Alexander Bogdanov desempenhou um papel fundamental no movimento socialista da Rússia nos anos que antecederam a revolução de 1917. Foi também um pensador extraordinariamente criativo que escreveu um romance de ficção científica sobre uma civilização socialista em Marte. Por James D. White.
James D. White
Bogdanov em 1903. |
Tradução / Alexander Bogdanov foi um dos pensadores mais versáteis e criativos da Rússia na era revolucionária. Para além de ativista político, foi um escritor prolífico sobre filosofia, economia, educação e cultura, cujas obras incluíam um romance de ficção científica sobre uma civilização socialista no planeta Marte.
No entanto, devido ao seu conflito com Vladimir Lenine, foi quase totalmente apagado dos registos históricos. Quando Bogdanov era mencionado nos tempos soviéticos, era exclusivamente do ponto de vista leninista. Só recentemente a vida e a obra de Bogdanov passaram a ser objeto de estudo académico. Bogdanov merece ser recordado como uma das figuras mais intrigantes do movimento socialista russo numa época tumultuosa.
Primeiros anos
“Bogdanov” era o pseudónimo de Alexander Alexandrovich Malinovsky, que nasceu na aldeia de Sokółka, na província de Grodno, a 22 de agosto de 1873. A sua infância e juventude foram passadas em Tula, uma cidade perto de Moscovo, onde o seu pai era inspetor escolar. Em 1892, Bogdanov entrou para a Universidade de Moscovo para estudar ciências naturais, especializando-se em biologia, mas dois anos mais tarde foi expulso devido à sua presença numa manifestação de estudantes e banido para a sua cidade natal de Tula.
Sendo um centro industrial, Tula albergava um grande número de trabalhadores, alguns dos quais tinham organizado grupos de estudo. Bogdanov foi convidado por um dos trabalhadores para dar uma aula de economia. Foi a partir desta aula de economia que surgiu a primeira publicação de Bogdanov – o seu Breve Curso de Ciência Económica, publicado em 1894.
Este é, de facto, uma exposição das ideias económicas de Karl Marx, embora tal não seja afirmado explicitamente no livro. A abordagem é histórica, começando com o coletivismo da sociedade primitiva e progredindo através da sociedade de escravos e do feudalismo até à era capitalista. Em edições posteriores do seu livro, Bogdanov acrescentou aperfeiçoamentos inspirados nos seus escritos filosóficos.
Um exemplo importante disto era a conceção de que, à medida que a sociedade progredia, deixava de ser indiferenciada, dividindo-se em dois grupos básicos: os que davam ordens e os que as executavam. Em períodos históricos posteriores, a sociedade dividiu-se ainda mais com o aparecimento de ofícios e profissões, cada um com o seu fundo de experiência particular.
Bogdanov previa que, com o aumento da mecanização da indústria, as máquinas realizariam as operações de rotina, deixando os trabalhadores a desempenhar principalmente funções de supervisão. Desta forma, o trabalhador adquiriria as características de um organizador, bem como de uma pessoa que executava ordens. Consequentemente, a antiga divisão de funções seria superada.
Teorizar no exílio
Apesar de ter sido impedido de retomar os estudos na Universidade de Moscovo, Bogdanov conseguiu obter autorização para estudar medicina na Universidade de Kiev e para se graduar como médico. Por propaganda socialista junto dos trabalhadores, foi preso em novembro de 1899. Após seis meses de prisão em Moscovo, foi exilado primeiro em Kaluga e depois em Vologda, onde passou três anos.
O exílio de Bogdanov em Vologda foi um período importante no seu desenvolvimento intelectual. No processo de debate com outros exilados políticos, em particular com Sergei Berdyaev, formulou algumas das suas ideias mais características. Uma delas foi a conceção do socialismo como um estado de desenvolvimento contínuo, uma visão que incorporou no seu romance de ficção científica Estrela Vermelha.
Estrela Vermelha, publicado em 1908, retratava uma civilização socialista de alta tecnologia em Marte através dos olhos do seu narrador, um cientista e revolucionário russo que é levado ao planeta por um emissário marciano. Inspirou escritores de ficção científica posteriores, tanto na União Soviética como no Ocidente.
Enquanto esteve em Vologda, Bogdanov escreveu também o primeiro dos três volumes da sua principal obra do período, Empiriomonismo. O segundo volume foi publicado durante a revolução de 1905 e o terceiro em 1906.
A formação de Bogdanov como cientista natural e médico reforçou a sua convicção de que a filosofia devia incorporar as duas descobertas científicas mais importantes da época: a teoria da seleção natural e a conservação da energia. Encontrou inspiração nas obras dos escritores que tinham adotado esta abordagem, Richard Avenarius e Ernst Mach.
Bogdanov tomou a Crítica da Experiência Pura de Avenarius como ponto de partida para o desenvolvimento das suas próprias ideias filosóficas. Considerava que uma das lacunas da obra de Avenarius era o facto de abordar a questão do conhecimento do ponto de vista do indivíduo humano e não da sociedade como um todo.
Para Bogdanov, o critério da verdade objetiva era a sua “validade social”. A ideia do coletivo humano era o ponto de vista a partir do qual a validade do conhecimento deveria ser julgada. O corolário deste argumento era que o ponto de vista do indivíduo isolado dava uma visão fragmentada da realidade e gerava todos os tipos de fetichismo, incluindo o fetichismo da mercadoria no sentido do termo de Marx.
Bogdanov e Lenine
O Segundo Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo, com a sua divisão nas fações bolchevique e menchevique, teve lugar enquanto Bogdanov estava no seu exílio em Vologda. No entanto, Bogdanov conseguiu manter-se a par dos acontecimentos através da correspondência com Lenine. Na primavera de 1904, visitou Lenine e a sua mulher em Genebra.
Bogdanov tomou o partido dos bolcheviques porque considerava que os mencheviques estavam errados por terem desrespeitado as resoluções do Congresso. Ele não concordava com a conceção que Lenine tinha avançado no seu panfleto “O que fazer?”, segundo a qual os trabalhadores eram incapazes de chegar ao ideal socialista sem a ajuda da intelligentsia socialista. Para Bogdanov, era a intelligentsia indisciplinada que precisava do contributo de disciplina que os trabalhadores podiam providenciar.
Na altura da visita de Bogdanov, Lenine estava isolado politicamente, tendo os mencheviques ganho o controlo das instituições do partido e do seu jornal, o Iskra. Bogdanov ajudou Lenine a fazer dos bolcheviques uma força política séria, encontrando financiamento para um jornal que Lenine pudesse editar, recrutando os seus contactos para contribuírem com artigos para o jornal e organizando um Terceiro Congresso do Partido, ao qual só compareceram bolcheviques.
No início da revolução, em janeiro de 1905, enquanto Lenine estava em Genebra a editar o jornal Vpered (Avante), Bogdanov estava em São Petersburgo a dirigir a organização bolchevique na Rússia. Embora as circunstâncias exigissem uma liderança centralizada, Bogdanov insistia que esta devia estar sujeita ao controlo democrático dos membros do partido – ou seja, devia haver aquilo a que ele chamava “centralismo democrático”.
Como membro do Comité Executivo do Soviete de São Petersburgo, Bogdanov foi preso em dezembro de 1905 e só saiu da prisão em maio de 1906. A crescente repressão política do regime czarista obrigou Bogdanov e Lenine a deixarem a Rússia em direção à Europa Ocidental no final de 1907.
Entre duas revoluções
No rescaldo da revolução de 1905, surgiram sérias divergências entre Bogdanov e Lenine. Bogdanov acreditava que os fatores que tinham provocado a revolução de 1905 ainda funcionavam e que uma nova vaga revolucionária não tardaria a surgir. Isto significava que os quadros dos trabalhadores deviam ser formados nas escolas do partido em preparação para a futura revolução.
Lenine, por outro lado, defendia que o período revolucionário tinha chegado ao fim. A melhor tática a utilizar agora era o parlamentarismo, tirando partido do parlamento (Duma) que o governo czarista tinha sido forçado a conceder. Bogdanov objetou que a participação na Duma não deveria ser a única tática dos bolcheviques e que a fração da Duma do partido não deveria ser autorizada a agir em desacordo com a política do partido.
Exigiu que fosse feito um ultimato à fração: ou aderiam à política do partido ou seriam retirados da Duma. Lenine, por seu lado, acusou Bogdanov das heresias do “revogacionismo” e “ultimatismo” e de ter criado uma base política na escola do partido que organizou na ilha de Capri.
A fim de minar a posição de Bogdanov como filósofo, Lenine publicou a obra polémica Materialismo e Empirio-Criticismo em 1909. Esta obra não confrontava diretamente as ideias de Bogdanov, mas atacava pensadores que Lenine afirmava terem influenciado Bogdanov, principalmente Mach e Avenarius.
Na sua tentativa de mostrar que Bogdanov era um idealista e não um marxista, Lenine atribuiu a Bogdanov ideias que ele não defendia. Em resposta, Bogdanov publicou o panfleto Fé e Conhecimento, que apontava as distorções de Lenine e também a atitude quase teológica que tanto Lenin quanto Georgii Plekhanov tinham em relação aos escritos de Marx e Friedrich Engels.
Embora Bogdanov se mantivesse firme no debate teórico, Lenine conseguiu derrotá-lo politicamente. Numa reunião especialmente convocada do Centro Bolchevique, em junho de 1909, Lenine e os seus apoiantes expulsaram Bogdanov da fração bolchevique do partido. Embora a ação fosse ilegítima, o esperado congresso do partido em que poderia ser anulada não se concretizou. A partir de então, Bogdanov permaneceu fora de qualquer partido político.
Respondendo à guerra
Aproveitando a amnistia concedida em 1913 para assinalar o 300º aniversário da dinastia Romanov, Bogdanov regressou à Rússia e estabeleceu-se em Moscovo. Quando a guerra rebentou, em 1914, foi mobilizado para o exército como médico júnior. Ficou chocado com o colapso da Segunda Internacional e com a propensão da classe operária para sucumbir à febre da guerra que se abateu sobre os países beligerantes.
Lenine explicou famosamente este fenómeno em termos da presença, no seio do proletariado, de uma “aristocracia” que beneficiava dos lucros do imperialismo. Para Bogdanov, porém, a reação dos trabalhadores à guerra significava que tinham sido esmagados pela força da cultura burguesa. Acreditava que existia uma cultura proletária coletivista em embrião mas que precisava de ser consideravelmente desenvolvida para resistir ao ambiente individualista promovido pela burguesia.
Um tema recorrente nos escritos de Bogdanov é a fragmentação do conhecimento humano provocada pela divisão do trabalho e o surgimento de ofícios e profissões. A sua principal obra é Tectologia, a Ciência Universal da Organização, que iniciou em 1913. Procura ultrapassar esta fragmentação revelando padrões que atravessam as disciplinas e são igualmente aplicáveis a coisas, pessoas e ideias.
Para Bogdanov, exemplos destes padrões eram a “Seleção” e a “Lei dos Menos”. No caso do primeiro, defendia que o princípio da seleção era aplicável não só à biologia mas a todas as esferas da existência, uma vez que todos os sistemas sobreviviam ou pereciam em função da sua relação com o ambiente, de acordo com a sua capacidade ou incapacidade de adaptação.
A Lei dos Menos também tinha uma aplicação universal: em qualquer sistema, o todo dependia do mais fraco dos elementos que o compunham. A força de uma corrente era determinada pelo seu elo mais fraco; uma esquadra só podia navegar tão depressa quanto o seu navio mais lento; uma cadeia lógica de argumentos entraria em colapso se um dos seus elos não pudesse resistir à crítica. Bogdanov via a Tectologia como uma enciclopédia proletária – uma obra que integrava o conhecimento e a experiência de uma forma que uma futura sociedade coletivista necessitaria.
Embora muitos socialistas estivessem otimistas quanto à possibilidade de uma sociedade socialista emergir das economias de guerra centralizadas que foram estabelecidas nos países beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial, Bogdanov não partilhava desta opinião. Considerava estas economias como uma forma de “comunismo de guerra” e sintoma de uma economia em declínio.
Revolução Cultural
Quando o regime czarista entrou em colapso, em fevereiro de 1917, ele esperava que isso desse início a uma nova ordem democrática na Rússia. No entanto, viu nos bolcheviques as mesmas características autoritárias que tinham caracterizado o czarismo. A solução, na opinião de Bogdanov, era uma “revolução cultural”, um movimento que, pelo menos, escolarizasse a sociedade russa para a democracia.
Em 1918, Bogdanov recusou um convite para se juntar ao novo governo soviético, considerando-o demasiado autoritário e com falta de “cooperação entre camaradas”. No entanto, em 1921, deu um importante contributo para o sistema soviético ao formular os princípios do planeamento económico soviético.
Bogdanov defendeu que, uma vez que todos os ramos da economia eram interdependentes, deveria ser mantido um equilíbrio entre os vários sectores. Em conformidade com a lei tectológica dos menores, argumentava que o crescimento de uma economia era limitado pela dimensão do mais atrasado dos ramos básicos de produção. Era a estes ramos que devia ser dada prioridade, canalizando para eles os recursos e a força de trabalho. Estes princípios serviram de base ao planeamento económico soviético até Joseph Estaline os ter abandonado em 1929.
Entre 1918 e 1920, a influência de Bogdanov atingiu o seu auge. Os seus escritos eram as obras-padrão sobre teoria socialista e marxista, enquanto o seu romance Estrela Vermelha continha a única visão de uma sociedade socialista que os bolcheviques tinham à sua disposição.
As suas ideias inspiraram o Proletkult, uma organização popular com ramos em toda a república soviética e com uma secção internacional. Em 1920, Lenine conseguiu acabar com a independência da Proletkult, subordinando-a ao Comissariado da Educação. No mesmo ano, lançou uma campanha contra Bogdanov pessoalmente, fazendo com que o seu livro Materialismo e Empiriocriticismo fosse republicado com uma introdução que condenava a Tectologia e outras obras teóricas de Bogdanov.
A campanha anti-Bogdanov culminou com a prisão de Bogdanov pela Administração Política Estatal (GPU) em setembro de 1923. Era suspeito de ter ligações ideológicas com o grupo de oposição Verdade dos Trabalhadores, mas conseguiu convencer Felix Dzerzhinsky, o chefe da GPU, da sua inocência. No total, Bogdanov passou cinco semanas na prisão e considerou-se sortudo por ter escapado com vida. Após este incidente, tornou-se mais difícil para Bogdanov publicar os seus escritos ou dedicar-se a qualquer atividade académica.
O legado de Bogdanov
Estas restrições deixaram Bogdanov com a investigação médica como a sua principal esfera de atividade. Por sugestão sua, o Comissariado Soviético da Saúde criou um Instituto de Hematologia e Transfusão de Sangue em 1926 e nomeou Bogdanov seu diretor. Nessa altura, o processo de transfusão de sangue estava na sua fase inicial e muito sobre as características do sangue permanecia desconhecido.
Para Bogdanov, a transfusão de sangue tinha um significado especial, pois considerava-a uma forma de integração social e tinha-a descrito dessa forma em Estrela Vermelha. Em março de 1928, Bogdanov tentou efetuar uma troca de sangue com um estudante da Universidade de Moscovo, um procedimento habitual no instituto. No entanto, as incompatibilidades entre o sangue de Bogdanov e o do estudante, que não podiam ser previstas na altura, fizeram com que a operação falhasse. Bogdanov sofreu quinze dias de doença dolorosa e morreu a 7 de abril de 1926.
Bogdanov é uma figura notável na história do movimento revolucionário russo e nos primeiros anos do Estado soviético. Como pensador socialista, as suas obras são de interesse permanente. Devido ao facto de ter caído em desgraça com Lenine e de se ter tornado uma pessoa desconhecida a partir de 1920, a sua existência tem sido pouco notada pelos historiadores.
Nos últimos anos, porém, o legado intelectual de Bogdanov começou a ser redescoberto e o seu papel como pioneiro da teoria dos sistemas a ser reconhecido. Mas ainda há muito a fazer para dar a Bogdanov o lugar que ele realmente merece na história moderna da Rússia.
Colaborador
James D. White é professor de História da Rússia e da Europa de Leste na Universidade de Glasgow. Entre as suas obras contam-se Lenine: The Practice and Theory of Revolution e Red Hamlet: The Life and Ideas of Alexander Bogdanov.
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