisitos Educacionais Gerais
Benjamin Y. Fong
Queremos começar pedindo que fale um pouco sobre a história do Ciclo Básico - sobretudo do CBCS -, seu envolvimento nisso, quando começou e algumas mudanças institucionais ou outras que pôde ver ao longo dos anos.
Moishe Postone
Benjamin Y. Fong
Então “Poder, Identidade e Resistência” e “Clássicos do Pensamento Social e Político”, enquanto ciclos distintos de CBCS, formaram-se quando houve a compressão para um ano? MP: Sim. Mas “Poder” não existia. Havia somente “Clássicos” e “Indivíduo”. Havia faculdades nos 1980 que sugeriam que todos ensinassem um módulo sobre o que quisessem; e o conseguissem. Pode imaginar o quão caótico isso foi. Aquela aglomeração ficou conhecida como “o estado de natureza”. Depois de um tempo, os reitores decidiram drenar o estado de natureza, e implementaram um curso coordenado por Don Levine, um sociólogo (com, vamos dizer, uma queda para a direita), curso este chamado “Riqueza, Poder e Virtude”. Não sei exatamente como Don se perdeu no conservadorismo. Depois se tornou “Poder”. Um rapaz, em “Poder”, na verdade como uma manobra de marketing, adicionou “Identidade e Resistência”. Não há nada de identidade neste curso. É poder de cima a baixo. “Indivíduo, Cultura e Sociedade” era mais ou menos o mesmo de agora. O quadrimestre de inverno costumava ser a apoteose de Claude Lévi-Strauss. Tudo levava a ele. Então você lia muito Durkheim, lia Saussure e a Interpretação dos sonhos de Freud. E tudo isso desembocava na última aula, que era sobre Lévi-Strauss.
Jeremy Cohan
Era assim por causa da influência de Lévi-Strauss na University of Chicago?
Moishe Postone
Sim, os antropólogos que a criaram eram, em sua maioria, estruturalistas. E pensavam que a universidade era a última palavra na ciência. Nós respeitosamente não concordávamos. Havia outras coisas que objetava naquela época: uma tarefa comum no quadrimestre da primavera era que os estudantes deveriam interpretar um sonho deles. Não acho que isto seja um assunto para um artigo. Isto para mim transgredia certo limite entre o pessoal e o pedagógico.
Benjamin Y. Fong
Então em 1987 você assumiu o CBCS...
Jeremy Cohan
Moishe Postone
Foi quando comecei a lecioná-lo. Assumi por volta de 1990. Hoje, 25 anos mais tarde, estou um pouco preocupado com o curso. Penso que a universidade perdeu um senso de centralidade das Humanidades, em troca de coisas que são indiscerníveis de outras universidades. Você sabe, “Uchicago”, onde você via camisas escrito “Onde a diversão morre”. Quando era estudante, em uma era geológica antiga, havia muita diversão, mas não havia fraternidades ou sororidades. Havia grupos, muitos grupos, grupos de jazz e de blues, e havia muitos moradores próximos que eram um tanto boêmios. Então era talvez a única área semiboêmia entre Greenwich Village e North Beach. Você via pessoas precoces em suas carreiras em Hyde Park. Sabe como é, Second City, Mike Nichols etc. Mas Bob Dylan também estava aqui antes de ir para Greenwich Village. Que imbecil que ele era. Todos pensávamos: “não vai conseguir nada”. Ele era só um péssimo imitador de Woody Guthrie. Quando ele começou, havia vários guardiões da chama. Havia os jovens comunistas, para quem a música folk significava algo muito especial: Woody Guthrie. Comercializar aquilo era um anátema. Depois apareceram os outros jovens que eram muito aficionados em blues. Havia uma grande banda de blues que tocava toda quarta à noite no dormitório, onde o Bloco B se encontra agora. Era a The butterfield blues band e Elvin Bishop. Aquilo era parte do bairro.
Em todo caso, eu divago.
Humanidades - que era tão extraordinário para mim - não é apenas sobre a amplitude, mas mais importante, sobre os textos fundamentais. Nunca tive aquilo. Muitos alunos não têm aquilo. Não havia ênfase na informação. Quando era aluno, tive de cursar dois anos do Ciclo de Humanidades. Todo mundo teve. Um quarto dos períodos de Humanidades era “História como Gênero”. Líamos três livros: Tucídides, o primeiro volume de Gibbon e a História da revolução russa de Trotsky. Tente imaginar três abordagens as mais dissonantes entre si! Era fantástico. O ciclo de “Civilização Ocidental” (e seu subproduto “Civilização Europeia”) aborda fontes primárias; de outra forma, fontes históricas. Muitos ciclos de Civilização Não-Europeia não o fazem. Têm poucos professores e ensinam fontes secundárias. Pelo menos foi o que me disseram. E muitos deles dão palestras. Acho que é bom para melhorar a educação, mas não é o mesmo que um curso de Humanidades. Deveria ser possível, não importa qual civilização você estude, dar aos estudantes material de fonte primária, de maneira que os faça perceber o que está acontecendo. Para mim, era o equivalente a um estudo intensivo de antropologia cultural. Você não deveria ler um texto grego ou latino da mesma maneira que lesse um texto americano da metade do século XX. Isso é algo que você tem que aprender. Nós não lemos mais aquele tipo de obra; ainda insistimos que os alunos não leiam comentários sobre Durkheim, Freud ou o que seja, mas que aprendam a lutar com os textos clássicos. E estou preocupado porque há uma parcela do curso que é contrária ao conhecimento acadêmico clássico. Até mesmo professores que são mais progressistas querem ensinar somente a sua especialidade.
Jeremy Cohan
Então você sente que aquela pressão contra o CBCS vem da faculdade, e não dos alunos?
Vem da faculdade. Costumava-se contar com um quadro de professores que era a verdadeira espinha dorsal deste curso, mas eram todos idosos. Isso não me ocorreu na época. Bill Sewell, Bert Cohler, Ralph Austen, Jonathan Z. Smith. J. Z. Smith era muito presente no curso. Ele não apenas ministrou sua excelente palestra ["Do the rite thing", - "Faça a coisa certa"] no inverno. Ele na verdade lecionava textos. As reuniões de colegiado eram muito diferentes. Para mim, administrativamente, significava que eu poderia chamar alguém e dizer: "Tenho 150 arquivos de estágio para corrigir; poderia conseguir tua ajuda nisto?" Entende? Algo assim. Agora, infelizmente o curso vai sobrevivendo no fio da navalha, só comigo. Creio profundamente no Ensino de Humanidades. E acho que as Guerras de Cânone obscureceram sua importância. Não acho que o que foi escrito nos últimos cinquenta anos seja muito melhor do que aquilo que foi escrito antes. Esse é um mau raciocínio. Nas ciências sociais não lecionamos um cânone no sentido das Humanidades. Lecionamos teoria fundamental, que não é o mesmo que um cânone. Um teórico está tentando explicar um fenômeno. Ao ler teoria, os alunos se conscientizam do fenômeno que aquele teórico em particular está tentando explicar, como este teórico em particular mobiliza a compreensão deste fenômeno e por que ele desenvolve certas categorias para dar sentido a este fenômeno. Se você ler teoria assim, as próprias categorias tornam-se: a) disponíveis para todos, b) algo que os alunos assimilam por eles mesmos, e c) algo que os alunos aprendem a identificar, o que, no fim, é uma habilidade. É muito diferente de ensinar posicionamentos, por exemplo. E infelizmente muito do que se ensina tornou-se ensino de posicionamentos. Isto vale até para o modo como Smith, Marx, Weber, Durkheim etc. são ensinados. Em muitos lugares, ou mesmo na faculdade, os alunos aprendem "o suficiente": Weber, ah sim! Racionalização e burocracia. Marx, ah sim! Luta de classes.
Jeremy Cohan
Moishe Postone
Jeremy Cohan
A inteligência "PowerPoint".
A esperança é gerar profundidade. Depois eles podem avançar mais por si mesmos. Acho que os alunos realmente precisam de mais estudos de Humanidades, mas isso não vai acontecer. Desvelar os textos com os alunos, mostrá-los como alguém está pensando e o que estão fazendo com suas categorias, ou por que eles acham que tiveram de criar estas categorias torna os alunos mais atentos a uma grande variedade de discursos em que participam. E, às vezes, acho que não vinga por um tempo. Há muitos que tiveram Humanidades e que falam sobre a área ter vingado muito tempo depois de formados. É uma pena. A educação costumava ser vista como uma espécie de repouso entre a escola e a vida profissional adulta. Está perdendo esta qualidade muito rapidamente. Há muito tempo, quando Hutchins [Presidente da University of Chicago de 1929 a 1945 e fundador do Currículo do Ciclo Básico] criou a Faculdade de Humanidades, os professores dos departamentos não queriam nada com aquilo. Os departamentos eram departamentos de pós-graduação, ponto final. Então você tinha uma faculdade isolada. Às vezes a Faculdade de Humanidades contratava professores que os departamentos não queriam porque eram, diria eu, muito amplos para os departamentos. Daniel Bell e David Riesman foram contratados para atuação nas Humanidades, embora nunca tivessem conseguido lotação no Departamento de Sociologia. E nem poderiam. Acho que Edward Shils mal tinha uma graduação. Professores como Bell e Riesman, seja o que for que se pense deles, tinham interesses muito amplos. A sociologia foi se tornando cada vez mais limitada, limitou-se tanto até se acabar. Assim como para Thin Man.
Benjamin Y. Fong
Moishe Postone
Benjamin Y. Fong
Qual sua intuição sobre a saída de cena das Humanidades e o emplacamento da especialização estreita?
Como você é recompensado na University, sobretudo para um pesquisador júnior? Você tem que publicar; você tem que publicar em periódicos especializados e acaba não tendo tempo para isso.
Jeremy Cohan
Moishe Postone
Jeremy Cohan
Estou curioso para saber um pouco mais sobre a questão política das Humanidades. Então, em geral, o debate hoje, em nosso momento pós-Guerra de Cânone, parece ser o de que são os conservadores que acreditam nas Humanidades – David Brooks do New York Times acredita que devemos aprender sobre a virtude...
Benjamin Y. Fong
Verdade, Beleza e Bondade. JC: E que são os radicais que acreditam no abandono das Humanidades. Estou curioso para saber o que acha dessa dicotomia, e como você vê uma saída para isso.
O problema para mim é que ambos pensam que estão ensinando a Verdade. E utilizam um vocabulário parecido. “Como aprendemos com Platão…”, “Como aprendemos com Derrida...” ou “Como aprendemos desde Foucault…” são falas que não se questionam. Acho que uma das ironias com boa parte do pósmarxismo é que se posiciona veementemente contra a ideia de progresso, salvo epistemologicamente. Tem-se notado um progresso epistemológico. Foucault está mais perto da verdade do que Marx ou Weber, do que Durkheim ou Freud. Há uma grande ruptura epistêmica nos anos 1960 e 1970, enquanto os verdadeiros conservadores sabem que depois de Platão tudo vai ladeira abaixo. Alguns abririam uma exceção para Aristóteles. Para mim, há um hábito de pensamento parecido. Considero que se está sendo crítico em um nível superficial e acrítico em um nível mais profundo. Começando por Platão, você pode criar uma crítica poderosa da modernidade, do véu de ilusões, e sustentar que o verdadeiro significado está em outro lugar. E começando por Foucault – fundamentalmente tudo é poder/conhecimento, exceto para mim. Há uma ausência gritante de reflexividade em boa parte do pensamento pós-estruturalista, até onde sei. Toda a tradição que vai de Hegel a Marx e, depois, de Lukács à Escola de Frankfurt, as pessoas não conhecem. Eles pegam trechos de Adorno e Benjamin nas Humanidades. Quando vejo o que dizem os alunos do Núcleo de Humanidades sobre o ensaio de Benjamin ser uma espécie de texto romântico, com nostalgia pela aura, acho muito vergonhoso.
Jeremy Cohan
Moishe Postone
Jeremy Cohan
É alguma coisa nos próprios textos de um curso de Humanidades que abala esta abordagem? É o não uso de fontes originais? São as obras específicas nesta tradição?
Depende do curso. Quando estudei o que mais tarde recebeu o nome de “História da Civilização Ocidental”, era diferente. Não estávamos lendo A oração fúnebre de Péricles para conhecer as categorias com as quais podemos entender nosso mundo, mas para experimentar e ver suas categorias, e o que o seu mundo significou para ele. Um de meus professores de Humanidades uma vez perguntou, retoricamente, para um grande público, ao ler a Oração de Péricles: “De qual político do século vinte ele nos lembra?” As rodas estavam girando. Todo mundo pensou: “Ah, Péricles é um grande homem, então deve ser alguém que gostamos – Frank D. Roosevelt, ou talvez John F. Kennedy”. “Não”, disse ele, “é Mussolini”. Mas depois ele disse por que Péricles não era Mussolini, e por que Mussolini não era Péricles; porque estavam operando em contextos radicalmente diferentes. Se a mesma linguagem utilizada no século V em Atenas for utilizada na Itália do século XX haverá um significado completamente diferente. Aprendi muito naquele curso. Mas isto é muito diferente de se ler Freud ou Durkheim, ou qualquer outro autor, para desenvolver as categorias com as quais eles estão tentando explicar nosso mundo. É um exercício diferente, uma hermenêutica diferente. Eu jamais os consideraria dispostos em uma hierarquia. Ambos os autores citados são muito importantes. Um é, se preferir, um pouco mais histórico-etnográfico e o outro mais teórico.
Jeremy Cohan
Moishe Postone
Jeremy Cohan
É um comentário e tanto, mas você acha que se o ensino superior fosse público esta seria uma maneira de reaver o valor das Humanidades?
Não, embora ache que o ensino superior deva ser público. Mas não acho que a causa de tudo isso seja o fato de que não é público. Acho que tem a ver com a profissionalização das disciplinas e com o empresariamento da universidade. A universidade gastou muito dinheiro em MBA’s de gerência intermediária em vez de gastar com a faculdade ou com os alunos. Havia uma época em que a faculdade era mais autoconsciente. Nos anos 1990 houve debates sobre a reforma das Humanidades. A University trouxe McKinsey. Membros da faculdade, como Andy Abbott e eu, éramos contra. Você tinha aqueles jovens de 27 anos, que, como costumávamos dizer no Canadá, eram tão estúpidos quanto uma porta, e que nos diziam como a educação deveria ser, a partir de suas métricas. Simplesmente dizíamos: não sabemos sobre o que você está falando e não vamos dar atenção a você. Àquela altura, na University of Chicago, isto era permitido. Agora não o é mais, porque a administração comprou o discurso. As Humanidades são simplesmente uma tentativa de democratizar o que havia sido um privilégio da elite. É uma espécie de combinação de Humboldt, incluindo toda a ideia da Bildung, com um pouco de Oxbridge. Era comum a ideia de um gentleman letrado que era capaz de enfrentar um leque variado de problemas, do saneamento básico em Calcutá à guerra tribal no Iraque, a partir de um estudo meticuloso dos clássicos. Agora não praticamos aquele tipo de educação canônica e o CBCS obviamente é muito mais crítico que aquilo. Mas a tentativa de promover consciência crítica contradiz a formação profissional. Então é uma tentativa crítica. Acho que poderia ser uma tentativa profundamente crítica. Anos atrás trabalhei em um lugar chamado Richmond College, que era parte do sistema City University de Nova Iorque. De um conjunto de acidentes históricos, Richmond College tornou-se ninho de certo tipo de esquerda vagamente definida, talvez um cercado para a esquerda. Eu estava lecionando lá, Paul Rabinow estava lecionando lá, Alan Wolfe estava lecionando lá; era um pessoal... Propus uma eletiva de graduação sobre Simmel, Weber e não sei mais quem, talvez Marx. Disseram-me que não deveria fazê-lo, uma vez que o alunado era composto por garotos pobres. Fiz eles escreverem um parágrafo em cada aula. Queria que eles vissem, no final, que eles podiam entender tudo aquilo. Deu muito trabalho, mas acho que deu certo. É possível promover algo profundamente democrático quando trabalhamos com os textos fundamentais, com o máximo de alunos possível lutando com eles. Então, se eu pudesse, a educação não seria apenas pública, mas haveria cursos como esses em todas as escolas.
Moishe Postone
Pelas nossas costas, parte dois
Moishe Postone sobre os teóricos do self.
Freud, de Beauvoir, Fanon: o quadrimestre da primavera (Indivíduo)
Benjamin Y. Fong
Uma vez que gostaríamos que você falasse dos teóricos sobre os quais não escreveu, pensamos que poderíamos abordar os quadrimestres em ordem inversa, e começar da primavera, que se inicia com uma longa seção sobre Freud. Por que Freud está no CBCS?
MP: Não conheço nenhum teórico do indivíduo que seja páreo para Freud quanto à complexidade e seja tão receptivo à ideia de que as pessoas são constituídas em um nível muito profundo - e não meramente como teóricos psicanalistas pensavam: “você tem este serzinho deste tamanho, depois aprende coisas, como não arrotar em público”. Eu penso o pós-freudismo mais ou menos como penso o pós-marxismo: é uma reação contra certo tipo de freudismo e contra certo tipo de marxismo, respectivamente, que nunca se importou em voltar para ver se havia algo que Freud e Marx tinham a dizer – isto é parte do que faço no meu trabalho –, que produzisse uma crítica daquela tradição e que também lhe permitisse encarar os fenômenos atuais de uma maneira tal que as teorias mais superficiais não conseguem. Do mesmo jeito que penso em Marx não somente como um teórico do capitalismo britânico de meados do século XIX, não acho que Freud seja apenas um teórico da burguesia judaica vienense de inícios do século XX. Em certo nível ele é; em outro nível, ele vai muito além disso. Freud é enlouquecedor. Ele é um teórico que, como qualquer grande teórico, não compreendia completamente as implicações do que escrevia. Então, para entender Freud, você não vai para a revista People com o Dr. Freud. É por isso que não levo a sério – já faz muito tempo que o li – O biólogo da mente de Sullivan6 , nem por um minuto. Sullivan não presta muita atenção em Freud, na teoria, e presta muita atenção nas coisas que o autor possa ter feito ou dito. Não acho que você possa determinar um fenômeno social, em um sentido, rebaixando o inconsciente. Quero dizer, não foi o que Jeffrey Masson, para citar outro dos anti-freudianos mais conhecidos, fez? Ao negar que algo disso poderia ser a vida fantástica da garota, acusando Freud de ajudar e de fomentar o abuso infantil, ele transformou a teoria do inconsciente em uma teoria empírica. O que, penso, empobreceu a teoria. Além de supor que haja uma relação biunívoca entre experiência e reação. Tudo de que, na verdade, Freud estava se distanciando, acredito eu. BF: O que você espera que seja ensinado aos alunos com relação a Freud?
MP: Não conheço nenhum teórico do indivíduo que seja páreo para Freud quanto à complexidade e seja tão receptivo à ideia de que as pessoas são constituídas em um nível muito profundo - e não meramente como teóricos psicanalistas pensavam: “você tem este serzinho deste tamanho, depois aprende coisas, como não arrotar em público”. Eu penso o pós-freudismo mais ou menos como penso o pós-marxismo: é uma reação contra certo tipo de freudismo e contra certo tipo de marxismo, respectivamente, que nunca se importou em voltar para ver se havia algo que Freud e Marx tinham a dizer – isto é parte do que faço no meu trabalho –, que produzisse uma crítica daquela tradição e que também lhe permitisse encarar os fenômenos atuais de uma maneira tal que as teorias mais superficiais não conseguem. Do mesmo jeito que penso em Marx não somente como um teórico do capitalismo britânico de meados do século XIX, não acho que Freud seja apenas um teórico da burguesia judaica vienense de inícios do século XX. Em certo nível ele é; em outro nível, ele vai muito além disso. Freud é enlouquecedor. Ele é um teórico que, como qualquer grande teórico, não compreendia completamente as implicações do que escrevia. Então, para entender Freud, você não vai para a revista People com o Dr. Freud. É por isso que não levo a sério – já faz muito tempo que o li – O biólogo da mente de Sullivan6 , nem por um minuto. Sullivan não presta muita atenção em Freud, na teoria, e presta muita atenção nas coisas que o autor possa ter feito ou dito. Não acho que você possa determinar um fenômeno social, em um sentido, rebaixando o inconsciente. Quero dizer, não foi o que Jeffrey Masson, para citar outro dos anti-freudianos mais conhecidos, fez? Ao negar que algo disso poderia ser a vida fantástica da garota, acusando Freud de ajudar e de fomentar o abuso infantil, ele transformou a teoria do inconsciente em uma teoria empírica. O que, penso, empobreceu a teoria. Além de supor que haja uma relação biunívoca entre experiência e reação. Tudo de que, na verdade, Freud estava se distanciando, acredito eu. BF: O que você espera que seja ensinado aos alunos com relação a Freud?
Moishe Postone
Tento, acima de tudo, fazê-los levar a sério essa mente fértil e estupenda, que simplesmente não toma o fenômeno pelo que este parece. Ele está sempre abrindo possibilidades, questionando-se e abrindo, assim, ainda mais possibilidades. Acho, infelizmente, que há vezes em que ele reifica os processos que ele desvela. Mas, apesar disso, são processos que ele desvelou. Então tento evitar lecionar coisas como “aqui está o mapa da mente: superego, ego, id”; acho que assim é fácil demais. A ideia principal que tento passar é que os seres humanos são conduzidos por impulsos inconscientes e, depois, que quanto mais esses impulsos inconscientes são reprimidos, mais somos conduzidos por eles. A terapia é então uma espécie de emancipação moderada. Ela não te faz feliz, mas te faz mais autônomo, ao destruir a ilusão de que era autônomo antes. E não se trata de um ensinamento existencialista, o de que você pode lidar com sua perda, que é a maneira como entendo o lacanismo; você se reconcilia consigo no tocante à tragédia da separação. Acho que em Freud há realmente o sentido de que você poderia viver de forma diferente.
Jeremy Cohan
O que você acha da escolha de [Simone] de Beauvoir e Fanon como sucessores de Freud (e por que esses dois em especial?), e de outros pensadores centrais na teoria do indivíduo?
MP
Boa pergunta. Idealmente, se tivéssemos anos letivos de 36 semanas, trabalharíamos textos que abordam gênero e raça, na relação com a economia política, na relação com a cultura e na relação com a teoria do indivíduo. Mas nas atuais condições são sempre enxertados, e não estamos fazendo justiça a eles. Infelizmente, de Beauvoir e Fanon carregam muito peso: eles não são apenas pós-freudianos ou pensadores do indivíduo: são de certa maneira significativos ao longo das questões de gênero e raça. E acho que isso é realmente um problema. Quanto a outros teóricos do indivíduo, tentamos outras leituras que não funcionaram por um motivo ou por outro. Um livro de que gosto, embora ele seja muito velho agora, é o Psicanálise e feminismo, de Juliet Mitchell. Para mim, ela está um tanto próxima do estruturalismo francês, mas acho sua explicação sobre o inconsciente estupenda. E também acho que sua crítica de muitas teóricas feministas da época – Germaine Greer, Kate Millett – é muito pertinente: essencialmente, ela está mostrando que essas teóricas eram quase-positivistas, que elas erraram na abordagem de Freud. Mas, para muitos alunos, era muito Freud. Depois de ter passado por Freud, para muitos, era como se tivessem passado por Freud novamente. E é uma pena, porque acho que ela tem uma compreensão muito mais sofisticada de Freud do que toda e qualquer análise de Simone de Beauvoir. Mas Simone de Beauvoir tem um alcance histórico em sua visão que não acho que alguém como Judith Butler tenha. Quando você adentra uma leitura de alguém como Butler, é como se nada antes dos 1980 existisse. Não sei se de Beauvoir é suficientemente reflexiva historicamente, mas ela certamente apresenta uma espécie de perspectiva histórica. Em parte, isso é por conta de seu marxismo engelsiano.
Jeremy Cohan
Jeremy Cohan
Em parte, de Beauvoir e Fanon são responsáveis pelo desenvolvimento da categoria "o Outro", que agora é senso comum nas Humanidades e nas ciências sociais. Você tem posicionamentos nesta questão do Outro, quanto à forma que aparece em uma teoria do indivíduo?
Um dos motivos pelos quais Pele negra, máscaras brancas é muito incômodo para muitos alunos é que, em parte, é uma abordagem psicanalítica da experiência de ser o Outro. No pensamento pós-colonial, ao contrário, o Outro é uma categoria reificada. É um orientalismo às avessas, no qual você não pode fazer uma análise crítica da sociedade muçulmana. Com o que ocorre hoje, as pessoas estão totalmente desamparadas conceitualmente.
JC: De certo modo, ele recusa o posicionamento levinasiano do hands-off.
O hin und her de Levinas é um posicionamento liberal. Quem sou eu para dizer algo sobre o Outro?
BF: Há algo sobre uma análise subjetiva de raça que você encontra em Fanon, mas que não encontra lendo algo mais direcionado à opressão objetiva aos negros nos EUA, ou alhures. Quando, por exemplo, você lê O negro e a psicopatologia, o capítulo em que ele adentra nas projeções dos brancos quanto aos negros, projeções essas que fazem os negros abertamente sexualizados, você é levado a um lugar onde eles estão discutindo raça de maneiras...
Moishe Postone
JC: De certo modo, ele recusa o posicionamento levinasiano do hands-off.
Moishe Postone
BF: Há algo sobre uma análise subjetiva de raça que você encontra em Fanon, mas que não encontra lendo algo mais direcionado à opressão objetiva aos negros nos EUA, ou alhures. Quando, por exemplo, você lê O negro e a psicopatologia, o capítulo em que ele adentra nas projeções dos brancos quanto aos negros, projeções essas que fazem os negros abertamente sexualizados, você é levado a um lugar onde eles estão discutindo raça de maneiras...
Moishe Postone
JC: Isto é de certa maneira um eixo-guia sobre a teoria do indivíduo. Para Freud também. Para todos os três, Freud, de Beauvoir, Fanon, a teoria do indivíduo é uma teoria de danos.
Moishe Postone
BF: Fico pensando aqui, quando você diz que a virtude de Freud é que ele entende nossa constituição em um nível profundo – e, de certa maneira, este é o início da ciência social – você considera a psicanálise parte integrante da teoria social, ou simplesmente algo complementar? Você acha que algo como o inconsciente é necessário para se fazer boa teoria social?
JC: Ou, para oferecer outra opção aqui, [a noção de inconsciente] está em tensão com a teoria social?
Moishe Postone
Bom, certamente está em tensão com algumas abordagens. Se é necessário? Para algumas coisas, provavelmente. Não acho algo terrível de se dizer que boa parte de nossa produção cultural é energia sexual sublimada. Olhar para a regulação da sexualidade foi uma estratégia genial. O que mostrou que a sexualidade é tão onívora, que qualquer coisa – esta xícara – pode ser um objeto sexual. Com fome, você pode comer sushi e tacos – até larvas de mariposas, se você é um antropólogo; mas a fome de objeto é muito mais limitada e determinada. A sexualidade, ao contrário, não é instintiva e, como tal, é um possível início para explicar por que há esta energia excedente que os indivíduos usam para criar uma série de coisas, de ferramentas a pinturas rupestres, à cerâmica. Para mim, houve um momento “Eureka!” quando li a obra de Freud sobre sexualidade. Para mim, é um insight original, porque acho que boa parte da teoria social não alcança um nível assim. Então, em alguns aspectos é mais fundamental que a teoria social. Mas é, em geral, tímido quando se pensa a especificidade histórica; então, deveria se vincular a outra coisa. Marcuse tentou, Adorno tentou. De várias formas. Adorno, olhando muito mais de perto o trabalho clínico e muito menos o trabalho metapsicológico do que Marcuse. Mas acho interessante que ambos tenham levado Freud a sério como um pensador realmente emancipatório. Há outras coisas que exigem ao menos alguma dimensão psicanalítica: talvez seja insuficiente, mas, por exemplo, o apelo a Hitler. Todos os jornalistas ocidentais estavam dizendo: “esse cara é só uma imitação ruim de Charlie Chaplin, e os alemães estão fascinados”. A catexia era tão forte que é difícil imaginar que haja uma dimensão que não possa ser esclarecida pela investigação psicanalítica. Mas como você faz a mediação da psicanálise com a especificidade da história alemã? Não é clara a maneira de fazê-lo.
JC: Isso também parece valer para a catexia em relação ao nacionalismo. Para Marcuse trata-se dessa conexão sistemática com a agressão.
Sim, o nacionalismo seria uma problemática real, que nunca foi respondida. Conhecem o livro de Ben Anderson sobre Comunidades imaginadas 9 ? Ele começa com os monumentos à Primeira Guerra Mundial – porque milhões morreram por seu país, supostamente. Ele nunca volta lá. Sua análise da diferença entre Indochina e América do Sul quanto às elites viajantes é boa, mas não responde à questão desta enorme catexia que é o nacionalismo. Então, concordo com isso. Mas os nazistas eram muitos. Além disso, eram soldados. Monumento Soviético em Berlin: 80.000 soldados soviéticos morreram no cerco de Berlim. Isso é um duplo Vietnã em apenas uma batalha. Isto quer dizer que eles enfrentaram uma resistência muito, muito dura. JC: Conversamos um pouco sobre os autores que lemos no quadrimestre do “Indivíduo”, mas também gostaríamos que explicasse mais sobre o motivo de uma teoria do indivíduo ter um lugar em um curso de Humanidades.
Por que não?
BF: Bom, por que não Política, Cultura e Sociedade?
Gostaria que estudássemos política também, que tivéssemos quatro quadrimestres. Não abordamos muito a esfera política. Mas somos os únicos que lecionam Cultura, somos os únicos que lecionam Indivíduo. Em uma abordagem ampla, isto é, em “Poder, Identidade e Resistência”, acho que os alunos leem Foucault e de Beauvoir, mas não leem Freud. É como ler Lenin ou Kautsky e nunca ter lido Marx. Talvez muitos não gostem da analogia… De certo modo, “Indivíduo, Cultura e Sociedade” trata, quanto ao conteúdo, de teorias de constituição: a constituição da sociedade feita pelos seres humanos [o outono], a constituição de sistemas de significado feita pelos seres humanos, muito embora não estejam conscientes de por que operam em seu interior, operam em um sistema que é humanamente criado [o inverno] e, por fim, a constituição social e cultural do indivíduo [a primavera]. As pessoas vão falar sobre “construção social”, mas em geral o que querem dizer é que o processo pelo qual um grupo é desfalcado, desamparado e marginalizado é social. E isso pode andar de mãos dadas com uma ideia de primazia indissolúvel do indivíduo, um indivíduo sendo espancado pelo que vem de fora. Quase não há a mesma ênfase no indivíduo sendo constituído, e não apenas por padrões de preconceito (linguagem muito antiga, eu sei). JC: Então a manifestação do indivíduo enquanto socialmente constituído significa um compromisso com uma crítica do indivíduo, ou mesmo com uma dissolução do indivíduo?
MP: Não há nada disso. Na verdade, há sim: chama-se psicose. Havia um interessante debate nos 1960 entre Marcuse e os neoreichianos, que, ao seguir Wilhelm [Reich], realmente acreditavam que haveria um indivíduo natural, assim como haveria uma sexualidade natural. Que, se você acabasse com a repressão, tudo emergiria. Marcuse tinha um posicionamento com o qual estou certamente muito mais identificado, que há um inexorável processo de formação humana. A crítica do indivíduo não precisa terminar com a sua dissolução. Então, o quadrimestre não tem um fim programático, assim, mas busca desreificar todo um conjunto de posições que os estudantes têm. Então, começa, é a possibilidade de um começo. É como a frase brilhante em Complexo de Portnoy de Philip Roth10, que salvou todo o livro para mim: ele está contando todas aquelas coisas constrangedoras sobre ele mesmo, coisas que você só contaria para o analista e, depois de tudo, o analista, Dr. Spielvogel, diz: "Então, vamos começar agora?"
JC: Isso também parece valer para a catexia em relação ao nacionalismo. Para Marcuse trata-se dessa conexão sistemática com a agressão.
Moishe Postone
Moishe Postone
BF: Bom, por que não Política, Cultura e Sociedade?
Moishe Postone
MP: Não há nada disso. Na verdade, há sim: chama-se psicose. Havia um interessante debate nos 1960 entre Marcuse e os neoreichianos, que, ao seguir Wilhelm [Reich], realmente acreditavam que haveria um indivíduo natural, assim como haveria uma sexualidade natural. Que, se você acabasse com a repressão, tudo emergiria. Marcuse tinha um posicionamento com o qual estou certamente muito mais identificado, que há um inexorável processo de formação humana. A crítica do indivíduo não precisa terminar com a sua dissolução. Então, o quadrimestre não tem um fim programático, assim, mas busca desreificar todo um conjunto de posições que os estudantes têm. Então, começa, é a possibilidade de um começo. É como a frase brilhante em Complexo de Portnoy de Philip Roth10, que salvou todo o livro para mim: ele está contando todas aquelas coisas constrangedoras sobre ele mesmo, coisas que você só contaria para o analista e, depois de tudo, o analista, Dr. Spielvogel, diz: "Então, vamos começar agora?"
Pelas nossas costas, Parte Três
Moishe Postone sobre teóricos da cultura e da sociedade.
Durkheim, Lévi-Strauss, Foucault: o quadrimestre do inverno (Cultura)
Moishe Postone
Para mim, o segundo quadrimestre tem a ver com a mudança histórica na cultura. De certo modo, Durkheim pavimenta o terreno para isso, ao estabelecer socialmente as categorias kantianas, produzindo a virada social. O que ele faz com a história é insuficiente, mas abre possibilidades. O trabalho cultural mais rigoroso derivado de Durkheim tomou uma direção ahistórica: é Lévi-Strauss, tudo o que vem de Saussure. A lógica é sincrônica, a diacronia é contingente. Então, como você consegue a mudança histórica? Sahlins tenta isto em um evento contingente: Captão Cook. É uma análise estupenda. É um livrinho maravilhoso. [Risos] Não é bem isso! É um pequeno volume. Quando estava escrevendo minha tese em Frankfurt, um jeito de ganhar dinheiro sempre era trabalhar em uma grande feira de livros. Gigantesca. O editor para quem eu trabalhava era um americano, que dizia: “Você sabe que piada circulava na Frankfurter Bookmesse? Qual o menor livro da feira de Frankfurt? A thousand years of German humor”. São bons em muitas coisas, mas o humor não é uma delas.
Em todo caso, com Sahlins, o processo torna-se contingente e a mudança vem de fora. Com Foucault, não se desiste da ideia de contingência, mas trata-se claramente de uma transformação interna. Nada acontece com a Europa a partir de fora. Não é como pensar a invasão dos hunos e, de repente, o Ancien Régime colapsa. Isso reintroduz a ideia de história como uma transformação interna. E a partir daí acho que você pode ir com Adorno e Benjamin, que são muito melhores no que toca o entendimento da história. Para Foucault, a mudança histórica é contingente, mas em cada um de seus livros as coisas rompem ao mesmo tempo. Ao considerar as prisões ou os asilos, é sempre assim.
Mas há partes da análise que acho maravilhosas. Ele te dá a ruptura, mas também dá os reformadores, que estão revoltados com a arbitrariedade do Ancien Régime, com a multidão e com o rei. Ele assinala o que alguns não conseguem entender: que os reformadores na verdade não vencem. O que vence é na verdade algo que sempre existiu no período do Ancien Régime, mas de forma subterrânea, que é a disciplina. A disciplina como a toupeira cavando por debaixo da terra e, assim que o Ancien Régime colapsa, ela emerge.
JC
Então é uma astúcia do argumento histórico?
Moishe Postone
Moishe Postone
Apesar dele mesmo. Se você observar, depois dos reformadores ele volta direto para o início do século XVII, com a diferença de que fica entre o guerreiro da Renascença e o soldado. O guerreiro da Renascença é um artista de si mesmo. Ele é autofundado. O soldado é uma peça da engrenagem. Já vimos os filmes em que o britânico sabe quando ajoelhar-se, quando levantar-se, quando atirar, quando carregar. É uma máquina. E ele é muito bom nisso.
BF: Vou tentar pontuar a lógica do quadrimestre com cuidado: você começa com Durkheim porque nossas categorias são sociais agora. Lévi-Strauss vai na direção errada...
Moishe Postone
Moishe Postone
É uma mirada muito rigorosa nas categorias do pensamento. Mas é completamente ahistórica. Em Lévi-Strauss, onde está a história?
JC
JC
Por que você acha que a história desaparece em Lévi-Strauss?
Moishe Postone
É explícito. A lógica é sincrônica. Isto é linguística saussureana. A mudança só ocorre porque o sistema se adapta a eventos contingentes. Então a sincronia está para o sistema assim como a diacronia está para o evento. Ao menos no meu entender.
BF
BF
Então que valor você vê em lecionar Lévi-Strauss depois de Durkheim? Em que pese ao rigor, [Lévi-Strauss] vai em uma direção muito diferente da dos demais. MP: Para mim, há uma importante tentativa de mostrar que as formas culturais não são aleatórias. A mudança pode ser contingente, mas elas estão em uma relação sistêmica entre si. Foucault sugere isso, mas na verdade não desenvolve. Benjamin e Adorno sim, desenvolvem a questão a partir de um paradigma completamente diferente.
JC: Você está dizendo que Lévi-Strauss tem um conceito de totalidade que não é uma totalidade histórica...
Moishe Postone
JC: Você está dizendo que Lévi-Strauss tem um conceito de totalidade que não é uma totalidade histórica...
Moishe Postone
Mas definitivamente é uma totalidade, sim. O significado de qualquer coisa apenas tem seu significado com referência ao todo do sistema. Quando o curso era mais influenciado pelos antropólogos, tentamos abordagens diferentes: com Victor Turner, por exemplo. [Turner] postula quase uma relação biunívoca: esta cor, este significado. Claro, Lévi-Strauss era inteiramente contra isso. Eu não gostava de Turner também por outro motivo. Não havia percebido isso inicialmente, mas, sua base empírica era, em grande medida, garimpeiros. Não menores. Garimpeiros. Trata-se de um proletariado terceiro-mundista atrelado a formas tradicionais. Teria sido, de fato, muito interessante se ele tivesse introduzido isso, porque aí então apareceriam as perguntas: como são essas formas que ele descreve?; como podem ser entendidas enquanto parte do esforço deles em desenvolver uma ruptura frontal com a tradição, e com a nova situação que não tem nenhuma relação com a tradição?; como eles entendem seu mundo?; e como podemos entender esses vários rituais na relação com o mundo? Mas Turner diz: “Sou um antropólogo e já que vou descobrir a cultura autêntica, vou ignorar o fato de que são garimpeiros extratores de cobre (ou garimpeiros de ouro, esqueço qual era). Vou ignorar isso para compreender a cultura”. A) Isso é romântico, no pior sentido da palavra, o que muito caracteriza o modo como funcionava a antropologia, e provavelmente como funciona ainda hoje. E, B) sua análise não é adequada para o objeto de pesquisa. Justamente o que é de importância central é ignorado. Não quero ler um livro em que tenha de corrigir tudo. JC: Então, Durkheim equipara as formas religiosas pré-modernas, ou mesmo pré-civilizacionais, à religião contemporânea, definindo a partir da existência essa ideia da religião como um sistema de crenças...
Moishe Postone
Moishe Postone
Uma estratégia brilhante.
JC
JC
Verdade. MP: Muito esperto. Isso muda todo o discurso.
JC: Mas estou curioso. Antes você parecia pensar que Durkheim era fundamentalmente um pensador histórico, mas de certo modo uma espécie de desafio para a história.
Moishe Postone
JC: Mas estou curioso. Antes você parecia pensar que Durkheim era fundamentalmente um pensador histórico, mas de certo modo uma espécie de desafio para a história.
Moishe Postone
Não, não. Acho que ele tem um fraco senso de história. Isso não é desenvolvido. Mas é uma teoria da religião, uma teoria social com categorias kantianas. É possível dar aos alunos um pouquinho de Kant, aqui: não há nenhum acesso ao mundo como ele é; o mundo é sempre mediado pelas categorias. A única maneira pela qual podemos dar sentido às várias formas de inputs sensoriais é através dessas caixas que podem ordená-las, e essas caixas estão na estrutura da mente. Para Durkheim, tudo isto é aceito. Só que aquelas caixas para ele são sociais.
BF
Quanto ao “fraco senso de história” de Durkheim, suponho que você estava se referindo à conclusão em que ele aborda a mediocridade moral. MP: Como você alcança o nível de abstração que governa os tempos modernos [para Durkheim]? Na medida em que as sociedades crescem, há uma redução a um mesmo denominador do que se havia chamado ‘crenças locais’. E isso significa que é um processo de abstração arraigado espacialmente na sociedade. Há uma linearidade com que não concordo.
BF
BF
Isso parece permitir a possibilidade de uma coisa que acho importante na obra, que ele é capaz de explicar o seu próprio posicionamento.
Moishe Postone
Moishe Postone
Sim, e Lévi-Strauss não pode fazer isso; Foucault também não. O que os antropólogos odeiam em Durkheim é o que mais gosto nele. Os antropólogos odeiam este tipo de teoria evolucionária, mas, em seu arcabouço, essa teoria evolucionária justifica a afirmação inicial do livro de que o cientista pode enxergar mais longe que o nativo.
JC
JC
Qual sua opinião sobre o fato de que as famosas passagens sobre efervescência coletiva estão no mesmo livro como uma afirmação sobre a origem das categorias kantianas? E que parece haver para ele alguma ligação aqui?
Moishe Postone
Moishe Postone
Não, não pode ser verdade. O que estava prestes a dizer é que não acho que ele imagine que, a fins do século XIX ou no século XX, a efervescência coletiva seja a barbárie. Era o que eu estava quase dizendo. E agora me ocorreu: ah, ele passou por Dreyfus. Havia muita efervescência coletiva nas ruas. Havia, fundamentalmente, a tropa de choque nas ruas. Então ele sabe disso. Ele está em negação porque é um bom republicano francês?
BF
BF
Já falamos sobre a dissolução do indivíduo e acho que os alunos se agarram a Foucault como o mais radical dos teóricos que diria que o indivíduo não é nada mais que uma construção. Você poderia falar sobre o lugar de Foucault no quadrimestre de inverno?
Moishe Postone
Moishe Postone
Curiosamente, acho que usamos Foucault contra suas intenções. Na verdade, ler Vigiar e punir não é uma boa introdução a Foucault. Em certo sentido, estamos fornecendo uma introdução a Freud, a Marx, mas não a Foucault. Particularmente, não tenho tanta estima por Foucault, ao contrário de muitas pessoas. Acho que há muitas coisas em sua obra cujas implicações não são refletidas. Fundamentalmente, penso em Foucault como uma tentativa de historicizar a cultura e a constituição do indivíduo. Mas sua historicização é muito cartesiana para mim.
JC
JC
Como assim?
Moishe Postone
Moishe Postone
O debate entre o cartesianismo e o newtonismo é que para Descartes tudo tinha que tocar em tudo. Com Newton, há a ação a uma distância. Analogamente, para Foucault, tudo está sempre tocando tudo. Você tem as pessoas decidindo a partir da disciplina e a disciplina vai moldando as pessoas. Há rupturas, mas elas são gratuitas. É uma descrição brilhante… Acho que por minha linguagem já esteja dizendo o que penso. Minha questão é: por que subitamente a disciplina é uma maneira plausível de organizar as coisas? Para o controle, claro; mas já havia o controle social antes. Não exibia aquela forma. Por que toma aquela forma? Não começa, a partir do que ele mesmo diz, em um lugar e depois se difunde para o exterior. Mas tudo começa de maneira incipiente no mesmo período histórico, em Hamburgo, em Amsterdam, em Paris, Inglaterra, depois Filadélfia… O que está acontecendo? Quem está educando os educadores? É muito fácil vincular isso a um tipo de tradição marxiana, mas isso já não seria algo foucaultiano. A maneira pela qual ele introduz o capitalismo é, penso, irrelevante, porque não me parece que o modo de racionalização que ele descreve tenha a ver com o capitalismo. Em Foucault você tem a propriedade, você tem os armazéns. Então a questão da relação ente crime e sociedade muda. Não são pontos inválidos. Mas a ideia de operar tudo de acordo com uma métrica matemática, de que isso tem muito a ver com capitalismo enquanto uma forma quantitativa, não está lá. Acho que está claro para todos que não acho que Foucault seja muito radical. Por que ele é tão radical?
BF
BF
Radical no sentido de que não há realidade lá para além da disciplina que a funda. Então, quando você considera Adorno, há um indivíduo. Mas, para Foucault, toda aquela individualidade é um efeito da disciplina.
Moishe Postone
Moishe Postone
Salvo que para Adorno o indivíduo que está sob ataque é em si historicamente constituído. O problema para Foucault, neste particular, que infelizmente ocorre em boa parte do pensamento francês, é que não há reflexividade. Qual é o ponto de vista a partir do qual você diz que o indivíduo não existe? Que escritor está dizendo isso? Alguém do espaço sideral? Quais são as condições de possibilidade do próprio conhecimento de Foucault? Sem a reflexividade, para mim, ele não é radical.
BF
BF
Então você começa com Durkheim – as categorias são sociais, mas ele não pode pensar a história – e depois Lévi-Strauss toma o caminho errado. Sahlins e Foucault tentam introduzir a contingência, e é somente Adorno e Benjamin que realmente a compreendem. É interessante pensar a Escola de Frankfurt como a que completa um projeto elaborado por Durkheim.
Moishe Postone
É como eu leciono, mas a tradição da Escola de Frankfurt é bem diferente, impregnada com Hegel e Marx, e não somente com Kant. Desses três grandes, dois estão faltando na tradição francesa. Sei que Kojève pensa Hegel, e muitos incluem Marx, mas tudo em nível superficial. Weber: o quadrimestre de outono (Sociedade)
BF
BF
O que esperávamos que você abordasse quanto ao primeiro quadrimestre é Weber. De Smith para Marx, a transição é óbvia. Mas Weber parece tão fundamental quanto.
Moishe Postone
Moishe Postone
Weber é um dos mais importantes teóricos sociais de fins do século XIX e início do século XX, seguramente ao lado de Durkheim. Alguns o reputam acima, outros abaixo. Para muitos alunos, muitas de suas ideias são horríveis. Ele é um teórico jurídico. É chato. Produziu esses catálogos de coisas, tecnologias, e seus olhos querem se fechar.
JC
JC
Muitas listas.
Moishe Postone
Moishe Postone
Muitas listas. Por exemplo, aqui, a noção weberiana das consequências culturais do puritanismo: os Pastores Peregrinos, a ideia de que esporte é bom, qualquer outra coisa que tenha a ver com o corpo é ruim. Ao ler isto, os alunos começam a reconhecer aspectos de seu mundo. Acho muito útil. Também é bem fácil partir daqui para uma breve discussão sobre a noção de masculinidade: os homens não choram, os homens não externam emoções. Muitos pensam em gênero, e ponto final. Isso é que é masculinidade.
JC
Tradicionalmente, Weber é visto como um pós-marxista. Marx e Weber pertencendo a duas tradições diferentes.
Moishe Postone
Moishe Postone
Não. O primeiro acadêmico alemão a introduzir Marx na academia foi Weber. Claro, isto não parece ser o Weber de Parsons. Weber é um pós-marxista no sentido de que é a favor da socialdemocracia, mas, ao contrário de muitos liberais, ele se preocupa profundamente com o capitalismo. E sua noção de capitalismo é retirada direto de Marx: a busca incessante pelo lucro. Não é a propriedade privada, não é o mercado, não é o livre comércio. E isso o ajuda a formar a ideia de que sua vida torna-se subserviente a um processo que não tem fim.
BF: Então o que Weber agrega a Marx?
Acho que agrega uma dimensão à compreensão dele, assim como quando você lê E. P. Thompson. Quando você lê teoria, deveria saber muita história, para quando estiver lendo a teoria a história esteja em um canto de sua mente, organizando sua leitura. Uma das grandes brigas que tenho com os habermasianos, muitos deles meus amigos, é que tratam Habermas como um historiador. São todos filósofos e não sabem nada de história. Eles acham que seus esquemas são todos históricos, que ele estava historicizando.
JC: Antes, quando você elaborava os três quadrimestres, você dizia que o terceiro quadrimestre é sobre o modo como a sociedade constitui o indivíduo, o segundo quadrimestre é sobre a constituição dos sistemas de significado que vêm a nos constituir, e o primeiro quadrimestre é sobre a constituição da sociedade. É então a economia política – ou o conceito de capitalismo – uma maneira de entender a constituição da sociedade?
Começamos com a economia política porque ela estrutura as coisas. É uma grande transformação. Ao contrário do que dizem alguns amigos, não acho que a cultura tenha sua própria lógica histórica. Nem a economia. O capitalismo sim.
JC: Então a própria sociedade é um conceito de capitalismo.
Sim. Acho até que foi Adorno quem escreveu isso. Aqui, concordo com ele. Você não vê o uso da palavra ‘sociedade’ ou ‘alta sociedade’, até que surja o capitalismo. Não significa nada. Para mim a figura de transição é Rousseau, porque Rousseau está tentando lidar com níveis do ser social que escapam aos limites da filosofia política, mas ele está usando a linguagem da filosofia política para tentar equacionar isso. Nesse sentido, ele é um teórico social seminal. Mas sua linguagem é a linguagem da filosofia política. Talvez um dia, quando tiver 120 anos, escreverei um livro sobre isso. Ele não é o único escritor que usa um vocabulário que busca compreender algo que em geral escapa àquele vocabulário, porque está fundado em um paradigma anterior no qual o escritor está produzindo mudanças, conceitualmente.
BF: Mas para você as ciências sociais começam com Smith.
É Smith quem primeiramente começa a dar-lhe uma anatomia da sociedade com as categorias que Rousseau não lhe dá. A ideia de que a modernidade capitalista tem um tipo de estrutura que Smith chamou de divisão do trabalho é muito contundente. E, além disso, você tem categorias que ajudam a entender por que a divisão de trabalho aparece dessa forma. Estruturas e categorias que operam às costas dos atores. Isto é o fundamental.
BF: Se você tivesse de caracterizar o início das ciências sociais, teria sido a descoberta daquilo que opera atrás de nós?
Sim, aquilo que é criado pelos indivíduos às suas costas, de uma maneira não aleatória.
JC: Como uma forma de compulsão?
Muitas vezes é uma forma de compulsão. Certamente, no capitalismo é uma forma de compulsão.
BF: É talvez onde a noção psicanalítica de pulsão se encaixe.
Sim, você tem toda a razão. Tenho tantos livros para ler que provavelmente não terei tempo. Por fim, encontrei online uma edição muito boa das obras completas de Freud, em alemão. E achava que poderia trabalhar essa leitura. Provavelmente não poderei. JC: Você acha que alguns autores sejam mais apelativos para os alunos do que outros? MP: Não acho que isso possa se desvincular das pessoas que os lecionam. Anos atrás, era muito amigo de uma professora do departamento de Antropologia. E todo ano, ela dizia, o teórico que mais amavam é Lévi-Strauss. Isso vinha abertamente dela! Enquanto que se você tem um quadro de professores que não suporte Lévi-Strauss, os alunos não irão gostar dele também. Meus alunos amam Marx. Há tantos sinais sutis que aparecem. É de fato uma situação de transferência. Hoje, fingimos que a sexualidade não existe ou a expressamos na forma de assédio. Cabe ao professor estar atento à transferência erótica na sala de aula. Muitos professores, antes da psicanálise, costumavam considerar isso uma declaração sobre eles, que eram na verdade sexualmente desejáveis. Então, você tem que ter cuidado, saber lidar com isso, usar isso de modo adequado. Isso então reabre a maneira pela qual autores diferentes são catexizados por professores diferentes, torna-se parte de toda a mistura. Os alunos podem admitir aquela ideia, mesmo quando não saibam que a estão admitindo, e mesmo que você não reforce um ou outro autor. Tento obstinadamente não descartar ninguém. Você está se esforçando para que adentrem o autor seriamente, e não para dizer: “eles são bons, eles não são bons”. Então, muito do que pensam é agora muito raso. Uma amiga muito próxima, que é uma espécie de feminista e ensaísta radical, Laura Kipnis, acabou de ser processada em Northwestern, com base no Título IX. E ela não vai ceder. Está acostumada a atacar as pessoas, e vai continuar assim. Algumas pessoas acham certo desprezar outras se elas não concordam com suas ideias, caso pensem estar com a verdade. Havia uma época em minha vida que isso era chamado de fascismo. Esse desprezo.
BF
BF: Então o que Weber agrega a Marx?
Moishe Postone
JC: Antes, quando você elaborava os três quadrimestres, você dizia que o terceiro quadrimestre é sobre o modo como a sociedade constitui o indivíduo, o segundo quadrimestre é sobre a constituição dos sistemas de significado que vêm a nos constituir, e o primeiro quadrimestre é sobre a constituição da sociedade. É então a economia política – ou o conceito de capitalismo – uma maneira de entender a constituição da sociedade?
Moishe Postone
JC: Então a própria sociedade é um conceito de capitalismo.
Moishe Postone
BF: Mas para você as ciências sociais começam com Smith.
Moishe Postone
BF: Se você tivesse de caracterizar o início das ciências sociais, teria sido a descoberta daquilo que opera atrás de nós?
Moishe Postone
JC: Como uma forma de compulsão?
Moishe Postone
BF: É talvez onde a noção psicanalítica de pulsão se encaixe.
Moishe Postone
BF
Só hoje encontrei o lado negativo daquele problema: estamos lendo Protest psychosis de Jonathan Metzl, e o problema central é que, de um lado, a esquizofrenia é uma construção política e, de outro, é uma doença real. Então é uma questão de rótulos ou é a estrutura social nos abalando? E alguém depois da aula veio me perguntar: “Então, o que é? Qual a resposta certa?” Os alunos em geral querem a verdade, em lugar de uma conversa complexa.
Moishe Postone
A resposta não é que a verdade seja sempre ambígua, mas que estamos oferecendo argumentos, não verdades. E às vezes os argumentos podem ser muito difíceis. É um problema difícil. Eu não teria uma resposta rápida na manga para o problema da esquizofrenia.
JC
JC
Uma última pergunta: há um receio sobre o futuro do curso. O que acha que vai acontecer?
Moishe Postone
Moishe Postone
Não sei, porque agora vou trabalhar em regime de meioperíodo. Esse curso foi historicamente mantido por um grupo de colegas do departamento. Essas pessoas, que lecionavam e eram boas cidadãs, estavam ativamente envolvidas com o curso. Algumas morreram, como Bert Cohler, ou se aposentaram, como Bill Sewell, Ralph Austen, J. Z. Smith, John Lucy. Havia seis ou sete colegas que realmente tocavam o ciclo básico, e agora não estão mais aqui. Muitos do departamento hoje não são diferentes de seus primos positivistas: são muito rasos e não querem lecionar fora de sua zona de conforto. E por isso estou preocupado com o CBCS, porque não vejo pessoas se engajando. Deveriam ter a mente aberta para um compromisso com a ideia de um ensino de humanidades para os graduandos.
BF
BF
E se isso não acontecer?
Moishe Postone
Moishe Postone
Eu não sei.
Moishe Postone foi professor Thomas E. Donnelley da Faculdade de História e do Centro de Estudos Judaicos da Universidade de Chicago e autor de Tempo, Trabalho e Dominação Social.
Jeremy Cohan é doutorando em Sociologia na Universidade de Nova York.
Benjamin Y. Fong leciona na Universidade Estadual do Arizona.
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