O ataque de 7 de Outubro foi um choque para o sistema em Israel, que deixou claro que não há solução militar na Palestina. Mas os israelenses não prestariam atenção.
Haim Bresheeth-Žabner
Professor Associado de Pesquisa na SOAS
Soldados israelenses são vistos perto da fronteira israelense com Gaza em 9 de outubro de 2023. Arquivo: Ohad Zwigenberg/AP |
Tradução / Antes de 7 de outubro, Israel já era uma nação dividida. Após nove meses de manifestações massivas contra o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu e o seu golpe de Estado judicial, a polarização atingiu máximos históricos. O rancor e a determinação concentrados em derrubar o seu governo tinham galvanizado mais de metade do país. Notavelmente, aos protestos juntaram-se antigos oficiais do exército, da Mossad e do Shabak, bem como de empregados das principais empresas de alta tecnologia que formam a espinha dorsal do complexo industrial militar de Israel. Parecia que Netanyahu iria cair numa questão de meses. Enquanto todos os olhos se concentravam no esperado veredito do Supremo Tribunal sobre uma das alterações introduzidas pela legislação judicial aprovada pelo seu governo, ninguém prestava muita atenção a Gaza. Apesar das advertências dos serviços secretos egípcios, o ataque do Hamas de 7 de outubro foi uma surpresa. Para compreender plenamente o choque que provocou na sociedade israelita, é preciso recuar até ao momento da criação da nação israelita.
Uma instituição de construção nacional
A construção do exército israelita começou muito antes da criação de Israel. Os dirigentes sionistas na Palestina britânica estavam bem cientes da necessidade de dispor de uma força militar moderna para arrebatar a terra à população autóctone. Em 1946, as organizações sionistas controlavam menos de 7% dos territórios palestinianos. Ao longo das décadas de 1920 e 1930, três organizações rivais – a Haggana, a Irgun e a Lehi – treinaram e armaram secreta e ilicitamente dezenas de milhares de combatentes e construíram fábricas de armamento rudimentares mas eficazes. No final da guerra israelo-árabe de 1948, as suas fileiras tinham aumentado para 120.000 efetivos, depois de milhares de soldados britânicos que tinham combatido na Segunda Guerra Mundial e de sobreviventes dos campos de extermínio da Alemanha nazi se terem juntado a eles. Durante a guerra de 1948, esta força formidável derrotou facilmente os poucos milhares de soldados irregulares sem treino da Palestina e as forças muito inferiores dos países árabes vizinhos: Jordânia, Egito, Síria e Iraque. Como resultado, aproximadamente 750.000 palestinianos foram expulsos das suas terras e o novo Estado de Israel passou a controlar 78% da Palestina.
O recém-criado Israel tinha um grande exército, mas não tinha uma nação. Os 650.000 judeus da nova entidade política estavam longe de ser um grupo homogéneo: falavam muitas línguas, provinham de culturas diversas e não partilhavam qualquer ideologia política. O primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, apercebeu-se imediatamente disto. A nação que criaria seria uma nação em armas, num estado permanente que não seria nem de paz e nem de guerra. Para que este modo de existência se convertesse o modus vivendi de Israel, seria necessário um grande projeto de engenharia social que duraria décadas e exigiria uma renovação constante. Assim, tal como o Estado israelita foi criado pelo exército sionista, também a nação israelita o foi. Era, ao fim e ao cabo, a maior, mais rica e mais poderosa instituição de Israel.
O recrutamento de todos os adultos do sexo masculino, bem como de muitas mulheres, criou uma experiência comum a partir da qual começou a emergir uma identidade comum baseada no conflito com os palestinianos e as nações árabes. Através de uma longa série de guerras iniciadas por Israel, assim como de campanhas militares mais limitadas lançadas entre elas, criou-se uma identidade nacional inteiramente dependente do exército. Outros assuntos poderiam dividir os israelitas, mas praticamente a totalidade da população era membro do maior clube da sociedade israelita, que ultrapassava as fronteiras de classe, culturais, linguísticas e religiosas. O exército tornou-se uma organização em que todos os judeus israelitas confiavam, ao contrário de todas as outras organizações cívicas e estatais, que dividiam a população em vez de a unirem. Israel tornou-se assim uma democracia guerreira semelhante a uma Esparta moderna, com um exército de cidadãos judeus que incluía também uma pequena minoria de drusos e beduínos.
De um exército profissional a uma policia colonial
O exército israelita foi elevado na opinião pública a tal nível de prestígio que, mesmo quando as forças egípcias e sírias lhe desferiram um golpe devastador na guerra de 1973, as culpas recaíram principalmente sobre os políticos, quer a Primeiro-Ministra Golda Meir quer o Ministro da Defesa Moshe Dayan, e não sobre os oficiais do exército. A derrota parcial foi o primeiro sinal de um processo importante que tinha começado em 1967, nomeadamente a transformação do exército israelita numa força policial colonial glorificada.
As suas tropas, em vez de se concentrarem na ameaça de combater exércitos estrangeiros, foram incumbidas de subjugar mais de um milhão de palestinianos nos territórios recentemente ocupados da Cisjordânia e de Gaza. Quando o Estado israelita começou a colonizar ilegalmente essas terras, o exército foi destacado para controlar e facilitar o processo. Outro fator que acelerou ainda mais esta transformação foi a pacificação e a normalização das relações com os Estados árabes, conseguidas com a ajuda do aliado mais próximo de Israel, os Estados Unidos, que exerceram a pressão habitual sobre eles. Estes esforços diplomáticos deixaram completamente do lado os palestinianos. A normalização começou com a assinatura do tratado de paz com o Egito em 1979, seguido do tratado com a Jordânia em 1994. Seguiram-se os Acordos de Abraão de 2020, assinados com os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, Marrocos e o Sudão, que também normalizaram as suas relações, enquanto a Arábia Saudita declarava a sua vontade de seguir o exemplo.
Este processo eliminou a ameaça de ataques militares contra Israel por parte dos países árabes vizinhos, permitindo que o exército israelita se concentrasse na repressão da população palestiniana. Mais confiante do que nunca nos seus acordos de segurança, o Estado israelita tornou-se também muito mais extremista nas suas políticas em relação aos palestinianos, o que se agravou ainda mais em 2023, quando o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu regressou ao poder, impulsionado pelos Acordos de Abraão e apoiado por vários partidos de colonos de extrema-direita. O seu governo começou a orientar-se de forma ainda mais agressiva para a fase final do projeto sionista: despojar os palestinianos dos 12% da Palestina histórica ainda sob o seu controlo parcial. Recentemente, à medida que as tensões aumentavam na Cisjordânia devido aos pogroms executados pelos colonos, milhares de tropas israelitas foram transferidas para lá, depois de terem sido retiradas da operação de cerco de Gaza, para os proteger nos seus contínuos ataques à população palestiniana e para facilitar a expulsão de famílias palestinianas das suas terras.
No meio desta escalada, Netanyahu continuava a acreditar que era altamente improvável que se produzissem problemas com origem em Gaza, uma vez que o Hamas e a Jihad Islâmica não podiam fazer frente ao poderio do exército israelita, dada a sua superioridade tecnológica e o seu vasto aparelho de serviços secretos. Isto encaixava, em qualquer caso, na política israelita de ajudar o Hamas para enfraquecer a Autoridade Palestiniana. Os palestinianos eram uma nação desorganizada, pobre e isolada, desprovida de um verdadeiro exército e de qualquer tipo de armamento pesado: o que havia para se preocupar?
A comoção de 7 de outubro
Mas depois, do nada, veio o ataque do Hamas de 7 de outubro e o céu desabou. Uma pequena força palestiniana de pouco mais de 2.000 combatentes entrou em território israelita e apoderou-se de várias bases militares e bastiões no sul de Israel. Tal como em 1973, o ataque surpresa apanhou o exército israelita desprevenido e alguns soldados ainda estavam em roupa interior e sem as espingardas na mão quando se aperceberam do que estava a acontecer. Em poucas horas, recorrendo a uma combinação de ataques com mísseis, drones, armas ligeiras, motas e parapentes motorizados, os combatentes do Hamas conseguiram derrotar todas as forças que defendiam o teatro de operações de Gaza, matar centenas de soldados israelitas, massacrar civis e regressar a Gaza com mais de 250 reféns, que tencionavam trocar pelos milhares de prisioneiros palestinianos detidos nas prisões israelitas.
Após a comoção inicial, o exército israelita teve dificuldade em lançar uma resposta coordenada. Algumas unidades de reforço demoraram horas a chegar ao local e, quando chegaram, os combates com os combatentes do Hamas não foram de todo bem concebidos. Segundo alguns relatórios, civis feitos reféns e tropas israelitas podem ter sido mortos em fogo cruzado ou devido a disparos indiscriminados, ataques aéreos e fogo de tanques contra combatentes do Hamas escondidos nos kibutz. O exército não conseguiu restabelecer o controlo total do sul durante vários dias.
Talvez tudo isto não seja assim tão surpreendente, dado que o exército israelita nunca ganhou uma batalha de forma decisiva desde 1967 e não combate um exército regular desde 1973. Quando enfrentou pequenos grupos de resistência, como a OLP, o Hezbollah ou o Hamas, o seu sucesso foi modesto. A explicação para este facto é a transformação do exército israelita numa brutal força policial colonial, que durante décadas combateu sobretudo homens, mulheres e crianças desarmados. Atualmente, o exército israelita não tem treino para fazer uma guerra e subestima continuamente a capacidade e os recursos dos seus inimigos. O que foi particularmente impactante para os israelitas em relação ao ataque do Hamas foi o facto de os porta-vozes e comandantes do exército terem admitido o caos total e os inúmeros erros cometidos por todos os envolvidos na resposta militar ao ataque. Os israelitas aperceberam-se de que o seu exército não era capaz de os proteger, apesar do enorme orçamento de que dispõe, do grande número de soldados que mantém, das tecnologias avançadas que emprega, etc. O facto de esta dolorosa derrota ter sido infligida por um adversário tão inferior é o insulto mais doloroso à identidade militarizada de Israel.
Uma vez que a maioria dos israelitas adultos, homens e mulheres, serviram no exército israelita, a sua identidade, tanto pessoal como socio-nacional, deve-lhe mais do que a qualquer outra instituição em Israel. Quando o exército fracassa de forma tão espetacular, é um fracasso partilhado por todos os israelitas. A derrota do exército israelita é uma derrota para todos os judeus israelitas. A mudança sócio-política em Israel foi imediata e generalizada, deslocando os judeus israelitas para a direita racista a que muitos deles se opunham antes da crise de Gaza. Até académicos famosos, como o sociólogo Sami Shalom Chetrit, consideraram aceitável e necessário escrever, apenas dois dias após o ataque: “Em primeiro lugar, quero fazer um esclarecimento: todos os membros do Hamas, desde o chefe até ao mais reles assassino, morrerão. Não gosto de guerras (uma foi suficiente) mas não sou pacifista. Eu próprio dispararia”.
Esta atitude é típica de muitas reações da classe média e não está certamente entre as declarações mais inquietantes. Podemos ter a tentação de pensar que estas palavras foram escritas no calor do momento, mas não é esse o caso: a reação ao ataque do Hamas e a profunda humilhação que causou a todos os judeus israelitas empurrou-os a estender a todos os palestinianos a posição anteriormente assumida pelas milícias de colonos de extrema-direita protagonistas dos pogroms. “Toda a gente em Gaza é do Hamas” é hoje o lema normalizado de muitos jornalistas e colunistas, à medida que a situação se agrava diariamente e se intensifica com o apoio total da população. Não acredito que estes comportamentos sejam fenómenos passageiros ou reversíveis. E não há sinais de qualquer exame de consciência na opinião pública israelita, agora que é meridianamente claro que não há solução militar para o conflito colonial, a não ser que Israel decida empreender a eliminação de todos os habitantes de Gaza. Esta opção genocida já foi discutida por alguns ministros israelitas; um deles chegou mesmo a sugerir a utilização de armas nucleares para levar a cabo essa tarefa. Infelizmente, como salientou a ativista e jornalista Orly Noy num artigo recente, esta opção foi também adotada por vastos sectores da sociedade israelita.
Um documento interno, datado de 13 de outubro, que foi vazado para os meios de comunicação israelitas, deixa a descoberto o objetivo final de Israel após a “esperada derrota do Hamas”. Nele se descrevem as três fases da planificada tomada da Faixa de Gaza por Israel, que incluem uma campanha de bombardeamento centrada no norte, um ataque terrestre para limpar a rede subterrânea de túneis e bunkers e, finalmente, a expulsão dos civis palestinianos para a Península do Sinai, no Egipto, sem opção de regresso. Nos últimos dias, assistimos a este programa de três fases a tomar forma na terrível paisagem de destruição israelita em Gaza. No momento em que escrevo, Israel já matou mais de 10.000 palestinianos e feriu dezenas de milhares, para além de ter feito desaparecer quase três mil sob os escombros de edifícios destruídos. A ira de Israel não tem limites. A desumanização dos palestinianos por parte de Israel não é um sinal de força social, mas sim de uma doença terminal do tecido social do sionismo. Creio que é isso que provocará a sua dissolução.
O exército israelita, autor e verdugo da Nakba de 1948 e da Naksa de 1967, está agora a levar a cabo a Nakba de 2023. Trata-se de um ato aterrador de genocídio e limpeza étnica, que provavelmente não será o último. Ainda há mais de quatro milhões de palestinianos entre o rio e o mar. O plano para os expulsar está escrito há muito tempo. Os dirigentes do Ocidente, na sua criminalidade política e moral, subscreveram entusiasticamente este plano sem sequer o lerem. Se acreditam que isso ajudará Israel e trará estabilidade à região, devem estar muito iludidos.
O recrutamento de todos os adultos do sexo masculino, bem como de muitas mulheres, criou uma experiência comum a partir da qual começou a emergir uma identidade comum baseada no conflito com os palestinianos e as nações árabes. Através de uma longa série de guerras iniciadas por Israel, assim como de campanhas militares mais limitadas lançadas entre elas, criou-se uma identidade nacional inteiramente dependente do exército. Outros assuntos poderiam dividir os israelitas, mas praticamente a totalidade da população era membro do maior clube da sociedade israelita, que ultrapassava as fronteiras de classe, culturais, linguísticas e religiosas. O exército tornou-se uma organização em que todos os judeus israelitas confiavam, ao contrário de todas as outras organizações cívicas e estatais, que dividiam a população em vez de a unirem. Israel tornou-se assim uma democracia guerreira semelhante a uma Esparta moderna, com um exército de cidadãos judeus que incluía também uma pequena minoria de drusos e beduínos.
De um exército profissional a uma policia colonial
O exército israelita foi elevado na opinião pública a tal nível de prestígio que, mesmo quando as forças egípcias e sírias lhe desferiram um golpe devastador na guerra de 1973, as culpas recaíram principalmente sobre os políticos, quer a Primeiro-Ministra Golda Meir quer o Ministro da Defesa Moshe Dayan, e não sobre os oficiais do exército. A derrota parcial foi o primeiro sinal de um processo importante que tinha começado em 1967, nomeadamente a transformação do exército israelita numa força policial colonial glorificada.
As suas tropas, em vez de se concentrarem na ameaça de combater exércitos estrangeiros, foram incumbidas de subjugar mais de um milhão de palestinianos nos territórios recentemente ocupados da Cisjordânia e de Gaza. Quando o Estado israelita começou a colonizar ilegalmente essas terras, o exército foi destacado para controlar e facilitar o processo. Outro fator que acelerou ainda mais esta transformação foi a pacificação e a normalização das relações com os Estados árabes, conseguidas com a ajuda do aliado mais próximo de Israel, os Estados Unidos, que exerceram a pressão habitual sobre eles. Estes esforços diplomáticos deixaram completamente do lado os palestinianos. A normalização começou com a assinatura do tratado de paz com o Egito em 1979, seguido do tratado com a Jordânia em 1994. Seguiram-se os Acordos de Abraão de 2020, assinados com os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, Marrocos e o Sudão, que também normalizaram as suas relações, enquanto a Arábia Saudita declarava a sua vontade de seguir o exemplo.
Este processo eliminou a ameaça de ataques militares contra Israel por parte dos países árabes vizinhos, permitindo que o exército israelita se concentrasse na repressão da população palestiniana. Mais confiante do que nunca nos seus acordos de segurança, o Estado israelita tornou-se também muito mais extremista nas suas políticas em relação aos palestinianos, o que se agravou ainda mais em 2023, quando o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu regressou ao poder, impulsionado pelos Acordos de Abraão e apoiado por vários partidos de colonos de extrema-direita. O seu governo começou a orientar-se de forma ainda mais agressiva para a fase final do projeto sionista: despojar os palestinianos dos 12% da Palestina histórica ainda sob o seu controlo parcial. Recentemente, à medida que as tensões aumentavam na Cisjordânia devido aos pogroms executados pelos colonos, milhares de tropas israelitas foram transferidas para lá, depois de terem sido retiradas da operação de cerco de Gaza, para os proteger nos seus contínuos ataques à população palestiniana e para facilitar a expulsão de famílias palestinianas das suas terras.
No meio desta escalada, Netanyahu continuava a acreditar que era altamente improvável que se produzissem problemas com origem em Gaza, uma vez que o Hamas e a Jihad Islâmica não podiam fazer frente ao poderio do exército israelita, dada a sua superioridade tecnológica e o seu vasto aparelho de serviços secretos. Isto encaixava, em qualquer caso, na política israelita de ajudar o Hamas para enfraquecer a Autoridade Palestiniana. Os palestinianos eram uma nação desorganizada, pobre e isolada, desprovida de um verdadeiro exército e de qualquer tipo de armamento pesado: o que havia para se preocupar?
A comoção de 7 de outubro
Mas depois, do nada, veio o ataque do Hamas de 7 de outubro e o céu desabou. Uma pequena força palestiniana de pouco mais de 2.000 combatentes entrou em território israelita e apoderou-se de várias bases militares e bastiões no sul de Israel. Tal como em 1973, o ataque surpresa apanhou o exército israelita desprevenido e alguns soldados ainda estavam em roupa interior e sem as espingardas na mão quando se aperceberam do que estava a acontecer. Em poucas horas, recorrendo a uma combinação de ataques com mísseis, drones, armas ligeiras, motas e parapentes motorizados, os combatentes do Hamas conseguiram derrotar todas as forças que defendiam o teatro de operações de Gaza, matar centenas de soldados israelitas, massacrar civis e regressar a Gaza com mais de 250 reféns, que tencionavam trocar pelos milhares de prisioneiros palestinianos detidos nas prisões israelitas.
Após a comoção inicial, o exército israelita teve dificuldade em lançar uma resposta coordenada. Algumas unidades de reforço demoraram horas a chegar ao local e, quando chegaram, os combates com os combatentes do Hamas não foram de todo bem concebidos. Segundo alguns relatórios, civis feitos reféns e tropas israelitas podem ter sido mortos em fogo cruzado ou devido a disparos indiscriminados, ataques aéreos e fogo de tanques contra combatentes do Hamas escondidos nos kibutz. O exército não conseguiu restabelecer o controlo total do sul durante vários dias.
Talvez tudo isto não seja assim tão surpreendente, dado que o exército israelita nunca ganhou uma batalha de forma decisiva desde 1967 e não combate um exército regular desde 1973. Quando enfrentou pequenos grupos de resistência, como a OLP, o Hezbollah ou o Hamas, o seu sucesso foi modesto. A explicação para este facto é a transformação do exército israelita numa brutal força policial colonial, que durante décadas combateu sobretudo homens, mulheres e crianças desarmados. Atualmente, o exército israelita não tem treino para fazer uma guerra e subestima continuamente a capacidade e os recursos dos seus inimigos. O que foi particularmente impactante para os israelitas em relação ao ataque do Hamas foi o facto de os porta-vozes e comandantes do exército terem admitido o caos total e os inúmeros erros cometidos por todos os envolvidos na resposta militar ao ataque. Os israelitas aperceberam-se de que o seu exército não era capaz de os proteger, apesar do enorme orçamento de que dispõe, do grande número de soldados que mantém, das tecnologias avançadas que emprega, etc. O facto de esta dolorosa derrota ter sido infligida por um adversário tão inferior é o insulto mais doloroso à identidade militarizada de Israel.
Uma vez que a maioria dos israelitas adultos, homens e mulheres, serviram no exército israelita, a sua identidade, tanto pessoal como socio-nacional, deve-lhe mais do que a qualquer outra instituição em Israel. Quando o exército fracassa de forma tão espetacular, é um fracasso partilhado por todos os israelitas. A derrota do exército israelita é uma derrota para todos os judeus israelitas. A mudança sócio-política em Israel foi imediata e generalizada, deslocando os judeus israelitas para a direita racista a que muitos deles se opunham antes da crise de Gaza. Até académicos famosos, como o sociólogo Sami Shalom Chetrit, consideraram aceitável e necessário escrever, apenas dois dias após o ataque: “Em primeiro lugar, quero fazer um esclarecimento: todos os membros do Hamas, desde o chefe até ao mais reles assassino, morrerão. Não gosto de guerras (uma foi suficiente) mas não sou pacifista. Eu próprio dispararia”.
Esta atitude é típica de muitas reações da classe média e não está certamente entre as declarações mais inquietantes. Podemos ter a tentação de pensar que estas palavras foram escritas no calor do momento, mas não é esse o caso: a reação ao ataque do Hamas e a profunda humilhação que causou a todos os judeus israelitas empurrou-os a estender a todos os palestinianos a posição anteriormente assumida pelas milícias de colonos de extrema-direita protagonistas dos pogroms. “Toda a gente em Gaza é do Hamas” é hoje o lema normalizado de muitos jornalistas e colunistas, à medida que a situação se agrava diariamente e se intensifica com o apoio total da população. Não acredito que estes comportamentos sejam fenómenos passageiros ou reversíveis. E não há sinais de qualquer exame de consciência na opinião pública israelita, agora que é meridianamente claro que não há solução militar para o conflito colonial, a não ser que Israel decida empreender a eliminação de todos os habitantes de Gaza. Esta opção genocida já foi discutida por alguns ministros israelitas; um deles chegou mesmo a sugerir a utilização de armas nucleares para levar a cabo essa tarefa. Infelizmente, como salientou a ativista e jornalista Orly Noy num artigo recente, esta opção foi também adotada por vastos sectores da sociedade israelita.
Um documento interno, datado de 13 de outubro, que foi vazado para os meios de comunicação israelitas, deixa a descoberto o objetivo final de Israel após a “esperada derrota do Hamas”. Nele se descrevem as três fases da planificada tomada da Faixa de Gaza por Israel, que incluem uma campanha de bombardeamento centrada no norte, um ataque terrestre para limpar a rede subterrânea de túneis e bunkers e, finalmente, a expulsão dos civis palestinianos para a Península do Sinai, no Egipto, sem opção de regresso. Nos últimos dias, assistimos a este programa de três fases a tomar forma na terrível paisagem de destruição israelita em Gaza. No momento em que escrevo, Israel já matou mais de 10.000 palestinianos e feriu dezenas de milhares, para além de ter feito desaparecer quase três mil sob os escombros de edifícios destruídos. A ira de Israel não tem limites. A desumanização dos palestinianos por parte de Israel não é um sinal de força social, mas sim de uma doença terminal do tecido social do sionismo. Creio que é isso que provocará a sua dissolução.
O exército israelita, autor e verdugo da Nakba de 1948 e da Naksa de 1967, está agora a levar a cabo a Nakba de 2023. Trata-se de um ato aterrador de genocídio e limpeza étnica, que provavelmente não será o último. Ainda há mais de quatro milhões de palestinianos entre o rio e o mar. O plano para os expulsar está escrito há muito tempo. Os dirigentes do Ocidente, na sua criminalidade política e moral, subscreveram entusiasticamente este plano sem sequer o lerem. Se acreditam que isso ajudará Israel e trará estabilidade à região, devem estar muito iludidos.
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