22 de janeiro de 2019

Quando Martin Luther King era perigoso

Martin Luther King Jr é lembrado como uma pessoa consciente que apenas violava, cuidadosamente, as leis injustas. No entanto, seus desafios militantes à autoridade estatal o colocam em uma tradição muito diferente: o ativismo trabalhista radical.

Alex Gourevitch


Mugshot de Martin Luther King Jr em Birmingham, 1963. Foto: Wikimedia Commons.

Tradução / Martin Luther King Jr não era um homem popular. Em 1963, apenas 41% dos Estadunidenses expressavam uma visão positiva sobre ele. Apenas o líder Soviético Nikita Khrushchev era mais impopular. Daí pra frente foi tudo foi ladeira a baixo. Em 1966, dois terços dos estadunidenses tinham uma visão negativa de King. Nos seus últimos anos, King tinha uma avaliação pior do que quase todos os outros estadunidenses conhecidos. Pior do que Ted Kennedy depois do acidente de Chappaquiddick; pior que Haldeman e Ehrlichman teriam como as figuras-chave do escândalo de Watergate. Nem o presidente francês Charles de Gaulle era capaz de provocar a mesma hostilidade que King.

Agora tudo mudou. Por que? Alguns dirão que é porque King teria resolvido o “problema de raça” dos Estados Unidos através de algo que chamamos de “desobediência civil”.

No entanto, até seu assassinato em 4 de Abril de 1968, King insistiu que o problema da raça dos Estados Unidos não tinha sido resolvido. Ele também não era um mero desobediente civil, pelo menos não no sentido que este termo é comumente compreendido. Ele não foi apenas um homem consciente, pronto para violar a lei, mas afirmando sua autoridade. King estava preparado para desafiar a autoridade do Estado e assim o fez repetidamente. Ele também o fez como um ato de resistência contra o uso do “Estado de Direito” a favor do interesse dos poderosos. Ele era menos parte de uma tradição imaginada que passaria por Gandhi e Thoreau do que parte de uma tradição real que corre como um fio vermelho na ala radical do movimento trabalhista e na política de esquerda em geral.

King deve ser honrado, mas por quem ele foi e por aquilo que fez. Mas o que ele fez e como suas ações se conectam com essa tradição mais ampla da esquerda? O ponto de partida é Birmingham, Alabama.

Projeto confronto
Quando King chegou a Birmingham, em março de 1963, ele estava cheio de dúvidas e o movimento estava engasgando. O boicote aos ônibus de Montgomery de 1955 a 1956 quase havia sido derrotado, sendo salvo principalmente por uma decisão da Suprema Corte que declarou inconstitucional a segregação nos ônibus. Durante a campanha de des-segregação de 1961 a 1962 em Albany, na Geórgia, os planos de King foram tão circunscritos por ordens judiciais e prisões em massa que seu movimento teve de bater em retirada, mesmo que relutantemente. Nenhuma legislação séria sobre direitos civis estava às vistas. A segregação de tudo no Sul dos EUA, desde fontes de água até piscinas e elevadores, ônibus e escolas, permanecia mais ou menos intacta. Os desafios à liderança de King cresciam.

O plano em Birmingham, que King havia elaborado com outros líderes da luta pelos direitos civis, era usar a semana da Páscoa para desafiar a segregação em um dos centros nervosos das leis de Jim Crow no Sul dos EUA. O movimento passaria a primeira parte da semana construindo apoios e organizando ações diretas, como protestos sentados, piquetes em empresas boicotadas, marchas pelo registro de eleitores e ajoelhamentos em igrejas brancas. O Projeto Confronto, como King e outros líderes como Fred Shuttlesworth e Wyatt Tee Walker o chamavam, culminaria em uma marcha massiva no centro de Birmingham no sábado, 13 de abril. O sábado de Páscoa era o dia de compras mais movimentado da temporada, portanto a marcha seria especialmente perturbadora, ameaçando os lucros empresariais, planos de compras e os hábitos e expectativas mais profundas sedimentados na economia da cidade.

A liderança branca de Birmingham rapidamente se mobilizou em resposta. Na quarta-feira, 10 de abril, o comissário de Segurança Pública Bull Connor enviou advogados para obter uma liminar contra as marchas planejadas. Os advogados de Connor foram ao juiz William Jenkins, conhecido por emitir liminares contra os trabalhadores. As determinações eram usadas regularmente para reprimir as greves nos Estados Unidos desde o final do século XIX e eram frequentes em Birmingham, uma cidade industrial.

Jenkins emitiu sua liminar, uma proibição abrangente de quase todas as táticas concebíveis para o movimento. Ele proibiu “desfiles de rua em massa ou procissões em massa, […] congregação na rua ou em locais públicos […] desfile, demonstração, boicote, invasão e piquete ou outros atos ilegais, ou […] ‘ajoelhar’ nas igrejas “. Na noite de quinta-feira, os homens de Connor levaram a determinação ao Hotel Gaston, onde estavam hospedados os líderes do movimento.

Eles ficaram arrasados ​​- “dominados por um sentimento de desesperança”, segundo King. Para piorar a situação, as autoridades da cidade aumentaram as penalidades financeiras e criminais pela desobediência à liminar. Desrespeitar a ordem judicial significaria longas penas de prisão para os líderes do movimento e multas maciças que ameaçavam levar à falência suas organizações. Porém, obedecer à liminar seria igualmente ruim, destruindo a energia do momento e prejudicando o movimento.

Parecia que eles estavam presos, condenados a repetir o fracasso da campanha na Albany.

O problema da determinação judicial
Além de seus desafios práticos, a liminar colocava um problema político e filosófico para King. King não tinha nenhum problema em violar a lei – muito pelo contrário. “A doutrina da mudança legal se tornou a doutrina da mudança lenta e apenas simbólica” era o mantra de King no mundo posterior à decisão da Suprema Corte no caso Brown vs Board of Education – a mudança teria que ocorrer por meio de atos ilegais. Contudo, embora King estivesse disposto a violar a lei, ele não estava disposto a contestar o Estado de Direito ou os tribunais e a autoridade do governo que sustentava essa regra.

Antes de Birmingham, King queria distinguir a violação de seu movimento daquela perpetrada pelos segregacionistas, que violavam abertamente a ordem anti-discriminação imposta pelo tribunal e se envolviam em violência terrorista. O campo de King obedecia as ordens judiciais, incluindo liminares, e respeitava o processo legal. Os estatutos de segregação e as ordenanças da cidade poderiam ser desobedecidos; os tribunais, como representantes do Estado de Direito, precisavam ser atendidos. Era uma desobediência civil clássica: desobediência consciente, associada ao respeito pela ordem jurídica. Em Montgomery (1955-1956) e em Albany (1961), King insistiu que o movimento só poderia contestar liminares no tribunal. Elas não deveriam ser desobedecidos por completo.

Entretanto, as determinações judiciais representavam um grande obstáculo. Os tribunais haviam coberto todo o Sul do país com ordens legais, criando um denso tecido de repressão. Em 1956, um tribunal do Alabama determinou que a Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP) ficasse proibida de operar em qualquer lugar do estado, o que a Suprema Corte anulou em 1964. Em 1961, um juiz local proibiu os Viajantes da Liberdade de entrar em Montgomery, Alabama – uma liminar que, juntamente com outra em Albany em 1962, proibia os membros do Comitê de Coordenação de Não-Violência Estudantil (SNCC) de se envolverem na maioria de seus protestos, boicotes e manifestações. Em Baton Rouge, Louisiana, as determinações impediam o Congresso de Igualdade Racial (CORE) de se manifestar contra a segregação. No final de 1963, liminares em Jackson, Mississippi e Charleston, na Carolina do Sul impediam a NAACP de liderar manifestações por lá.

“O método de liminares tornou-se o principal instrumento do Sul para bloquear a ação direta pelos direitos civis e impedir que cidadãos negros e seus aliados brancos se envolvam em assembleias pacíficas”, escreveu King. “Você inicia uma demonstração não violenta. A estrutura de poder garante uma liminar contra você. É possível que demore dois ou três anos antes que qualquer disposição do caso seja feita. ”

Os líderes do SNCC defendiam a violação das liminares, mas King recusava – e então veio Birmingh.

Da desobediência civil para algo a mais

Na noite de quinta-feira em que os líderes dos direitos civis receberam a liminar de Birmingham, todos (exceto o radical Shuttlesworth) aconselharam a violação da ordem: eles simplesmente não podiam pagar as longas sentenças e multas da prisão. Alguém ligou para Harry Belafonte para começar a angariar mais dinheiro. Eles debateram até tarde da noite e continuaram na manhã seguinte.

Então King entrou em seu quarto de hotel, ajoelhou-se e orou. Ele emergiu com uma decisão: era hora de desobedecer à liminar – não importando os tribunais e o processo legal de apelação.

Na sexta-feira, os líderes do movimento realizaram uma conferência de imprensa anunciando sua decisão de desconsiderar a liminar. Eles explicaram:

No passado, respeitamos as decisões judiciais federais por respeito à liderança franca e consistente que o judiciário federal deu ao estabelecer o princípio da integração [racial] como a lei da terra. 
No entanto, agora somos confrontados com forças recalcitrantes no Sul Profundo que usarão os tribunais para perpetuar o sistema injusto e ilegal de separação racial. 
O Alabama deixou clara sua determinação em desafiar a lei da terra. A maioria de seus funcionários públicos, seu corpo legislativo e muitos de seus agentes policiais desafiaram abertamente a decisão anti-segregação da Suprema Corte. Nos sentiríamos moral e [legalmente] responsáveis ​​a obedecer à liminar se os tribunais do Alabama aplicassem igual justiça a todos os seus cidadãos.

Ali estava um novo relacionamento do movimento com os tribunais e o processo legal. Os líderes do movimento estavam declarando abertamente que o último ramo de governo no Sul, e possivelmente o mais independente, havia se mostrado apenas mais um instrumento de segregação. O “maquinário do governo do estado e do poder da polícia”, como o chamavam, havia perdido sua legitimidade. Depois de falar com a imprensa, eles prosseguiram com sua marcha ilegal na Sexta Feira Santa em direção à prefeitura de Birmingham, durante a qual King, Ralph Abernathy e alguns outros foram presos. No domingo de Páscoa, o restante da liderança seria preso por liderar procissões ilegais naquele fim de semana.

É uma ironia histórica que Birmingham seja lembrada como o ato icônico da desobediência civil, pois foi nesse momento que King decidiu que a autoridade do próprio estado deveria ser questionada. O exato momento pelo qual ele é celebrado é o ponto em que ele e seus colegas líderes se tornaram algo mais que desobedientes civis.

King estava bem ciente da importância da decisão. Em Por que não podemos esperar (1964), sua narrativa sobre a campanha de Birmingham, King observou: “Fizemos uma coisa audaciosa, algo que nunca havíamos feito em nenhuma outra cruzada. Desobedecemos uma ordem judicial.”

O movimento havia lançado um desafio aos tribunais para que reconhecessem que a ordem legal – os tribunais, o sistema de apelações, os juízes e funcionários das legislaturas e dos ramos administrativos estaduais – era incapaz de fornecer sequer uma justiça nominal. A questão agora era como o Estado responderia.

O caso Walker versus Birmingham
Areação imediata foram prisões em massa, que rapidamente se transformaram em uma série de processos judiciais. Quando esses desafios finalmente começaram a chegar à Suprema Corte, em 1967, eles representaram um problema para os juízes. Em casos anteriores de desobediência civil, o Tribunal havia decidido que se o estatuto da ordenação ou segregação da cidade subjacente fosse inconstitucional, violar essas leis não seria crime. Dois anos depois, em 1969, a Corte sustentaria que o ato de marchar sem permissão em Birmingham não era ilegal, uma vez que a lei de permissões era inconstitucionalmente vaga e aplicada de maneira racialmente discriminatória.

Mas desrespeitar a liminar do juiz Jenkins era outra questão. No caso Walker v. Birmingham (1967), o juiz Potter Stewart escreveu que, embora “a amplitude e a imprecisão da própria liminar” possam ser uma “questão constitucional” sujeita a debate, o local adequado para esse debate seria em um tribunal. No entanto, os manifestantes, Stewart lamentou, “nem sequer tentaram solicitar aos tribunais do Alabama uma construção autorizada da ordenança”.

Segundo Stewart, recusar contestar a liminar em um tribunal foi pior do que a inconstitucionalidade potencial da liminar, porque os manifestantes estavam tomando a lei em suas próprias mãos ao mesmo tempo em que rejeitavam a autoridade dos tribunais e do próprio estado. Essa, é claro, era a opinião de King e companhia, apesar de alegarem que os tribunais eram incapazes de administrar a lei de maneira imparcial e independente, um ponto que a Suprema Corte se recusou a considerar. Em vez disso, Stewart citou a conferência de imprensa de sexta-feira, na qual os líderes explicaram por que não se sentiam mais “moral e legalmente responsáveis ​​a obedecer à liminar” como prova de seu desprezo pela lei e pelo processo legal.

A decisão de Walker era uma espécie de ato de contenção. Tentava limitar a injustiça racial e a podridão constitucional a certos ramos do governo do estado do Alabama. O Tribunal recusou-se a enxergar até que ponto essa injustiça e podridão afetavam todo o sistema judicial. Depois que a corte proferiu sua decisão em 1967, King se viu voando de avião para Birmingham, preparando-se para cumprir a sentença que fora imposta a ele e seus companheiros três anos antes.

Normalmente, não contamos a história do caso de Birmingham como tendo muito a ver com a Suprema Corte. Marchas, prisões, protestos, cartas na prisão, crianças, cães e mangueiras de incêndio são as histórias sobre Birmingham.

Mas a Suprema Corte precisa fazer parte dessa história. A decisão de Walker não surgiu do nada. As ações de King trouxeram à superfície algo que havia estado enterrado profundamente na memória institucional da Suprema Corte. Ao explicar como a decisão estava “firmemente estabelecida por precedentes”, a opinião do juiz Stewart, apoiado pela maioria da Corte, revivia uma peça de raciocínio jurídico que o Tribunal havia aperfeiçoado décadas antes, durante a repressão de greves trabalhistas. O significado duradouro da decisão do caso Walker não é a decisão em si, mas os fios históricos que ela involuntariamente uniu.

De King a Debs
Para encontrar um “precedente firmemente estabelecido” naquele caso, a Corte retornou quase cinquenta anos a um caso pouco conhecido de 1922 chamado Howat versus Kansas. Alexander Howat era um anarco-sindicalista que liderou uma greve ilegal no Kansas contra uma empresa de mineração. Diante de uma liminar, Howat e os mineiros continuaram em greve, e nem se deram ao trabalho de recorrer da decisão. “Na visão de Howat”, escreve o historiador James Pope, “tribunais, legislaturas e empresas se uniram para acorrentar os homens aos seus empregos e esmagar a vida do trabalho organizado de todo o país”.

Os grevistas desconsideravam os tribunais como uma autoridade legal; eles sentiam que os juízes eram ferramentas dos empregadores.

A ação trabalhista se tornou aquilo que Pope chama de “greve constitucional”: em vez de recorrer da liminar no tribunal, os grevistas reivindicaram para si mesmos uma autoridade constitucional para desobedecer. A greve ilegal era uma maneira de afirmar suas liberdades civis, ao mesmo tempo em que se afirmava que os tribunais haviam perdido sua autoridade legal.

A hostilidade de Howat em relação aos tribunais era amplamente compartilhada. As medidas cautelares anti-greve eram um fato da vida há décadas, tanto que o período entre 1894 e 1932 é conhecido como a era do “governo por liminares”, uma frase cunhada pelo líder socialista Eugene Debs. As decisões judiciais transformavam conflitos entre grevistas e seus empregadores em conflitos entre trabalhadores e o Estado, e davam sanção legal à violenta repressão estatal, transformando a ação do governo contra greves em suspensões generalizadas de liberdades civis básicas.

Somente mais tarde, com a Lei Norris-LaGuardia (1932) e a Lei Wagner (1935) – e modestas vitórias em tribunais como NLRB versus Jones & Laughlin Steel (1937) e Hague versus CIO (1939) – os trabalhadores ganharam algum alívio. Mesmo assim, várias agências estatais continuaram restringindo a organização e greves trabalhistas.

“Suas Liberdades Civis”, um panfleto de 1940 do Congresso de Organizações Industriais (CIO), tornou públicas várias dessas medidas. Uma lei anti-trabalhadores de Milwaukee, por exemplo, proclamava: “Fica ilícito a qualquer pessoa circular ou distribuir qualquer folhetim, folheto ou outro material impresso dentro ou em qualquer calçada, rua, beco, patamar de embarcação, cais ou outro local público, parque ou terreno, dentro da cidade de Milwaukee.” Outras ordenanças proibiam a reuniões, boicotes, piquetes e marchas – muitas das mesmas atividades que os manifestantes dos direitos civis mais tarde seriam proibidos de realizar no Sul do país.

Howat não estava agindo espontaneamente nem idiossincraticamente quando, em 1920, ignorou os tribunais. Ele expressava uma opinião compartilhada entre os líderes trabalhistas e as pessoas comuns, nascida de anos de experiência, de que as liminares eram a arma de um judiciário com consciência de classe que defendia os interesses dos empregadores.

No caso Howat versus Kansas, o Tribunal decidiu que, independentemente da constitucionalidade da liminar, o tribunal tinha autoridade para emiti-la. Desobedecer a liminar sem primeiro contestá-la no tribunal ameaçava o Estado de Direito. Esse foi o precedente que Steward tomou no caso Walker. Citando a decisão do caso Howat, ele declarou: “A desobediência a [decisões judiciais] é um desprezo à autoridade legal [da corte]”.

Mas se Howat era o precedente para Walker, qual era o precedente para Howat? Dois casos foram especialmente importantes: As decisões nos casos “In re Debs” (1895) e Gompers versus Bucks Stove & Range Co. (1911). A primeira decisão foi sobre a greve da Pullman de 1894, a primeira grande greve nacional a provocar uma liminar, que inaugurou as décadas do uso dessa ferramenta. Inicialmente, o líder da greve, Eugene Debs, recomendou aos trabalhadores que obedecessem à lei e a se abstivessem de violência: “Queremos vencer tanto quanto queremos ser cidadãos cumpridores da lei”. Logo, no entanto, as empresas ferroviárias conspiraram com o procurador-geral dos EUA Richard Olney, um ex-funcionário da ferrovia, para garantir uma série de medidas liminares. O presidente Grover Cleveland enviou tropas federais para Chicago, e Olney declarou lei marcial de Illinois até a Califórnia.

Incapaz de continuar a greve sem colocar a si mesmo e seu sindicato em conflito direto com o Estado, Debs convocou uma greve geral e foi preso por violar a liminar. A Suprema Corte decidiu que Debs era culpado de se colocar acima da lei. “É de se supor que esses réus estavam conduzindo uma rebelião ou inaugurando uma revolução”, escreveu a Corte, “e que eles e seus associados estavam se colocando além do alcance do processo civil dos tribunais?” A resposta foi sim.

Para Debs, não havia um “processo civil dos tribunais” com significado real. O Estado, incluindo seus tribunais, tornou-se um instrumento do poder de classe: “As forças organizadas da sociedade e todos os poderes dos governos municipal, estadual e federal se reuniram contra nós”. Um ano depois, ele reafirmou seu argumento em uma declaração que escreveu com Samuel Gompers:

Forças imensas são mantidas à disposição do capital corporativo para a subjugação dos trabalhadores. Durante anos, os interesses das ferrovias mostraram o exemplo sem lei do desafio às liminares […] Eles demonstraram o maior desprezo pela lei do comércio interestadual, fugiram de suas punições […] Nesse desrespeito à lei, essas empresas deram o maior impulso à anarquia e à ilegalidade. Ainda assim, eles não hesitaram, quando confrontados com trabalhadores indignado, em invocar os poderes do Estado. O governo federal, apoiado pelos marechais dos Estados Unidos, por liminares dos tribunais, proclamações do presidente e sustentado pelas baionetas dos soldados e todo o maquinário militar civil da lei, reuniu-se sob a convocação das corporações.

Assim como King apontaria os assassinatos impunes cometidos pelos segregacionistas e sua desobediência às ordens anti-segregação, Debs e Gompers apontaram a “anarquia e ilegalidade” das empresas como evidência de que a ordem legal não tinha relação com sua auto-imagem.

A experiência com Pullman e as subsequentes greves informaram a em outros sentidos conservadora participação de Gompers nos eventos que levaram ao caso Gompers versus Bucks Stove, o segundo precedente da corte do caso Howat. Gompers e outros líderes da Federação Americana do Trabalho haviam decidido violar uma liminar que, entre outras coisas, proibia o uso de seu jornal nacional para anunciar um boicote à empresa Buck’s Stove. A liminar os proibia de tornar público o texto da liminar.

Segundo Gompers, “quando se trata de renunciar aos meus direitos como cidadão americano livre ou violar a liminar dos tribunais, não hesito em dizer que exercerei meus direitos”. Gompers, por uma boa razão, normalmente não é considerado parte de qualquer tendência radical no movimento trabalhista dos EUA. É ainda mais notável que ele apareça nesta história. Até Gompers estava disposto a desconsiderar os processos legais, ignorar os tribunais e endossar o direito dos trabalhadores de agir sob sua própria autoridade.

Suas ações levariam um juiz de primeira instância, a quem a Suprema Corte citou de maneira positiva no caso Gompers versus Bucks Stove, a dizer: “as controvérsias devem ser determinadas em tribunais formalmente constituídos pela lei da terra para esse fim ou cada um que se desentender com outro deverá resolver as coisas do seu próprio jeito furioso?”

Além disso, o juiz alegou: “Se uma parte pode atribuir a si mesma a função de juiz da validade das ordens que forem emitidas e, por seu próprio ato de desobediência colocá-las de lado, os tribunais são impotentes […] e o que a Constituição hoje chama apropriadamente de “poder judicial dos Estados Unidos” seria uma mera zombaria”. Mais do que a própria decisão, esse trecho era o que interessava à corte no caso Howat. Naquele tribunal, Howat era apenas mais um líder trabalhista, como Gompers e Debs antes dele, tomando a lei em suas próprias mãos, de maneira insolente, e minando a autoridade do Estado.

De King a Howat, e chegando em Gompers e Debs, há uma notável linha de continuidade legal, ansiedade judicial e desobediência radical. A cada momento, o drama central não era a desobediência a leis injustas, mas um desafio aberto aos tribunais e ao Estado como um todo. Essas figuras históricas compartilhavam aproximadamente o mesmo senso de por que os tribunais haviam perdido sua autoridade: grandes partes do Estado estavam sob o controle de um grupo que usava a ordem legal para oprimir sistematicamente os outros.

É sabido que King tinha uma conexão de longa data com uma coalizão entre trabalhadores e lutadores pelos direitos civis. Mas isso às vezes é considerado mais como uma união de movimentos separados ou uma coalizão de alianças de interesses compartilhados. A conexão King-Howat-Gompers-Debs nos lembra o quão profunda é essa conexão e o quanto ela estava estreitamente ligada à disposição de ameaçar a autoridade do Estado. Nenhuma dessas figuras históricas, nos momentos históricos relevantes, estabeleceu suas organizações como Estados separados nem se anunciou como “o povo” suspendendo a Constituição para criar uma nova em seu lugar. Naqueles momentos, eles não foram revolucionários. Mas a sua desobediência era mais carregada e vertiginosa do que aquilo que nos vem à mente quando pensamos em desobediência civil.

As profundas diferenças políticas entre essas figuras também são familiares e é importante mantê-las em mente. No entanto, é igualmente importante, e ainda menos conhecido, que eles terminem do mesmo lado da história em relação à natureza e ao escopo da desobediência em massa. Como vimos, esta é uma história que desempenhou um papel muito profundo, embora pouco compreendido, na formação da memória pública, das políticas institucionais da Suprema Corte e na auto-compreensão dos movimentos de massa.

Por seus princípios, King, Howat, Gompers e Debs estavam envolvidos em uma rejeição da autoridade estatal. Eles criaram uma espécie de vazio legal, uma ausência de autoridade legal aceita – e o fizeram porque qualquer coisa menos radical que isso não seria capaz de medir a injustiça que eles enfrentavam e o poder que o Estado reunia contra eles.

Martin Luther King nos dias atuais
Aconexão de King com a ala radical do movimento trabalhista não era apenas uma questão do precedente em que ele foi condenado. No exato momento em que o juiz Stewart e a corte no caso Walker estavam retrocedendo à história da repressão trabalhista, para enviar King para a prisão, King estava ansioso para reabilitar algumas das táticas históricas do movimento trabalhista.

Ele passou a última parte de 1967 trabalhando na Campanha dos Pobres, que se baseava na crescente conscientização de King de que a segregação não era um mero problema regional a ser resolvido por táticas empregadas no Sul. Para King, a segregação era uma engrenagem na injustiça sistemática da economia política estadunidense como um todo. O escopo do problema exigia novas táticas:

No sul, uma marcha era um terremoto social; no norte, era uma exclamação fraca e breve de protesto. O protesto não-violento deve agora amadurecer para um novo nível para corresponder à impaciência negra aumentada e à rígida resistência branca. Esse nível mais alto é a desobediência civil em massa.

Mais do que uma interrupção apenas em nome da interrupção, o terremoto social que King imaginava teria que enfrentar instituições injustas onde elas eram mais vulneráveis. Essas novas táticas tinham que ser “uma força que interrompe o funcionamento [da sociedade] em algum ponto-chave”. Uma dessas táticas era a greve em massa.

Assim, King se viu, no final de sua vida, convocando greves de massa ilegais. Em 4 de fevereiro de 1968, apenas alguns meses depois do término de sua prisão em Birmingham e dois meses antes de seu assassinato, ele proferiu um sermão conhecido como “The Drum Major Instinct” (“Instinto de Tocador de Tambor”). Falando sobre Jesus, King disse:

Ele tinha só trinta e três anos quando a maré da opinião pública se voltou contra ele. O chamaram de desordeiro; o chamaram de encrenqueiro. Disseram que ele era um agitador. Ele praticou desobediência civil; ele desafiou decisões judiciais. E assim ele foi entregue a seus inimigos e passou pela zombaria de um julgamento.

O discurso era um verdadeiro ato de desafio. Não foi apenas o fato de King ter acabado de sair da prisão, tendo cumprido sua sentença pós-Walker, relacionada a uma liminar de Birmingham. King também estava reunindo apoio aos trabalhadores grevistas em Memphis, que, entre outras coisas, estavam enfrentando uma liminar contra seus piquetes e marchas de protesto.

Algumas semanas depois, King se dirigiu aos próprios grevistas. “E, assim como eu disse, não vamos deixar que nenhuma liminar nos mude de direção. Nós estamos indo.” Ele não estava apenas encorajando a desobediência, estava invocando a sua escalada:

Nunca esqueça que a liberdade não é algo dado voluntariamente pelo opressor. É algo que deve ser exigido pelos oprimidos. [...] Se vamos conseguir a igualdade, se vamos conseguir salários adequados, teremos que lutar por isso. Agora, quer saber? Talvez vocês precisem intensificar um pouco a luta [...] e simplesmente ter uma parada geral de trabalho na cidade de Memphis.

King até mesmo via a greve geral como um evento inicial para a própria campanha pelos pobres.

Martin Luther King foi assassinado em Memphis algumas semanas depois, enquanto convocava a desobediência civil em massa na forma de uma greve geral. Esse é o verdadeiro Martin Luther King: o radical e impopular. Essa é a pessoa que devemos celebrar e comemorar.

Sobre o autor
Alex Gourevitch é professor associado de ciência política na Brown University e autor de From Slavery To the Cooperative Commonwealth: Labour and Republican Liberty no século XIX.

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