12 de novembro de 2023

Israel: A esquerda em perigo

Desde 7 de outubro, a esquerda de Israel tem enfrentado uma repressão sem precedentes. Suas ideias poderiam, no entanto, apontar o caminho a seguir?

Dahlia Scheindlin


Manifestantes pedindo um cessar-fogo em um protesto exigindo o retorno dos reféns mantidos em Gaza, Tel Aviv, Israel, 28 de outubro de 2023. (Ahmad Gharabli/AFP/Getty Images)

Tradução / Depois do 7 de outubro, quando o Hamas cometeu o pior ataque terrorista da história de Israel, a esquerda do país se preparou para enfrentar a fúria da direita. Faz quase 23 anos que a esquerda não está no poder, mas os comentaristas israelenses mais populares raramente perdem uma oportunidade de culpá-la pelos infortúnios do país. Passado o choque inicial, figuras influentes da direita, como o colunista Kalman Liebskind, começaram a argumentar que as causas mais profundas do ataque do Hamas estavam na adoção de políticas que os israelenses associam à esquerda – entre elas, todas as retiradas de terras ocupadas, desde os acordos de Oslo da década de 1990 até à “retirada” de Gaza em 2005 (quando Israel desmantelou os assentamentos judaicos, mas manteve enorme controle sobre a vida na Faixa de Gaza a partir do entorno).

Embora nunca tenha sido implementada a solução dos dois Estados – que propugna um Estado judeu e um Estado palestino –, Yishai Fleisher, porta-voz dos colonos judeus de Hebron, escreveu no X, o ex-Twitter, que a retirada de Gaza em 2005 “foi fruto da mentalidade que apoia a solução de dois Estados”. E completou: “Gaza ficou ‘livre’ de todos os judeus e foi entregue à Autoridade Palestina; logo depois, foi tomada pelo Hamas, e agora vimos o massacre de 7 de outubro.” O israelense Eugene Kontorovich, jurista acadêmico de direita, escreveu: “Imaginem o que eles poderiam ter feito se tivessem um Estado… Teríamos cem vezes mais mortos.” Um artigo publicado no Channel 7, veículo de extrema direita, afirmava que a determinação da esquerda em acabar com a ocupação fez desabar sobre Israel um “show de horrores”. E, enquanto Israel passava do luto para a guerra, a própria ideia de que se podia confiar nos palestinos ou tratá-los como iguais se tornou, para muitos, intolerável.

Ao longo dos anos, os israelenses de esquerda se habituaram ao ressentimento ou à hostilidade total da direita. As comunidades de esquerda sentem até uma espécie de altivez desafiadora ao se manterem firmes e atuantes. Mas, mesmo antes do 7 de outubro, a esquerda israelense pró-­paz e antiocupação já estava reduzida a uma minúscula parte da população. Ao que parece, o que aconteceu naquele dia terá um de dois resultados: ou vai matar os últimos vestígios da esquerda, ou, contraintuitivamente, vai dar um novo sentido de urgência aos valores da esquerda.

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Na política israelense, quem fala em “esquerda” está se referindo, sobretudo, ao conflito israelense-palestino e às relações entre judeus e árabes. Qualquer associação a temas sociais ou econômicos, ou mesmo a causas progressistas, é secundária. Aos ouvidos dos israelenses, “esquerda” significa a ideia de que palestinos e israelenses podem lidar com suas diferenças e suas terras, viver de forma mais pacífica, ainda que não perfeita, e talvez, um dia, até se reconciliarem. Tenho defendido esses pontos de vista durante toda a minha vida adulta e passei minha carreira trabalhando com partidos políticos, grupos da sociedade civil e meios de comunicação social para defendê-los – o que, por vezes, pode levar ao desespero.

Os israelenses comprometidos com essa visão têm, tal como o resto do país, sofrido com as perdas do 7 de outubro. Muitos dos kibutzim no Sul mais atingidos pelo ataque do Hamas eram de tendência de esquerda, e alguns eram o lar de pacifistas em atividade. Ziv Stahl, diretora do Yesh Din, um grupo de apoio jurídico que combate as políticas de ocupação que violam os direitos humanos dos palestinos, escondeu-se com a sua família em Kfar Aza enquanto o Hamas saqueava o kibutz e matava residentes, incluindo alguns dos seus familiares e amigos de longa data. Amir Tibon, do jornal Haaretz, sobreviveu ao que mais tarde chamou de horas de “gelar o sangue”, encolhido com sua família no kibutz Nahal Oz, enquanto seu pai, um general reformado, juntava-se às pressas aos esquadrões das Forças de Defesa de Israel (FDI) para combater os atacantes do Hamas e libertar seu filho, nora e netos.

Na lista dos mortos está um jovem paramédico árabe que insistiu em ficar no festival de música atacado pelo Hamas para tratar os feridos. Está um ativista do Breaking the Silence, formado por oficiais militares que testemunham sobre os males da ocupação. Está um cientista político envolvido no movimento pacifista. E está Vivian Silver, uma indomável pacifista de 74 anos, uma figura querida para quase todos os envolvidos nessas atividades. De início, suspeitou-se que Silver tinha sido raptada e levada para Gaza. Foram necessárias cinco semanas para identificar seus restos mortais no kibutz Be’eri, onde morava.

Ao contrário da maioria dos israelenses, alguns ativistas da paz e dos direitos humanos também têm amigos, parceiros e colegas de trabalho em Gaza. Eles estão atormentados com a escala gigantesca das ruínas – pelo castigo coletivo e pelo espectro da expulsão em massa. Depois de uma fase inicial de choque e até de paralisia, algumas das comunidades de esquerda fizeram tentativas de renovar o ativismo e a crítica política. Ziv Stahl, do grupo Yesh Din, escreveu no Haaretz que está mais convencida do que nunca de que esmagar Gaza só servirá para continuar o banho de sangue.

Tami Yakira, organizadora do Shatil, grupo progressista da sociedade civil, me disse ao telefone que o bloco antiocupação vinha crescendo. De início, nos protestos contra o plano antidemocrático de revisão judicial do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, os manifestantes antiocupação compareciam em número limitado. Em seguida, mas ainda antes da guerra, começaram a ficar mais expressivos. Depois do 7 de outubro, Tami Yakira me contou que suas conversas iniciais com grupos e ativistas pacifistas, antiocupação e de direitos humanos passaram a se centrar nos seguintes aspectos: “Expressar o luto pela violência; a necessidade de trabalhar em conjunto, como judeus e árabes, para libertar os reféns; acabar com a ocupação, uma vez que acreditamos na democracia... e apoiar um cessar-fogo e uma solução diplomática.”

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Atividades incipientes como estas têm enfrentado uma poderosa hostilidade. Adam Shinar, professor de direito constitucional na Universidade Reichman, em Israel, escreveu no X que a liberdade de expressão está sendo gravemente prejudicada. “A situação é particularmente grave, porque as agressões são dirigidas a um só lado: a esquerda e a comunidade árabe.” Ran Goldstein, diretor do Centro para a Proteção do Espaço Cívico, um projeto para proteger a sociedade civil dos extremistas de direita, me disse que “a atual perseguição aos judeus e árabes de esquerda não se assemelha a nenhuma guerra anterior de que eu me lembre”.

A extrema direita tem ameaçado e assediado ativistas da esquerda, em particular cidadãos palestinos, que criticam publicamente a guerra ou simpatizam com as vítimas de Gaza. Os trolls de direita vasculham suas mensagens antigas nas redes sociais, e alguns árabes em Israel foram investigados, presos ou demitidos dos seus empregos por expressarem sentimentos antiguerra. Os ativistas criaram uma base de dados que documenta centenas de incidentes de assédio de vários tipos contra árabes em Israel, cometidos por parte de cidadãos, da polícia e do Exército. Ran Goldstein me contou que a polícia investigou um professor árabe por ter sido fotografado usando – cinco anos antes – um “xale palestino”. Mas, completou Goldstein, não tomou qualquer medida semelhante contra aqueles que insistem que, na Faixa de Gaza, não há inocentes, ou defendem o aniquilamento de Gaza ou a transferência maciça de populações palestinas.

Os judeus israelenses também têm sido alvo de intimidação. Em 13 de outubro, Israel Frey, conhecido jornalista religioso de esquerda, publicou um vídeo nas redes sociais no qual rezava pelas vítimas da guerra – incluindo os civis de Gaza. Na noite seguinte, bandidos se aglomeraram à porta de sua casa, lançando foguetes que estilhaçaram a janela de um vizinho. Por volta das duas e meia da manhã, Frey teve que fugir de casa com escolta policial. Outro ativista comunitário muito popular, cujos pais foram assassinados pelo Hamas, deu uma entrevista num podcast em que apelava à paz a longo prazo para pôr fim ao ciclo de luto e banhos de sangue. A empresa de mídia que gravou a entrevista logo começou a receber ameaças por telefone, seguidas de um arrombamento, com danos extensos aos seus escritórios. Um professor de história judaica foi demitido e preso por ter publicado posts contra a guerra nas redes sociais – a maioria deles anteriores à guerra atual.

Os israelenses de direita têm feito o chamado doxxing – expressão em inglês para designar a divulgação de dados pessoais – contra ativistas de esquerda. É uma forma de ameaçá-los e intimidá-los. O Haaretz noticiou que os dados pessoais de um cineasta de esquerda foram postados num canal público do Telegram, depois que ele lamentou a morte de civis em Gaza, enquanto pedia a libertação dos reféns israelenses. Uma visita a esse canal revela tanto a vulgaridade quanto a precisão: uma postagem mostra mensagens de um judeu israelense que se opõe à ocupação e à guerra, uma das quais é antiga, de 2021. A postagem seguinte mostra uma fotografia da sua casa (possivelmente vinda do Google Street View), com a localização no Google Maps, seu nome, número de identidade, data de nascimento, telefone e detalhes sobre o seu local de trabalho. Em outro post, alguém escreveu: “Mandem sugestões de apoiadores do terrorismo para encontrarmos.” Em outro: “Me deem uns árabes para foder.”

“Está havendo uma caça às bruxas contra qualquer pessoa que não siga a linha do consenso”, disse Goldstein. O chefe da polícia israelense avisou que manifestações de solidariedade a Gaza não seriam toleradas. Em um comunicado, disse que “colocaria [esses manifestantes] em ônibus” para Gaza. Em meados de outubro, a polícia dispersou em Haifa uma manifestação contra a guerra que apoiava a população de Gaza. Recentemente, a polícia recusou dar autorização para manifestações nas cidades árabes de Umm al-Fahm e Sakhnin. Chegaram petições contra essa decisão no Supremo Tribunal, mas a corte rejeitou todas. (Agora, a polícia disse que passará a analisar pedidos de autorização caso a caso.) O governo também está procurando adotar medidas para flexibilizar o uso de munição real nas manifestações, semeando ainda mais medo entre os manifestantes.

Tudo isso desencorajou quem já se manifestou abertamente contra as guerras anteriores de Israel, ou que estaria inclinado a defender um cessar-fogo. Entretanto, a esquerda sofreu golpes menos visíveis, mas possivelmente de maiores consequências. O grupo de direita NGO Monitor (Monitor das ONGs), que há muito organiza campanhas para cortar os financiamentos estrangeiros a grupos de esquerda, se gabou recentemente de ter pressionado o governo suíço a suspender todo o seu financiamento a importantes organizações de proteção aos direitos humanos, incluindo a Gisha, entidade israelense que trabalha principalmente com direitos humanos em Gaza.

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Em épocas difíceis, os israelenses geralmente se voltam para a direita. Nas últimas duas décadas, as posições básicas da esquerda – defender acordos nas esferas política e territorial, reciprocidade dos direitos nacionais e compromisso com a paz – perderam a simpatia da maioria dos israelenses. Os acordos de Oslo selados nos anos 1990, cujos apoiadores esperavam que conduzissem à paz, acabaram descambando para a violência, incluindo o ataque terrorista contra palestinos em oração, cometido pelo judeu israelense Baruch Goldstein, e uma série de terríveis ataques suicidas do Hamas. Em 1995, um militante da extrema direita assassinou Yitzhak Rabin, o primeiro-ministro que liderara os acordos de Oslo. No ano seguinte, os israelenses rejeitaram o herdeiro político de Rabin e elegeram Netanyahu.

Ehud Barak foi o último líder que a maioria dos israelenses considerava de esquerda. Barak assumiu o poder em julho de 1999. Um ano depois, desmoronaram suas negociações de paz com Yasser Arafat, então líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), desencadeando a segunda grande revolta palestina, a Intifada de Al-Aqsa, e uma onda de ataques suicidas contra alvos civis em Israel. Barak perdeu as eleições no ano seguinte por uma enorme diferença de 25 pontos percentuais. Depois disso, segundo pesquisas que realizei, cerca de metade dos israelenses que se identificavam com a esquerda passaram para o centro, e a direita começou a ganhar apoio. Na década de 2010, cerca de metade dos judeus israelenses se considerava de direita. Hoje esse número vai de 64% a 68%. Um conjunto de pesquisas realizadas nos últimos cinco anos mostram que apenas cerca de 11% a 15% dos cidadãos israelenses judeus se consideram de esquerda e, ao que parece, os ataques do 7 de outubro vão reduzir ainda mais esses números. Outro estudo, feito no final de outubro pelo aChord, um centro de pesquisas em psicologia social afiliado à Universidade Hebraica de Jerusalém, mostrou que esse índice caíra para 10%. Talvez, em breve, seja contado com um só dígito.

A maioria dos judeus israelenses de esquerda se define como “esquerda moderada”, se considera sionista e espera que uma solução de dois Estados preserve uma maioria judaica em Israel, mas ponha fim à ocupação. (Os partidos de centro, por sua vez, não usam mais o termo “solução de dois Estados” em suas campanhas políticas, e até mesmo os partidos de esquerda dificilmente fazem campanha sobre o assunto.) Os que se consideram de “esquerda” ou “esquerda firme”, representando apenas alguns pontos percentuais da população total do país, priorizam os direitos humanos e a democracia, acima da identidade nacional judaica, e se opõem à ocupação territorial. Esse grupo, no entanto, raramente se mobiliza por uma solução política específica. A maioria, se pressionada, aceitaria uma solução de dois Estados, mas alguns preferem um único Estado democrático abrangendo todos os seus cidadãos. Essa ideia, porém, nunca ganhou tração na região. Hoje é difícil encontrar até mesmo esquerdistas radicais que a promovam ativamente – e muito menos quem os ouça.

Em contraste, formas alternativas do modelo de dois Estados, tais como uma federação ou uma confederação, vêm ganhando significativo apoio na esquerda. O grupo “Uma Terra para Todos” – de cujo conselho faço parte – tem como visão uma confederação entre dois Estados, na qual os cidadãos de cada Estado teriam liberdade de movimento e o direito de viver no outro Estado como residentes cumpridores da lei. Nos termos dessa proposta, Jerusalém continuaria sendo uma cidade compartilhada, e não dividida, e os dois Estados iriam cooperar em áreas como segurança, economia, recursos naturais e outros temas, conforme achassem adequado. Em dezembro de 2022, realizei uma pesquisa sobre esse assunto para o projeto Palestine/Israel Pulse. Dois terços dos judeus israelenses de esquerda apoiavam a ideia de uma confederação entre um Estado israelense e um Estado palestino.

Esses modelos alternativos, porém, ainda não aparecem no discurso público. Em ciclos eleitorais recentes, muitos militantes de esquerda perderam a esperança de alcançar a paz e deram prioridade a desalojar Netanyahu do governo, apoiando grandes partidos centristas. Em novembro passado, um dos dois partidos sionistas de esquerda, o Meretz, não conseguiu atingir a cláusula de desempenho eleitoral pela primeira vez em seus trinta anos de história. Enquanto isso, líderes nacionalistas e populistas conseguiram convencer toda uma geração de israelenses de que a esquerda é hipócrita ou traidora.

Uma boa parte dessa raiva se deve à parceria da esquerda com celebridades internacionais que criticam a ocupação – todos eles, desde Roger Waters até a Assembleia Geral da ONU, são rotulados pela maioria dos israelenses como anti-­Israel. Mesmo os israelenses que se alinham às posições majoritárias e não comungam com extremismos já começaram a se indignar contra seus compatriotas que “recorrem ao mundo” para difamar seu próprio país. É uma acusação que sucessivos governos vêm usando desde 2009 para justificar políticas agressivas e leis destinadas a deslegitimar e sabotar o apoio internacional a grupos de direitos humanos.

Nesse contexto, israelenses que passaram a vida como ativistas antiocupação ficaram ainda mais arrasados quando alguns de seus aliados progressistas no exterior adotaram atitudes incompreensíveis, como a de minimizar o ataque do Hamas, deixar de condená-lo, omitir menções aos reféns civis, ou justificar as atrocidades como se fossem algum tipo de manobra militar legítima. Um colunista do Haaretz escreveu que ele está menos irado contra o Hamas do que com pessoas que ele acreditava estarem do seu lado: “A raiva vem do fato de que você percebe, de repente, que o seu círculo de amigos – ou o que você imaginava ser seu círculo de amigos – está, na verdade, se voltando contra você.” Muitos na esquerda israelense se sentem profundamente sozinhos. Talvez eles venham a desistir e migrar para a direita.

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A queda da esquerda poderia parecer inexorável, mas existem algumas forças políticas e sociais, embora tênues e frágeis, que podem dar às ideias de esquerda uma chance de ressurgimento. Uma delas é a noção persistente e incômoda de que talvez a esquerda estivesse certa esse tempo todo. Estratégias militares, incluindo as inúmeras “rodadas” de combates que Israel empreendeu contra o Hamas desde 2008, nunca funcionaram. Administrar ou “reduzir” o conflito – filosofia que dominou a política israelense durante mais de uma década – foi um fracasso mortal. Seus defensores precisam assumir a responsabilidade disso. Ninguém, com boa-fé, pode prometer que uma resolução política abrangente irá salvar todas as vidas. Mas o fato é que essa resolução nunca foi alcançada ou implementada – e é o único caminho que falta tentar.

Há precedentes históricos – momentos nos quais a violência traumática contra Israel provocou concessões, ou um caminho em direção à paz. Desde 7 de outubro, os defensores de um avanço diplomático vêm lembrando que a Guerra do Yom Kippur, em 1973, estabeleceu as bases políticas para selar a paz com o Egito em 1979. Do mesmo modo, a Primeira Intifada palestina, em 1987, deu lugar aos acordos de Oslo, iniciados seis anos depois. (Alguns também argumentam que a violência da Segunda Intifada, iniciada em 2000, levou Israel a desmantelar os assentamentos em Gaza, mas não se pode dizer que a retirada de Israel, ocorrida em 2005, visava promover uma resolução pacífica abrangente do conflito.)

Se o horror do 7 de outubro e o subsequente banho de sangue provocarem uma mudança em Israel rumo a uma resolução política do conflito, quem vai defender essa ideia? No momento, os remanescentes da esquerda são os únicos a fazê-lo. Apesar da intimidação policial e da hesitação das pessoas em expressar essas opiniões em público, pequenos grupos de ativistas com cartazes contra a guerra fizeram manifestações em Tel Aviv. Dana Mills, ativista de esquerda, escritora e ex-diretora executiva do movimento Peace Now (Paz Agora) em Israel, me disse que a primeira manifestação, no fim de outubro, foi tão pequena que mal poderia ser chamada de manifestação. Serviu como um teste. Temendo agressores raivosos ou repressão policial, os participantes evitaram mensagens provocantes e, segundo Mills, levaram cartazes com mensagens moderadas como CESSAR-FOGO JÁ E O OLHO POR OLHO E O MUNDO ACABARÁ CEGO. No início de novembro, mais ativistas saíram às ruas. Seus cartazes pediam cessar-fogo, um acordo para libertar os reféns ou uma resolução diplomática do conflito. O cartaz de uma mulher dizia: UM MASSACRE NÃO JUSTIFICA OUTRO MASSACRE. Se não fosse a esquerda, ninguém estaria expressando essas posições.

Também pode ser que haja uma oportunidade para capitalizar a ira generalizada do público contra o governo fanático e ultranacionalista de Netanyahu. Os israelenses de todas as vertentes ideológicas passaram a odiá-lo por seus fracassos no 7 de outubro – uma constatação reforçada por inúmeras pesquisas publicadas desde os ataques. Essa ira é a culminação de um movimento cívico sem precedentes que sacudiu Israel durante quase quarenta semanas, em resposta aos planos de Netanyahu de eviscerar o Poder Judiciário. Os israelenses já vêm fazendo a si próprios perguntas fundamentais sobre os pontos vulneráveis da democracia em seu país. Talvez o 7 de outubro leve um número maior de cidadãos a questionar as posições da direita quanto ao conflito, incluindo sua obsessão pela expansão territorial e um domínio militar permanente e autoritário sobre a nação palestina. Não é provável que isso aconteça em grande escala, nem mesmo que vá acontecer, mas, para a esquerda, mesmo pequenas mudanças têm importância.

A esquerda em Israel tem mais uma vantagem: uma verdadeira parceria árabe-palestino-israelense. Os colonos da Cisjordânia costumam se gabar de conhecer os “árabes” melhor do que os pacifistas de Tel Aviv, mas, em geral, são relações de inimizade ou, no máximo, relações amigáveis de subserviência: os colonos conhecem os mecânicos que consertam seus carros e os pedreiros que constroem suas casas nos assentamentos. A questão é que os ativistas de esquerda conhecem colegas da academia, escritores e jornalistas, e compartilham a experiência de serem impopulares na sua comunidade nacional. São amizades entre iguais, entre pessoas que protestaram e lacrimejaram juntas com o gás lacrimogêneo. Que se abraçaram em outubro (virtualmente, quando necessário) para enfrentar a violência feita em seus nomes, e se apoiaram mutuamente em seu sofrimento. Os líderes políticos árabes comprometidos com a parceria, como Ayman Odeh e Mansour Abbas, lamentaram os civis inocentes que Israel matou em Gaza e também condenaram os ataques do Hamas de modo imediato e sincero.

Desde o primeiro dia da guerra, coube aos ativistas da “sociedade compartilhada” judaico-árabe coordenar esforços para evitar o ressurgimento da violência nas cidades mistas de Israel. Exceto por um incidente perigoso, quando centenas de judeus israelenses expulsaram estudantes árabes de seus dormitórios em uma faculdade em Netanya, até agora esses esforços têm tido sucesso. No final de outubro, um grupo ativista judaico-árabe chamado Standing Together (Estamos juntos) iniciou uma série de eventos de solidariedade em resposta à perseguição de árabes em Israel. Em Tel Aviv, participaram trezentas pessoas. Em Haifa, oitocentas. Imagens dessas manifestações nas redes sociais geraram os primeiros sinais de entusiasmo na esquerda desde 7 de outubro.

Essas parcerias têm sido a única luz em um momento de escuridão implacável. Em minha experiência não científica, as parcerias têm sido menos atingidas por rupturas amargas do que ocorreu nas comunidades progressistas da esquerda nos Estados Unidos: ativistas israelenses e palestinos defensores da paz têm suas discordâncias, mas não vi parceiros palestinos no ativismo pacifista justificando as ações indefensáveis do Hamas. Tampouco encontrei judeus israelenses nessas comunidades comemorando o ataque de Israel a Gaza. A esquerda em Israel e na Palestina parece saber que a região está dividida não só por distinções etnonacionalistas, como também entre os que preferem violência, abuso e força militar e os que insistem na santidade universal da vida humana, nos valores morais, nas leis internacionais e na contenção do conflito por meios políticos, e não por ações militares.

É muito provável que a esquerda israe­lense não passe por uma ressurreição política em um futuro próximo e, se quiser influenciar a corrente majoritária do país, precisará continuar unindo forças com outros cidadãos acerca de problemas específicos que todos têm em comum. Durante todo o ano, enquanto o país entrava em convulsão com os ataques ao sistema judiciário, os grupos antiocupação apoiaram os manifestantes centristas pró-democracia, que inicialmente resistiram à inclusão de mensagens antiocupação naqueles protestos ultrapatrióticos.

Agora, os ativistas da esquerda precisarão forjar novas parcerias – por exemplo, com as comunidades cada vez mais eloquentes, que exigem que o governo faça um acordo para libertar os reféns, ou os grupos de protesto pela democracia que atualmente lideram a mobilização de doações para fornecer suprimentos aos israelenses que foram evacuados do Sul e do Norte do país. A esquerda não vai vencer as eleições no futuro próximo. Mas, enquanto isso, precisa se comprometer, mais uma vez, com seus valores mais profundos e defender quaisquer caminhos para a paz que possam existir algum dia, em meio a esse aterrorizante vácuo de ideias.

Dahlia Scheindlin é uma pesquisadora de opinião pública e cientista política baseada em Tel Aviv. Ela é autora de The Crooked Timber of Democracy in Israel: Promise Unfulfilled, publicado em setembro pela De Gruyter. (Novembro de 2023)

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