31 de maio de 2020

A crise climática e o COVID-19 são inseparáveis

Os comentaristas gostam de apontar os “mercados úmidos” de Wuhan como a fonte da pandemia, mas o COVID-19 é o resultado de um fenômeno global muito maior de degradação ambiental. Combater os dois significa colocar a política de produção de alimentos e uso da terra no centro de nosso projeto socialista.

Drew Pendergrass e Troy Vettese

Sunaura Taylor, "Chicken Truck", Óleo sobre tela, 2008.

Tradução / No século XVIII, Edward Jenner, o inventor da primeira vacina, enfrentou uma crise semelhante à que enfrentamos hoje — um mundo destruído pela doença. Não era o coronavírus que ele estava estudando, mas a varíola, uma doença com uma taxa de mortalidade variando entre 20 e 60 por cento no Velho Mundo e ainda mais alta no Novo.

Observador astuto e ornitólogo talentoso, Jenner entendeu que as epidemias não são crises atemporais e inevitáveis, mas surgem do crescente envolvimento da civilização com a natureza. É devido às suas origens como doenças animais que patógenos como o SARS-CoV-2 são chamados de “zoonoses”. “O desvio do homem do estado em que foi originalmente colocado pela Natureza parece ter se mostrado uma fonte prolífica de doenças”, começa Jenner no tratado de 1798 sobre seus experimentos de vacinação. “Ele se familiarizou com um grande número de animais, o que pode não ter sido o plano original de seus companheiros.”

O reconhecimento de Jenner dos vínculos estreitos entre a saúde pública e a crise ambiental mais ampla não é, de forma alguma, compartilhado por muitos comentaristas hoje. Enquanto a direita recorre a táticas xenófobicas, como usar os mercados chineses como bodes expiatórios, a esquerda tende a enfatizar a falta de respostas do governo, a necessidade de saúde pública para todos [Medicare for All], ou talvez a rara crítica à pecuária industrial. Muitas vezes, no entanto, esses debates assumem que as zoonoses são eventos inevitáveis, cujas causas não precisam nos preocupar.

Embora haja de fato problemas urgentes que precisam ser resolvidos agora, um entendimento mais amplo da origem do SARS-CoV-2 também é necessário. Para entender isso, precisamos enfrentar a crise ambiental como um todo, porque cada faceta dela — da extinção à mudança climática — tem o potencial de produzir mais doenças. Apesar do uso em voga de conceitos como o “Antropoceno”, o envolvimento da esquerda com as ciências naturais permanece limitado. Essa disjunção é especialmente chocante considerando os laços estreitos entre cientistas e socialistas durante o final do século XIX e início do século XX. Se alguém seguisse os desenvolvimentos científicos agora, logo ficaria claro que a condição de deterioração da biosfera necessita de uma forma inteiramente nova de socialismo onde as políticas de alimentação e energia não são marginais, mas ao contrário, estão em seu cerne.

A Nova Idade da Pedra

Os epidemiologistas dividem a história das doenças infecciosas em três grandes épocas. A primeira começa há dez mil anos com o início da agricultura neolítica. Os rebanhos domesticados mantidos em contato próximo com os humanos criaram condições para que novas doenças se propagassem entre as espécies com uma frequência impossível nas sociedades de caçadores-coletores. A segunda é a breve era moderna de rápido progresso científico que vai dos anos 1850 aos anos 1970. O epidemiologista Rudolf Virchow, trabalhando na tradição científica iniciada por Jenner, cunhou o termo “zoonose” e defendeu que a saúde humana e veterinária deveriam ser estudadas juntas como uma medicina ou, como é chamada hoje, “medicina planetária” e “uma saúde”. Os avanços médicos no século XX levaram a novas vacinas e antibióticos milagrosos, os quais salvaram milhões de vidas. Mas a modernidade não durou. A terceira era zoonótica começou na década de 1980, a era das trevas em que definhamos atualmente, marcada pelo surgimento sem precedentes de novas doenças.

Não é mera coincidência que este último período coincida com as forças que definem a pós-modernidade: cadeias de commodities globalizadas, a ascensão do neoliberalismo, o esgotamento dos recursos naturais metropolitanos, o surgimento de empresas multinacionais monopolistas, a desindustrialização no Norte Global e o rápido, mas desigual, desenvolvimento no Sul.

O comércio de animais exóticos — seja em Wuhan ou na África Ocidental — não pode ser entendido isoladamente dessas tendências. O SARS-CoV-2 poderia ter sido originalmente uma doença do morcego ou do pangolim que passou para um animal intermediário, onde se recombinou e se tornou infeccioso para os humanos. O comércio de animais exóticos é central, pois coloca não só os humanos em contato próximo com os animais selvagens, mas também espécies variadas que nunca estariam próximas na natureza. Como isso aconteceu, visto que a China era famosa por suas práticas agrícolas sustentáveis milenares até recentemente, na década de 1970? Tudo começou a mudar na década de 1990, quando o país adotou um sistema alimentar industrial centrado na carne. Os pequenos agricultores não podiam competir com as fazendas industriais, então o governo os encorajou a entrarem no comércio de animais selvagens, embora isso tenha levado a surtos como o SRAG em 2003, um coronavírus que saltou de morcegos para civetas e humanos.

Histórias semelhantes acontecem em todo o mundo, onde os pobres são forçados a se sujeitarem a circunstâncias desesperadoras pelas forças do mercado e pela política estatal, levando à rápida desestabilização dos sistemas ecológicos locais. Quando os arrastões europeus invadiram as áreas de pesca ao largo da costa da África Ocidental, a população local recorreu à “carne de caça” para obter proteína barata. Esses sistemas alimentares transnacionais e desiguais têm contribuído não apenas para a extinção em massa, com espécies de vertebrados desaparecendo mais de mil vezes mais rápido do que o normal, mas também para novas zoonoses, como o Ebola e o HIV. As estradas construídas para expandir o alcance das empresas de mineração, petróleo e madeira permitem que os caçadores cheguem a regiões florestais antes inacessíveis, colocando os humanos em contato próximo com a vida selvagem. Só na Bacia do Congo, mais de meio bilhão de animais são capturados todos os anos, muitas vezes para alimentar os mineiros.

Obviamente, o comércio de animais selvagens também inclui o Norte Global. “Ecoturistas”, quando viajam, transmitem sarampo, poliomielite e tuberculose aos primatas. Vigilantes de zoológico e funcionários de laboratório têm uma probabilidade desproporcional de portar o vírus Símio Espumoso. O comércio de animais de estimação exóticos provavelmente deu passagem ao vírus do Nilo Ocidental para a América do Norte, onde este devastou espécies de pássaros nativos e matou mais de 2.300 pessoas.

Uma crítica limitada ao comércio de animais exóticos ignora como ele está vinculado ao destino do campesinato mundial, uma classe que foi devastada pela agricultura industrial. Mesmo um olhar superficial sobre a economia da carne de caça mostra que não podemos proteger a vida selvagem sem nos livrarmos das pecuárias industriais também, o que significa que não podemos mais comer carne barata.

Talvez a percepção mais importante que os socialistas podem extrair da saúde planetária seja que o desafio das novas zoonoses é inseparável da crise ambiental mais ampla. Ou seja, existe uma crise ambiental única e unificada. É uma falha de imaginação dividi-la artificialmente em problemas distintos como mudança climática, expansão urbana, extinção em massa, escoamento de fertilizantes, doenças não transmissíveis e epidemias.

A ciência por trás de cada um desses fenômenos é complicada, mas a mensagem geral é simples: quanto menos espaço a humanidade deixar para a natureza, mais problemas ambientais — incluindo novas zoonoses mortais — haverá. Fazer referência ao “Antropoceno” é uma forma de encapsular a escala do problema, mas é descritivo demais quando precisamos de conceitos analíticos para entender por que entramos em uma nova era geológica. Aqui está uma área em que a Esquerda pode intervir de forma útil, fornecendo aos cientistas e à sociedade em geral os conceitos capazes de enquadrar a crise ambiental unitária. Em vez de falar sobre o “Antropoceno”, podemos tirar o pó de um antigo debate marxista: a humanização da natureza.

O Espírito do Mundo e os Duendes do Bosque

A “humanização da natureza” é uma ideia originada em Hegel, que considerou a alienação da humanidade da natureza o ponto crucial da história mundial. O trabalho era entendido como o processo que reconciliava os dois, instilando a natureza com a consciência humana. Em vez de tirar nossa comida diretamente da natureza, como fazem os animais, os humanos usam ferramentas para guiar os fluxos naturais para a produção de plantio e de animais domésticos (reconhecidamente uma simplificação grosseira). Podemos expandir a lógica de Hegel para dizer que muito da humanização da natureza, então, é a história da “mudança no uso da terra”, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas poderia dizer.

Karl Marx fez uso do conceito de Hegel, reconhecendo o processo como uma expressão da natureza humana (ou seja, nosso “ser-espécie”). Ao contrário de Hegel, no entanto, Marx sentiu que a humanização da natureza havia sido distorcida sob o capitalismo devido ao divórcio entre a inconsciência do capital e a consciência humana. Para Marx, o capital buscava apenas a autoexpansão. O indivíduo capitalista era “o capital personificado”; embora “dotado de consciência e vontade”, argumentou ele, sua liberdade era limitada, voltada para atingir oobjetivo único de acumulação de capital. Vemos isso hoje: a CEO de uma empresa pode ser uma amante da natureza, mas não pode investir em tecnologia cara e ecologicamente correta sem que sua empresa seja destruída se ela não conseguir obter a taxa de lucro normal. O conceito de humanização da natureza, adaptado por Marx, explica porque a sociedade pode ter consciência de que está se aproximando do precipício e permanecer incapaz de mudar de curso, porque a extração planejada de combustíveis fósseis excede dramaticamente os limites do Acordo de Paris. Os políticos podem dizer uma coisa e até escrever em um tratado, mas “deixar os combustíveis fósseis no chão” é inconcebível em nosso sistema econômico atual.

Como um conceito, a “humanização da natureza” é útil — mais do que o “Antropoceno” — porque destaca que o capitalismo é fundamentalmente um projeto de reorganização da natureza que se distingue de outros períodos históricos, e que acabará por levar à catástrofe porque o capital é uma força insensata, inconsciente de estar destruindo a biosfera. Diante de tal processo, então, precisamos de controle consciente sobre a economia, ao mesmo tempo em que damos à natureza o espaço de que ela precisa para funcionar.

Como socialistas, não precisamos apenas resistir à capitalização da natureza sempre que possível, seja à queima da floresta amazônica por pecuaristas ou à instalação de novos oleodutos no Canadá para transportar petróleo não convencional. Também devemos ser cautelosos com uma humanização socialista da natureza: a vontade de dominar a natureza para fins de esquerda. A fantasia do controle prometeico mantém um forte domínio sobre a esquerda, especialmente entre os adeptos do “comunismo de luxo totalmente automatizado” (Aaron Bastani, que apóia a carne de laboratório e o reflorestamento, é uma exceção parcial dentro dessa corrente).

Os socialistas raramente aplicam suas alardeadas habilidades de crítica e inteligência científica à mesa de jantar. Certamente, Marx não era um ambientalista e, portanto, às vezes somos forçados a pensar contra ele para imaginar o que socialismo pode vir a ser. Marx pode estar certo ao dizer que a história começou com o nascimento da agricultura, mas ele negligenciou o surgimento de sua irmã gêmea — a epidemia.

O nascimento da tragédia e da tuberculose

Os cientistas pensam que a maioria, talvez todos, dos patógenos humanos são, em última análise, zoonoses, originadas não no início da espécie humana, mas em um passado relativamente recente. O sarampo provavelmente evoluiu da peste bovina há 7.000 anos. A gripe pode ter começado há cerca de 4.500 anos com a domesticação das aves aquáticas. A própria especialidade de Jenner, a varíola, provavelmente se originou há 4.000 anos na África oriental, quando um vírus do gerbil saltou para o camelo recém-domesticado e depois para os humanos. No Novo Mundo, a agricultura era amplamente praticada, mas poucos animais eram domesticados, razão pela qual os povos indígenas viviam relativamente livres de doenças. Com a colonização, no entanto, a criação de animais deu aos invasores europeus uma vantagem epidemiológica, e os indígenas foram rapidamente expostos ao sarampo, tifo, tuberculose e varíola. A população do Novo Mundo totalizava entre 50 e 100 milhões de pessoas em 1492, mas caiu 90% nos séculos seguintes, em grande parte por causa das zoonoses do Velho Mundo.

Por um tempo, parecia que as novas drogas acabariam por conter os patógenos, assim como o estado de bem-estar havia domesticado o capitalismo. Em 1972, os autores de um livro sobre doenças infecciosas acreditavam que “a previsão mais provável sobre o futuro das doenças infecciosas é que ele será muito entediante”. Em 1975, o reitor da faculdade de medicina de Yale previu que “não havia novas doenças a serem descobertas”.

Foi apenas um ano depois que o vírus do Ebola foi identificado. Pouco tempo depois, o editor do primeiro compêndio oficial sobre a nova zoonose advertiu: “Quanto maior a escala das mudanças ambientais causadas pelo homem, maior deve ser a probabilidade de surgimento de uma zoonose, velha ou nova.” O HIV tornou o problema ainda mais urgente. Na década de 1990, o campo das “doenças infecciosas emergentes” deixou de ser uma “mera curiosidade” para se tornar uma disciplina extensa. Após o susto da gripe aviária H5N1 em 2005, o governo dos Estados Unidos deu início ao programa PREDICT, que detectou quase mil novos vírus em uma década, incluindo novas cepas de Ebola e coronavírus. O governo Trump fechou o PREDICT no ano passado.

Qualquer faceta da humanização da natureza causará o que os cientistas chamam de “poluição patogênica”, a propagação de doenças entre diferentes espécies de animais. Doenças como a doença de Lyme e do Nilo Ocidental proliferaram porque o declínio da biodiversidade resultou no crescimento desequilibrado de algumas espécies portadoras, como camundongo-de-patas-brancas ou o tordo. O desmatamento e as mudanças climáticas expandem o habitat dos mosquitos, de modo que dengue, Zika, malária e outras doenças se tornam mais comuns. A atual erupção de novas doenças é um problema não só para os humanos, mas também para os animais. Novas doenças de corais estão ligadas à proliferação de algas e mudanças climáticas. Os gatos deram toxoplasmose a golfinhos-rotadores e belugas.

A pecuária industrializada tem feito muito para nos levar de volta à idade da pedra da saúde pública. Mesmo os pinguins imperadores da Antártida não estão isentos dessa mudança de época. Eles agora são afetados pela Doença Infecciosa Bursal, uma doença que surgiu na década de 1980 nas entranhas de grandes fábricas de aves na costa leste dos Estados Unidos. A extensão da indústria pecuária, cerca de 4 bilhões de hectares, abrange 40 por cento da superfície habitável do mundo, tornando-se a maior interface entre a humanidade e a natureza e, portanto, o principal portal para novas doenças.

A agricultura também mudou qualitativamente. O capital induz pressões inacreditáveis para aumentar a eficiência da produção de alimentos em detrimento da saúde. O próprio Marx criticou Robert Bakewell, um famoso criador [de animais] capitalista do século XVIII, por reduzir “o esqueleto das ovelhas ao mínimo necessário para sua existência”. De fato, Bakewell criava animais para terem menos ossos, de modo a aumentar seu volume de carne. Ao contrário de muitos de seus epígonos, Marx percebeu que não é necessária uma teoria separada para analisar os aspectos ambientais do capitalismo, pois o olhar cego do capital não via diferença entre animais e máquinas.

Os Bakewells atuais manipulam a genética animal para encorajar características como maior produção de ovos ou carne de peito, mesmo ao custo de sistemas imunológicos enfraquecidos. As empresas criam animais geneticamente semelhantes — até mesmo clones — em instalações superlotadas e vulneráveis a surtos. O uso generalizado de antibióticos pode ajudar a manter as doenças sob controle (e acelerar as taxas de crescimento dos animais), embora ao custo da criação de “superbactérias” como a SARM, uma bactéria comedora de carne que se tornou comum em hospitais em todo o mundo. Mesmo doenças bacterianas comuns, como infecções do trato urinário, estão cada vez mais resistentes a tratamentos que teriam funcionado apenas uma década atrás; a cada ano, cerca de 35.000 americanos morrem de infecções resistentes a antibióticos. Estima-se que 71% das costeletas de porco vendidas nos supermercados dos Estados Unidos contêm bactérias resistentes a antibióticos; a taxa para peru moído é ainda mais alta, de 79%.

O vírus Nipah, identificado pela primeira vez em uma cidade da Malásia em 1998, revela como as várias vertentes da crise ambiental convergem para criar epidemias. Para aumentar os lucros, os agricultores colocaram pomares de manga ao lado dos rebanhos de porcos para que o estrume pudesse ser facilmente aplicado nas árvores. O desmatamento por corte e queima expulsou os morcegos frugívoros de seu habitat natural, levando-os a fixar residência em árvores recém-plantadas, onde puderam transmitir a doença para os rebanhos de porcos e, em seguida, para as pessoas. Os morcegos também se tornaram mais vulneráveis ​​a doenças virulentas; à medida que suas populações se fragmentam, eles são apenas esporadicamente expostos ao reservatório de doenças. O que antes havia sido um vírus inofensivo em morcegos causou graves problemas neurológicos a porcos e humanos. O vírus matou cerca de um terço de suas vítimas na Malásia, mas sete décimos durante um surto posterior no sul da Ásia. Sua propagação só foi detida após quarentena estrita e o abate de um milhão de porcos; não foi por acaso que o surto começou na maior operação de suínos do país.

Libertar a lentilha

Os epidemiologistas que trabalham na tradição da saúde planetária têm clareza sobre o que precisa ser feito. Um emergente órgão de pesquisa sugere que a mudança no uso da terra é o “motor mais significativo da vida selvagem, dos animais domésticos e das DIEs [doenças infecciosas emergentes] em humanos”. Mais especificamente, a “crescente demanda por carne e produtos derivados da carne pela população humana tornou o contato humano com os animais sem precedentes”. Parte da solução deve ser “conservar áreas ricas em diversidade de vida selvagem, reduzindo a atividade antropogênica.”
A Associação de Saúde Pública Americana [American Public Health Association] pede uma moratória sobre a pecuária industrial. Na sequencia do surto de SARS de 2003, o jornal da associação publicou um editorial defendendo uma mudança na “forma como os humanos tratam os animais — basicamente, parando de comê-los ou, pelo menos, limitando radicalmente a quantidade deles que são comidos” como uma medida básica de saúde pública. “Tal mudança, se suficientemente adotada ou imposta, ainda pode reduzir as chances da tão temida epidemia de influenza.”

No momento, o mundo é relativamente afortunado, visto que as cadeias de suprimento de alimentos que sustentam a vida até então permaneceram intactas. Mas não há garantia de que os desastres naturais se espaçarão educadamente um após o outro, especialmente em uma era de mudanças climáticas. Imagine o surgimento simultâneo de uma doença zoonótica de veiculação hídrica durante uma grande inundação no sul da Ásia, enquanto as regiões do celeiro mundial sofrem secas simultaneamente. Um desastre dessa escala, qu e se torna mais provável com cada molécula de CO2 que entra na atmosfera, com cada micróbio que salta do animal para o humano, com cada milímetro de elevação do nível do mar, levaria a um sofrimento extraordinário.

Para limitar o impacto de futuras pandemias e, ao mesmo tempo, evitar a extinção em massa e mitigar as mudanças climáticas, devemos lutar para reestruturar nossos sistemas alimentares e deixar de lado a produção de carne. O relatório EAT-Lancet, escrito por trinta e sete estudiosos de saúde pública e cientistas ambientais em nome de uma importante revista médica, defende um aumento dramático no consumo de vegetais, frutas, grãos saudáveis e proteínas vegetais, e reduções drásticas na carne e laticínios.

Esses cortes ocorreriam predominantemente entre os ricos no mundo desenvolvido carnívoro, pois eles comem duas ou três vezes mais carne do que a média nos países pobres. Em algum momento, porém, nosso horizonte político deve imaginar dietas à base de plantas para quase todos. São as dietas insustentáveis que estão impulsionando o desmatamento para abrir espaço para mais pastagens em alguns dos lugares de maior biodiversidade do planeta, como a floresta amazônica. Se a maioria das sociedades fosse capaz de adotar a dieta Eat-Lancet, estima-se que 11 milhões de mortes por ano poderiam ser evitadas. A desnutrição seria evitada, minimizando as principais doenças não transmissíveis, como diabetes ou doenças cardíacas. Desistir da carne e restaurar vastas áreas da Terra — talvez até a metade, como sugere o polêmico conservacionista E. O. Wilson — deve fazer parte da agenda socialista.

Contar com vacinas, antibióticos e antivirais para lidar com epidemias futuras é como contar com a captura de carbono ou geoengenharia para salvar nossa sociedade baseada em carbono das mudanças climáticas. O PREDICT nunca pegaria todos os novos surtos, mesmo que não tivesse sido sabotado pela administração atual [administração de Trump]. O capitalismo não pode resolver os problemas que ele mesmo cria; A Big Pharma investe pouco em vacinas e antivirais porque os lucros suculentos estão nas doenças de afluência, como diabetes e disfunção erétil. No entanto, o que é mais preocupante é que os resultados podem ser elusivos, mesmo em campos bem financiados. A pandemia de HIV/AIDS, que matou 32 milhões de pessoas, mostra que nem todas as doenças podem ser resolvidas com uma vacina. Após o surto de SRAG em 2003, a Organização Mundial da Saúde declarou que “embora a ciência moderna tenha seu papel moderno, nenhuma das ferramentas técnicas mais modernas teve um papel importante no controle da SRAG... mais importantes no controle da SRAG foram as estratégias de saúde pública do século XIX de rastreamento de contato, quarentena e isolamento.” Como socialistas, devemos pensar estruturalmente e ser céticos em relação a “soluções” band-aid, “soluções” técnicas — especialmente porque a eficácia da medicina moderna parece estar diminuindo — e, em vez disso, ir diretamente à raiz do problema.

Deve ficar claro que a humanização da natureza não levou à reconciliação da humanidade com a natureza, mas antes à ruína de ambas. Devemos nos conscientizar dos limites da consciência humana — que nosso bem-estar está amarrado a sistemas naturais complexos que nunca compreenderemos completamente. Em vez da inconsciência do mercado dirigir a natureza e a sociedade, a esquerda deve se esforçar para administrar conscientemente os assuntos humanos, mas humildemente deixar muito da natureza auto-governada. Isso não é por causa de algum misticismo anti-científico, mas uma análise obstinada de como entramos nessa confusão.

Um novo socialismo construído em uma escala geológica ajudará os cientistas a alcançar o que eles não conseguem por conta própria. Para fazer isso, precisamos ver como as mesmas forças econômicas tóxicas estão no cerne das pandemias e das mudanças climáticas. Os socialistas não podem reconstruir o mundo antes de entenderem como ele foi desfeito. Essa compreensão surge não apenas do envolvimento com a ciência, mas também da crítica reflexiva. Como Jenner poderia ter observado, o “amor ao esplendor” e “as indulgências de luxo” da esquerda — seja carne, couro, animais de estimação ou produtos testados em animais — a impediram de ver sua cumplicidade na perigosa ruína da natureza.

Sobre o autor

Drew Pendergrass is a doctoral student in environmental engineering at Harvard University and the coauthor of Half-Earth Socialism, to be published by Verso in the spring of 2021.

Troy Vettese is an environmental historian and a William Lyon Mackenzie King postdoctoral fellow at Harvard University and the coauthor of Half-Earth Socialism, to be published by Verso in the spring of 2021.

30 de maio de 2020

O inimigo não é a China, mas sim o neoliberalismo

A resposta unida da China à Covid-19 é frequentemente pintada como um reflexo de "valores asiáticos" autoritários. Mas a mobilização coletiva contou com o apoio público real - uma trégua social temporária que hoje ameaça fraturar.

Isabella Weber, Hao Qi e Zhongjin Li


Pacientes com alta hospitalar da COVID-19 e profissionais médicos posam para fotos ao deixarem o hospital improvisado Wuchang Fang Cang, que é o mais recente hospital temporário fechado, em 10 de março de 2020 em Wuhan, província de Hubei, China.. Stringer / Getty

Tradução / Com base em tudo o que sabemos, a China tem sido relativamente bem-sucedida em conter a disseminação da Covid-19 no mercado interno além da província de Hubei. Muitos observadores atribuem isso ao seu autoritarismo: chega-se a proclamar que, devido à China, "um espectro está assombrando o Ocidente - o espectro do capitalismo autoritário". Sem barreiras de atuação colocadas por princípios democráticos ou direitos humanos, a China poderia, segundo o argumento, impor um bloqueio de estilo medieval por meio de vigilância cibernética; além de seu sistema político antidemocrático, a China se beneficiou dos valores asiáticos e de uma cultura coletivista.

Em uma palavra, trata-se de excepcionalismo chinês. Alega-se que a abordagem chinesa não seria possível nas sociedades democráticas ocidentais por causa de nossa preocupação com as liberdades individuais. O manejo da crise pela China é "desviado", assim como o próprio vírus foi inicialmente orientalizado como um "problema chinês". Sua experiência é, portanto, tornada irrelevante para aqueles que vivem nos Estados Unidos ou na Europa.

No entanto, esse foco em "autoritarismo" versus "democracia" ou "Leste" versus "Ocidente" perde o cerne da resposta Covid-19 da China. Alimenta a sinofobia, que vem aumentando drasticamente nos tempos da chamada Nova Guerra Fria. Em vez disso, para entender a forma como a China lidou com a crise da Covid-19, precisamos colocar sua resposta no contexto mais amplo da economia política.

Essa crise trouxe à tona a profunda integração da China ao capitalismo global, assim como sua fuga da neoliberalização via políticas de terapia de choque. Apesar de todos os seus limites, no centro da resposta da China à Covid-19 havia uma mobilização pública em larga escala para garantir suprimentos médicos e alimentos - semelhante à que alguns pediam nos Estados Unidos, invocando o exemplo da Segunda Guerra Mundial.

Fechando a oficina do mundo

Dada a profunda integração da China no capitalismo global, é surpreendente que o país tenha conseguido impor o que na época era considerado a maior quarentena da história, abrigando cerca de 760 milhões de pessoas. Essa paralisação inevitavelmente sacrificou o crescimento econômico, que o estado chinês enfatizou como a principal prioridade há décadas. A China teve sua indústria de exportação massiva interrompida quando todos os outros países continuavam suas atividades normalmente. Isso aconteceu no contexto da guerra comercial com os EUA, no qual grandes empresas multinacionais buscavam realocar suas cadeias de suprimentos para longe da China. A parada da Covid-19 arriscou acelerar esse processo.

Na China e em outros lugares, a concorrência caótica do mercado dominou na fase inicial do surto - dando lugar a especulação e escassez temporária semelhantes ao que pudemos observar em escala expandida nos Estados Unidos. A inflação dos preços dos alimentos já estava alta na China em janeiro por causa da gripe suína. Inicialmente, o bloqueio provocou compras movidas à pânico e a apreensão, como também foi observado nos Estados Unidos. A demanda súbita e urgente por máscaras e outros equipamentos de proteção individual (EPI) resultou em escassez, e alguns comerciantes particulares tentaram tirar proveito. A sociedade civil se esforçou para organizar doações de todo o país e do exterior.

O mercado competitivo falhou em fornecer os suprimentos médicos urgentemente necessários e garantir a distribuição de alimentos no estágio inicial da crise. Mais uma vez, observamos o mesmo nos Estados Unidos. A linha do tempo e o tratamento inicial do surto de Covid-19 pelas autoridades chinesas antes de 23 de janeiro são severamente contestados. Mas, uma vez que o governo central reconheceu a gravidade da situação, mudou para uma mobilização total. A China, pelo menos temporariamente, colocou as pessoas acima dos lucros - e passou para o modo conter desastres.

Recursos de todo o país foram atraídos para Wuhan, o epicentro do surto na China. Todo o tratamento com Covid-19 foi feito de graça. Como tem sido amplamente divulgado, hospitais de emergência foram criados em poucos dias. Mais de quarenta mil equipes médicas, a maioria proveniente de hospitais públicos de todo o país, chegaram para tratar pacientes com Covid-19. As pessoas em Wuhan experimentaram temporariamente um vislumbre de solidariedade que seguia uma lógica fundamentalmente distinta dos incentivos individuais e dos lucros privados.

O número total de leitos hospitalares na China mais que dobrou na última década, e o número médio de leitos por 1.000 habitantes na China (4,3) agora está próximo do nível médio da OCDE (4,71). Apesar do número de hospitais privados mais que triplicar desde 2009 e agora representam 26% de todos os leitos, hospitais públicos na China trataram mais de 95% dos pacientes com Covid-19 do país durante esta crise de saúde.

Nos últimos anos, a cobertura do seguro de saúde aumentou substancialmente para cerca de 95% da população da China. Mas os benefícios do seguro estão longe de serem iguais em tempos normais - e os custos tendem a ser altos. Nos primeiros dias do surto, essa falta de cobertura suficiente teve efeitos mais severos nas pessoas mais vulneráveis ​​que contraíram a Covid-19. Uma vez que o governo decidiu agir, a expansão do sistema público de saúde da última década, combinada com acesso temporariamente igual, facilitou o combate ao vírus.

A escassez de suprimentos médicos, de roupas de proteção, máscaras, kits de teste e termômetros infravermelho foi atenuada através de um esforço de produção essencialmente público. O sistema nacional de suprimentos médicos da China se mostrou fundamental: empresas estatais e controladas pelo estado assumiram a liderança na fabricação e distribuição de suprimentos médicos, e uma plataforma foi estabelecida para aprimorar o planejamento e coordenar compradores e vendedores em todo o país. Assim, a capacidade de produção de máscaras se multiplicou 5,5 vezes, de 20 milhões por dia para 110 milhões no mês de fevereiro. O primeiro kit de teste foi produzido em 24 de janeiro; até 11 de março, a China distribuiu 2,6 milhões de kits de teste diariamente. As agências comerciais do estado garantiram que as capacidades de produção privada fossem reunidas no esforço de mobilização. O governo prometeu agir como o comprador de último recurso para esses suprimentos médicos críticos, para aumentar o estoque nacional da China.

A China mobilizou seu sistema público de reservas, produção e distribuição de alimentos para poder aplicar a quarentena nacional. Os varejistas on-line foram em muitos lugares a interface com os consumidores. Porém, seus suprimentos foram apoiados por um programa estatal que determina que as cidades garantam acesso e segurança de alimentos que não sejam grãos, principalmente produtos frescos e carne. O sistema de reservas públicas em larga escala da China adquire grãos e outros alimentos básicos quando a oferta é alta e os preços baixos e libera estoques quando ocorrem escassez, como durante a crise da Covid-19. Uma rede de comitês de bairro que abrange todas as cidades organizou a entrega de alimentos, tentando garantir que todos os moradores fossem cobertos durante a quarentena.

Esses programas de provisão pública foram coordenados com big data, de tal forma que a maioria de nós se sente profundamente desconfortável e levanta sérias preocupações em relação à privacidade e às liberdades políticas. A tentativa de usar aplicativos para rastrear contatos e exposição à Covid-19 não é exclusiva da China, mas a abordagem da China se destaca por ser particularmente "difundida e invasiva".

Na China, como em outros lugares, a falta de medidas efetivas para conter a propagação do vírus provavelmente teria deixado os grupos mais vulneráveis ​​da sociedade a sofrer mais com a doença. Foi relatado que uma migrante rural infectada que ficou sem dinheiro para pagar pelo tratamento morreu nas primeiras semanas da crise. Sem a cobertura total de mobilização e assistência médica para os tratamentos com Covid-19, poderia haver centenas de milhares desses casos. Algumas estimativas sugerem que a China pode ter evitado 1,4 milhão de infecções e 56.000 mortes. Outros chegam ao ponto de afirmar que o estrito bloqueio da China salvou 10 milhões de vidas.

Integração da China nas cadeias globais de valor

No entanto, a mobilização total para lidar com a Covid-19 certamente não significa que a China passou a abrir mão de sua integração ao neoliberalismo global. De fato, no contexto de tensões internacionais elevadas, a posição subordinada da China nas cadeias de valor globais - implicando uma forte dependência de tecnologia estrangeira - mostrou brutalmente os limites de um esforço nacional. A divisão de trabalho EUA-China continua sendo em grande parte o que você pode ler nas costas de um iPhone: projetado na Califórnia, montado na China. Isso causou gargalos técnicos quando a China tentou mobilizar a produção de equipamentos médicos em larga escala. Na falta de componentes essenciais importados, a produção de ventiladores ficou aquém da demanda. Mesmo para máscaras cirúrgicas, a China depende das importações alemãs e japonesas de peças-chave para as máquinas que produzem tecidos fundidos por fusão, um material crucial para os filtros. Aumentar essa produção para atingir capacidade total exigiria coordenação internacional.

A maioria do trabalho de linha de frente na ação chinesa foi realizado por trabalhadores migrantes com baixos salários. Isso incluiu a célebre construção de novos hospitais, realizados por migrantes rurais mal pagos, presos na cidade de Wuhan durante o feriado do Ano Novo Lunar. No auge da mobilização da Covid-19, os trabalhadores de saneamento e entrega estavam trabalhando longas horas sob pressões extremas. As mulheres eram a maioria do corpo de trabalhadores da saúde na vanguarda da batalha da China contra a Covid-19.

É provável que o compartilhamento da custo da crise econômica resultante do novo coronavírus também reflita as desigualdades existentes, na China e em outros lugares. Embora a China seja um pouco menos desigual que os Estados Unidos, a desigualdade é um grande problema. Um relatório recente do Banco Popular da China mostra que 10% das famílias urbanas detêm metade de toda a riqueza familiar urbana. Sem dúvida, os mais de 200 milhões de trabalhadores migrantes da China são os que mais sofrem enquanto o país entra em sua própria crise de emprego de dimensões incertas. Muitos trabalhadores migrantes costumavam trabalhar no setor de exportação antes da pandemia. Com a economia global destruída, a China é desafiada a acelerar a reorientação de seu modelo econômico.

A crise da Covid-19 também atingiu milhões de trabalhadores com empregos na economia doméstica, como carona on-line e entrega de restaurantes. Uberizar o mercado de trabalho era uma maneira fácil de criar empregos, mas a precariedade desse emprego se deteriorou ainda mais na pandemia e agora representa um sério desafio.

O profundo choque da pandemia e a experiência de mobilização em massa, não incentivos individuais, reviveram a questão do futuro da reforma da China. Algumas vozes proeminentes da Nova Esquerda da China chegaram ao ponto de argumentar que a guerra do povo contra a Covid-19 forneceu um modelo para um futuro diferente. Isso parece prematuro. Antes, a necessidade de amplos ajustes econômicos que esta crise econômica global está exigindo está abrindo um vasto terreno para contestações. Os reformadores já se organizaram para pedir mais e mais profunda mercantilização da economia, para proteger a integração da China no neoliberalismo global.

Na China, como em todo o mundo, a pandemia está exigindo mudanças sociais e econômicas de longo alcance. A direção que isso tomará está sujeita a lutas ferozes; e o resultado também dependerá de nossa leitura de como as sociedades lidaram com o surto de Covid-19 e das lições que dele extraímos. Em vez de excepcionalizar e diferenciar a China, os progressistas em todo o mundo precisam enxergar além da lógica do nacionalismo e reconhecer a interconectividade de nossas lutas. O inimigo nesta pandemia não é a China, mas a desigualdade e a lógica do lucro sobre as pessoas.

Colaboradores

Isabella Weber é autora de How China Escaped Shock Therapy e professora assistente de economia na University of Massachusetts Amherst.

Hao Qi é professor associado da Escola de Economia da Renmin University of China.

Zhongjin Li é professor assistente de economia na University of Missouri Kansas City.

28 de maio de 2020

Como a Viena Vermelha revolucionou Sigmund Freud

Sigmund Freud frequentemente lamentava o fato de a maioria de seus pacientes pertencer às classes superiores. Mas quando os socialistas tornaram Viena "Vermelha" após a Primeira Guerra Mundial, os neuróticos ricos e pobres ganharam acesso a tratamento gratuito e novos métodos experimentais.

Phillip Henry


Sigmund Freud lamentava com frequência o fato de que a maioria dos seus pacientes pertencia às classes abastadas.

Tradução / Em setembro de 1918, nos últimos dias da Grande Guerra, Sigmund Freud estabeleceu uma nova missão para o movimento da psicanálise. Em sua fala ao primeiro congresso psicanalítico desde o começo da guerra, Freud reconheceu os impedimentos que restringiam seu trabalho terapêutico. Limitados pelas “necessidades de nossas existências” ao tratar as “classes abastadas”, os psicanalistas não podiam “fazer nada pelas camadas sociais mais amplas, que sofrem de neuroses extremamente graves”. No entanto, tais limitações precisavam ser superadas.

Freud argumentou que as neuroses eram uma ameaça à saúde da nação tanto quanto a tuberculose – e também pouco podiam ser deixadas “ao cuidado impotente de membros individuais da comunidade”. Voltando seu olhar para a situação iminente pós-guerra, Freud previu com segurança que a “consciência da sociedade vai despertar” para o direito do “homem pobre” a um tratamento para sua mente. Quando isso acontecesse, novas instituições, compostas por médicos analiticamente treinados, seriam fundadas, oferecendo tratamento gratuito às grandes massas. Por mais distante e “fantástica” que essa perspectiva parecesse em meio à devastação da guerra, Freud insistia que “mais dia menos dia… vamos chegar a este ponto”.

Nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, a terapia analítica e o privilégio burguês andavam de mãos dadas – cristalizando uma imagem que persiste até hoje da psicanálise como instrumento de preservação das classes alta e média alta. Em 1895, Freud observou que seus pacientes pertenciam a “uma classe social educada e letrada”, acrescentando uma década mais tarde que a terapia analítica era idealmente adequada para indivíduos “valiosos” que possuíam “um certo nível de educação e um caráter bastante confiável”.

Além disso, o progresso técnico pouco fez para alimentar as esperanças de sua aplicação mais ampla: quanto mais os princípios de sua prática eram refinados, mais árdua e demorada se tornava a terapia analítica. O resultado foi uma postura de aceitação resignada que beirava a capitulação. “Pobres e socialmente impotentes, e compelidos a ganhar nosso sustento com nossas atividades médicas”, escreveu Freud em 1917, “nem mesmo estamos em posição de estender nossos esforços a pessoas sem recursos... Nossa terapia consome muito tempo e é muito trabalhosa para que isso seja possível.”

No entanto, no congresso apenas um ano depois, Freud ressoou uma nota radicalmente diferente – colocando a psicanálise em um caminho de reinvenção experimental, agora a serviço da justiça social. “Nunca nos orgulhamos da integridade e finalidade de nosso conhecimento e capacidade”, ele insistiu; em vez disso, “[nós] estamos tão prontos agora quanto estávamos antes… [para] aprender coisas novas e alterar nossos métodos de quaisquer maneiras que possam melhorá-los.” Para os jovens analistas que se inspiraram nessas palavras, o desafio central e definidor do freudismo entre guerras seria criar uma psicanálise para as massas. De seus esforços para expandir as possibilidades da terapia analítica, um novo movimento psicanalítico emergiria – aquele cujo destino estava intimamente ligado ao da social-democracia.

Estados de bem-estar no pós-guerra

Freud estava longe de ser o único a imaginar um futuro mais progressista no final da guerra. Na Europa Central, a guerra total empurrou as sociedades combatentes à beira do colapso moral e físico. Os governos estavam se desintegrando sob pressão e a derrota militar minou fatalmente a legitimidade das monarquias estabelecidas. Mas com o colapso do antigo, também surgiram esforços notavelmente ousados para imaginar e criar o novo.

Em meio a uma onda democrática que iria estourar e quebrar nas revoluções do pós-guerra, varrendo as monarquias dos Habsburgo e Hohenzollern, muitos especialistas buscaram formas igualitárias de longo alcance de intervenção estatal para restaurar a estabilidade social. Em propostas de recuperação que serviram de modelo para uma nova ordem social, os social-democratas e seus aliados lançaram as bases imaginativas dos estados de bem-estar democráticos do pós-guerra.

As alianças políticas pessoais de Freud residiam no liberalismo (“Eu continuo sendo um liberal da velha escola”, ele escreveria em 1930). No entanto, seu discurso de 1918 alinhou a psicanálise com o espírito democratizante e igualitário da época. Tanto como programa econômico quanto político, o liberalismo emergiu da guerra profundamente desacreditado, seus valores tímidos substituídos por novos imaginários totalizantes e coletivistas. A convulsão social exacerbou a crise ideológica. À medida que as privações materiais reduziam seu padrão de vida e a inflação galopante consumia suas economias, muitos burgueses foram dominados pelo que o amigo e seguidor de Freud, Sándor Ferenczi, chamou de medo de “nossa proletarização iminente”.

“Toda a energia de uma pessoa”, Freud escreveu a seu discípulo Karl Abraham, “é dedicada a manter o seu nível econômico”. As bases da ideologia liberal desmoronaram com as bases da segurança material burguesa, forçando Freud a olhar além de sua própria classe para garantir a sobrevivência de sua profissão. A própria viabilidade da prática clínica parecia estar em questão. Como as novas repúblicas democráticas da Áustria e da Alemanha, o futuro da psicanálise parecia estar com as massas.

Mas a guerra também criou uma urgente necessidade de intervenção psicoterapêutica em massa. Desde o início, a guerra havia produzido uma verdadeira epidemia de distúrbios nervosos nos exércitos. À medida que o espectro do colapso total (militar e social) se tornava mais ameaçador no último ano da guerra, começaram a circular relatórios sobre a aplicação bem-sucedida de formas modificadas de psicanálise no tratamento das neuroses de guerra.

Para o psiquiatra alemão Ernst Simmel, uma técnica analítico-catártica simplificada, combinando hipnose com associações livres, lhe permitiu resolver os sintomas dos neuróticos de guerra em um simples punhado de sessões. Convidado a apresentar seu trabalho diante do congresso psicanalítico de 1918 – um evento patrocinado e assistido por autoridades civis e militares intensamente interessadas – Simmel afirmou que seu método resumido e combinado poderia um dia ser implementado no que ele chamou de “clínica mental do futuro”. Com a aplicação em massa da terapia analítica na guerra, um novo horizonte de possibilidades se abriu, um que falava diretamente às necessidades urgentes da sociedade em um momento de dissolução.

A “Viena Vermelha”

Seis semanas após o congresso, a guerra chegou ao fim. As terríveis condições levaram Freud a lamentar amargamente (e ironicamente) a Ferenczi que “aa psicanálise começar a interessar o mundo mais por causa das neuroses de guerra do que por causa do fim da guerra.” Na verdade, porém, a psicanálise estava prestes a experimentar uma expansão profunda, um renascimento dramático, à medida que uma geração mais jovem se infiltrava em suas fileiras no pós-guerra.

Para esses novos convertidos, escreve a historiadora Elizabeth Ann Danto, a psicanálise era um “desafio aos códigos políticos convencionais, uma missão social mais do que uma disciplina médica”. Enquanto os membros mais radicais dessa nova geração viam na psicanálise um programa para a emancipação da convenção burguesa, suas aspirações radicais – como mostra Danto e o historiador Eli Zaretsky – foram colocadas como pano de fundo de um amplo consenso social democrata que unia a profissão. Independentemente, todos os psicanalistas compartilhavam um profundo compromisso com a missão social que Freud delineou em 1918.

O espírito socialmente progressista da psicanálise no início da guerra foi capturado em dois experimentos educacionais notáveis que foram fundados nos arredores de Viena em 1919. No primeiro deles – um orfanato organizado pelo jovem socialista Siegfried Bernfeld para várias centenas de órfãos judeus refugiados – a psicanálise foi abraçada como uma base indispensável para a “nova educação” que ele e seus colegas professores buscavam realizar. “Se não tivéssemos encontrado um guia na teoria freudiana das pulsões, teríamos permanecido totalmente no escuro”, ele escreveu. Animados por um coletivismo antiburguês, as aspirações educacionais do orfanato contrastavam marcadamente com a outra experiência do pós-guerra na “pedagogia de massas” dirigida por August Aichhorn, um educador que, como Bernfeld, ingressou no treinamento psicanalítico depois da guerra.

O instituto de bem-estar educacional de Aichhorn para jovens delinquentes refletia sua sensibilidade política mais tradicional, que aspirava não transcender, mas sim restaurar a família nuclear. No entanto, como o experimento de Bernfeld, o de Aichhorn respirou o espírito progressista da nova era, tanto em seu etos anti-autoritário quanto em seu compromisso com o bem-estar social. Descrevendo a assistência psicopedagógica prestada por seu instituto financiado pelo Estado, Aichhorn argumentou que se antes, tal apoio “originou-se de uma sensibilidade caritativa e foi um ato voluntário”, hoje era “um dever, um reconhecimento do direito que a sociedade tem com o indivíduo”. Longe de serem definidos como contra o Estado, os direitos do indivíduo, para Aichhorn, eram inseparáveis de um maior grau da intervenção estatal.

O momento pós-guerra foi social-democrata, e o movimento psicanalítico foi levado junto com a corrente progressista da época. Em nenhum lugar o poder desta corrente era mais evidente na Europa Central do que em Viena, onde, em 1920, o Partido dos Trabalhadores Sociais-Democratas (SDAP) assumiu o controle da política municipal do conservador e antissemita Partido Social Cristão, a força dominante na política nacional.

A Viena Vermelha, como veio a ser conhecida, foi a peça central de uma estratégia política que visava a superação pacífica do capitalismo por meio da luta democrática e da elevação cultural das massas. Projetado como uma antecipação da futura utopia socialista, um município social democrata foi uma conquista ao mesmo tempo material e ideológica. Em seus enormes complexos de apartamentos alugados (“Palácios do Povo”), sua rede de clínicas de saúde e aconselhamento de baixo custo e suas incontáveis iniciativas educacionais progressistas, a Viena Vermelha combinou melhorias concretas na vida dos trabalhadores com o objetivo de produzir uma nova humanidade socializada e solidária.

A proximidade com essa cultura política da social-democracia teria um efeito notavelmente galvanizador para o movimento psicanalítico, ajudando a inspirar o que a analista Helene Deutsch chamou de “revolucionários” da segunda geração. No entanto, para alguns freudianos, Berlim proporcionou um ambiente mais agradável para combinar a psicanálise e a política radical. Para o analista socialista Otto Fenichel, que emigrou de Viena para Berlim em 1920, os analistas mais jovens eram “crianças travessas”, desafiando as críticas de seus colegas conservadores mais velhos. A distância de Freud e da velha guarda em Viena, escreveu seu amigo Wilhelm Reich, proporcionou uma atmosfera na qual analistas mais rebeldes sentiam que podiam “respirar mais livremente”.

Uma atração ainda maior, no entanto, foi a criação do primeiro programa de treinamento psicanalítico formalizado em Berlim, oferecendo o que o historiador George Makari chama de “a educação mais rigorosa e estruturada em psicanálise no mundo”. O Instituto Psicanalítico de Berlim foi fundado em 1920. A peça central tanto do programa de alcance social quanto para o programa de treinamento do novo instituto foi a primeira clínica psicanalítica ambulatorial a oferecer tratamentos gratuitos ou de baixo custo aos desprivilegiados.

A Policlínica de Berlim foi a primeira, mas outras sociedades foram rápidas em seguir seu exemplo. Entre as guerras, relata o escritor Christopher Turner, pelo menos uma dúzia de clínicas semelhantes seriam fundadas em todo o movimento psicanalítico internacional. Em 1922, com a assistência do SDAP, Viena abriu o seu próprio – o Ambulatorium. “Por fim”, escreve Danto, “todos os analistas trataram gratuitamente pelo menos um quinto de seus pacientes, um costume tácito compartilhado até pelos médicos mais talentosos de Viena”.

Imensamente popular entre o público em geral, as novas clínicas adotaram uma abordagem mais funcionalista ao tratamento – evidente, observa Danto, no contraste impressionante entre a simplicidade sem adornos dos consultórios policlínicos, projetados pelo arquiteto de Freud, filho de Ernst Simmel, e o ornamentalismo luxuoso do escritório do psicanalista na Berggasse nº 19. “Um posto avançado, sofisticado porém modesto, para uma campanha militar contra os distúrbios nervosos.” Para Turner, a Policlínica privilegiou o conhecimento prático e a eficiência na restauração do bem-estar mental.

Além da prática liberal

Por mais inovadoras e ambiciosas que fossem, as novas clínicas ambulatoriais lutaram para lidar com o influxo (“não sabíamos como lidar com isso”, relembrou Reich). Apesar dessas limitações, que deixaram Reich convencido da futilidade de tratar os problemas coletivos por meio da terapia individual, a luta para desenvolver uma “terapia para as massas” daria origem a uma nova psicanálise.

O próprio trabalho de Reich com pacientes indigentes no Ambulatorium de Viena é um dos testemunhos mais marcantes dessa transformação. Trabalhando com casos severos – psicóticos borderlines –, Reich diferenciaria os “bons sintomas burgueses” nos estudos de Freud antes da guerra de histéricos reprimidos e neuróticos obsessivos e os distúrbios mais profundos dos de “caráter impulsivo” que ele tratou. Em contraste com os sintomas “circunscritos” dos neuróticos burgueses, para Reich os “neuróticos do caráter” das classes baixas eram oprimidos por seus distúrbios.

Ecoando Aichhorn, Reich insistiu que a causa fundamental dos distúrbios caracterológicos que ele enfrentou foi a maior exposição infantil de seus pacientes à miséria material e a um ambiente social brutal. Com a ênfase deslocada para o ambiente, as neuroses assumiram uma nova roupagem. Tendo sido anteriormente consideradas expressões de individualidade única, com base na história de vida pessoal do paciente, elas passaram a figurar cada vez mais no pensamento psicanalítico como reflexos impessoais de patologias sociais e políticas mais amplas.

O trabalho de Simmel com neuróticos de guerra sinalizou o surgimento dessa nova perspectiva. Mas, à medida que mais analistas olhavam para além das margens protegidas da esfera familiar burguesa – na verdade, quando essa esfera começou a desmoronar – a importância etiológica das forças do ambiente passou a figurar de forma mais proeminente no pensamento psicanalítico. (O surgimento contemporâneo da teoria social psicanalítica atesta a mesma tentativa de lidar com uma sociedade volátil e ameaçadora.). O escopo da psicanálise estava se ampliando – e novos assuntos e tipos de sofrimento estavam cada vez mais excluindo a norma do burguês neurótico adulto (histérico ou obsessivo). As clínicas gratuitas foram um importante espaço para essa redefinição, mas em um momento de expansão e diversificação profissional, estavam longe de ser únicos.

O trabalho terapêutico e educacional de Anna Freud com crianças foi um desses momentos. Colaboradora próxima de Aichhorn e Bernfeld, Anna Freud desenvolveu uma abordagem distinta para o tratamento de distúrbios infantis de meados da década de 1920 em diante. Contra a escola mais conservadora de psicanálise infantil que floresceu em Londres em torno da figura de Melanie Klein, Freud e seus seguidores insistiram na importância dos fatores sociais na compreensão clínica e no tratamento das neuroses infantis.

Inspirada pelas reformas educacionais e de bem-estar social na Viena Vermelha, que se esforçou para estabelecer regimes mais racionais e empáticos de cuidado infantil e instrução primária, Anna Freud insistiu que o ambiente da criança era a solução, bem como a causa de seu sofrimento. “Facilitamos a tarefa de adaptação da criança”, escreveu, “à medida que nos esforçamos para ajustar o ambiente ao seu redor”. Como o trabalho experimental de Anna Freud com crianças indicou – junto com as inovações técnicas de Reich, Ferenczi e Simmel (este último diretor de uma clínica de internação para casos graves que durou pouco) – as políticas terapêuticas da psicanálise seguiam seu fluxo.

Projetada para um sujeito burguês independente, a terapia analítica clássica era uma prática liberal, que limitava a autoridade do analista a fim de preservar a autonomia e a individualidade do paciente. No entanto, foi liberal também nas exclusões que impôs. Destinada apenas a pacientes com um certo grau de interdependência pessoal, literatos e com segurança material, aqueles cujos distúrbios eram mais profundos e que careciam de recursos privilegiados estavam, com raras exceções, inteiramente fora de seu alcance.

No entanto, o entre guerras testemunhou uma série de tentativas ambiciosas de romper os limites construtivos impostos à terapia analítica por seus princípios liberais. Em seu discurso de 1918, Freud havia especulado que (por razões de eficiência) o “ouro puro da análise” poderia ter que ser suplementado pelo “cobre da sugestão direta” e até mesmo pela influência hipnótica nas novas clínicas gratuitas. Embora Freud rapidamente tenha recuado para a ortopraxia analítica (“provavelmente continuarei fazendo análises ‘clássicas”’, disse a um decepcionado Ferenczi), outros analistas seguiram em frente. Enquanto o imperativo de alcançar os estratos sociais mais amplos impeliu os freudianos a experimentar o desenvolvimento de métodos mais eficientes, as diferentes ordens de sofrimento e tipos de sujeito que eles encontraram exigiam um repensar dos meios e fins da terapia analítica.

“Se um neurótico adulto veio ao seu consultório para pedir um tratamento”, Anna Freud escreveu em 1927, “e um exame mais minucioso prova que é tão impulsivo, pouco desenvolvido intelectualmente e profundamente dependente de seu ambiente quanto os meus pacientes infantis, você provavelmente diria que ‘a análise freudiana é um método excelente, mas não foi projetada para essa pessoa”’. Concebidas (como as reformas na Viena Vermelha) para um assunto mais vulnerável e dependente do que a análise liberal clássica, as novas técnicas desenvolvidas ofereceram aos pacientes um maior grau de apoio emocional e orientação pedagógica.

Ainda assim, eles também eram, em muitos casos, abertamente normativos e disciplinares, voltados para o realinhamento de sujeitos desviados das normas sociais (muitas vezes por meio da reconstrução de um superego socialmente adaptado no modelo do próprio analista). A psicanálise clássica, ao contrário, objetivava apenas capacitar o paciente a escolher como resolver os conflitos subjacentes trazendo as forças em conflito à consciência. Os métodos pós-clássicos concebidos pelos reformadores, no entanto, visavam salvaguardar tanto o ego frágil de um ambiente social patogênico quanto a própria sociedade das forças poderosas da psique.

Como os críticos apontaram, havia um perigo nisso – o perigo de que (esquecendo as lições do inconsciente) a psicanálise pudesse se degenerar em um método pedagógico para adaptar os indivíduos à sociedade. Em um marcante contraste com seus críticos kleinianos e lacanianos, a psicanálise centro-europeia progressista que foi além dos limites da prática analítica liberal estava igualmente comprometida em alterar o ambiente social para atender às necessidades do indivíduo.

Em seu aspecto duplo, refletia os paradoxos da cultural política social democrata que emergiu na Viena Vermelha, onde o cultivo do apoio às vítimas da violência social se juntou ao paternalismo benevolente. Em um nível mais profundo, as revisões contemporâneas da psicanálise internalizaram o contrato social pós-liberal do estado de bem-estar social democrata, um contrato no qual os direitos ampliados do indivíduo eram baseados no poder ampliado do Estado sobre a sociedade.

Abertura em direção à liberdade

A psicanálise deu uma guinada para a esquerda no início da guerra, mas os freudianos nem sempre foram recebidos com um abraço de boas-vindas na Viena Vermelha. Enquanto um punhado de vínculos “promissores”, nas lembranças de Anna Freud, se desenvolveram entre o município socialista e o movimento psicanalítico, eles permaneceram apenas isso – “promissores”. A liderança socialista da Viena Vermelha estava dividida entre ver a psicanálise como um recurso valioso em sua luta para criar uma vida melhor para as pessoas e uma responsabilidade política por conta de sua ênfase perturbadora na sexualidade. (O famoso pessimismo cultural de Freud também reforçou o ceticismo de muitos socialistas.). Ao trabalharem nas instituições da Viena Vermelha, os social-democratas geralmente optavam por psicólogos individuais adlerianos – fornecedores de uma psicologia unidimensional e teimosamente otimista de conformidade social – preterindo seus rivais, os freudianos. O que a social-democracia falhou em fornecer em apoio material, entretanto, ela mais do que compensou no reino do espírito.

Com a destruição das democracias na Alemanha e na Áustria – e a proibição dos partidos social-democratas pelo nazismo e o austrofascismo no início dos anos 1930 – a cultura progressista da psicanálise do entre guerras também se desvaneceu. O fato de ter sido destruído pela irracionalidade da sociedade que pretendia tratar foi profundamente castigador e delusório. No início da Guerra Fria, uma psicanálise mais cautelosa e conservadora dominaria a Associação Psicanalítica Internacional.

No entanto, a luta para criar uma psicanálise para as massas foi um experimento com lições valiosas para o presente. Nutridos pela social-democracia, os psicanalistas começaram a pensar em seu trabalho prático e terapêutico além das limitações do liberalismo. Para olhar a questão de uma maneira um pouco diferente, eles começaram a ver no socialismo a única possibilidade de alcance dos direitos pessoais e da liberdade individual que o liberalismo ao mesmo tempo defendeu e excluiu.

Foi nas novas clínicas gratuitas, escreveu Simmel, que a pessoa sem privilégios desfrutou primeiro do “direito e da possibilidade de suportar a profundidade de sua vida mental inconsciente em uma conversa livre e descomplicada”. Uma demanda impossível mesmo dentro do horizonte progressista do período entre guerras, “o direito do homem pobre” ao tratamento de sua mente foi, no entanto, um portal para imaginar um futuro melhor.

Sobre o autor

Phillip Henry é pós-doutorando em Shenzhen, China. Atualmente, ele está escrevendo a história da psicanálise entre as guerras.

Controle de curva de juro


Ao empinar a curva, o mercado pode anular o efeito expansionista da queda da Selic

Nelson Barbosa


Em tempos normais, o Copom fixa a taxa de juro de curto prazo, e o mercado determina a taxa de juro de longo prazo.

Considerando os títulos do governo, a taxa de longo prazo é uma média ponderada das taxas de curto prazo esperadas para o cada período (um ano, dois anos etc.), mais um prêmio de risco.

A média é calculada em termos geométricos, mas podemos simplificar isso usando logaritmo (fique comigo mais algumas linhas).

Por exemplo, suponha que a Selic seja de 3% em log neste ano e a expectativa de mercado seja Selic de 2% em log para o próximo ano. Nesse caso, se o investidor não se importa com risco, a taxa de juro de dois anos deve ser de 2,5% em log.

Traduzindo do economês, ao analisar uma aplicação de dois anos, o retorno esperado de comprar e carregar um título de dois anos deve ser igual a comprar um título de um ano e reaplicar o dinheiro, dentro de 12 meses, em outro título de um ano.

Dado que a maioria dos agentes é avessa ao risco, o título de dois anos acaba pagando mais do que 2,5%, e nós, economistas, chamamos isso de prêmio de risco. A curva de juro é a relação entre taxa de juro e o prazo da aplicação.

Quando o BC reduz a Selic, a taxa curta cai, mas a taxa longa pode subir se o mercado achar que o BC terá que compensar o juro mais baixo de hoje com juro mais alto no futuro. A taxa longa também pode subir se o mercado achar que o futuro ficou mais incerto e, portanto, quiser mais prêmio de risco.

O que aconteceu no Brasil? O BC cortou a Selic e deve repetir a dose dentro de algumas semanas. Diante disso, a taxa de juro de curto prazo caiu, mas a resposta inicial do mercado foi elevar as taxas de juro de longo prazo.

Pode ser que o mercado ache que o BC voltará a subir a Selic dentro de um ano. Mas também pode ser que o risco-país tenha subido muito devido à incerteza política e fiscal associada ao governo Bolsonaro.

Seja qual for o motivo, o custo de crédito para empresas, famílias e governo é mais influenciado pela taxa longa do que pela taxa curta de juro. Assim, ao “empinar a curva”, o mercado pode anular o efeito expansionista da queda da Selic.

Para evitar volatilidade excessiva das taxas longas de juro, o BC pode intervir no mercado de títulos públicos, o que nós, economistas, chamamos de “controle de curva”.

No contexto atual, a ação seria de compra. O BC poderia fazer leilões de compra de títulos públicos de longo prazo, aumentando o seu preço e reduzindo a taxa de juro correspondente.

Intervenção nas taxas de juro de longo prazo é, sem dúvida, uma medida heterodoxa. Ela tende a ser adotada somente em condições excepcionais, como fizeram os EUA e o Japão após a crise de 2008.

Mais recentemente, o banco central da Austrália aderiu à heterodoxia e anunciou que manterá a taxa de juro de um dia a três anos em 0,25%. Em outras palavras, o BC australiano disse que “paga o que for” por títulos de renda fixa para segurar a taxa de juro de até três anos em 0,25%.

Como seria no Brasil? Assim como lá fora, podemos intervir nas taxas longas, sobretudo agora que a “PEC do Orçamento de Guerra” diminuiu a incerteza jurídica para o BC comprar e carregar títulos públicos até o vencimento. Se isso vai ou não acontecer, depende do mercado e do BC.

Por enquanto, as taxas de juro longo subiram, mas no horizonte de até cinco anos elas ainda estão mais baixas do que no fim de 2019. A expectativa de recessão é tão grave, e a de inflação, tão baixa, que isso mais do que compensou a elevação do risco fiscal e político nos próximos cinco anos.

Folha de S.Paulo

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

27 de maio de 2020

Quem dá a última palavra?

É preciso reafirmar: não existe intervenção militar constitucional

Fernando Neisser, Lenio Luiz Streck e Marco Aurélio de Carvalho

Folha de S.Paulo

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta e discursa para apoiadores em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília; parte dos manifestantes pedia intervenção militar e um "novo AI-5" - Pedro Ladeira - 19.abr.20/Folhapress

​Desde a captura por setores da extrema direita da indignação que foi às ruas em julho de 2013, ouve-se, aqui e ali, rumores de que a Constituição Federal oculta uma válvula de escape: a intervenção militar constitucional.

​A expressão é um oxímoro, um paradoxo. Assim como a “dor que desatina sem doer”, de Camões, ou as “mentiras sinceras”, de Cazuza, a contradição interna de um conceito, quando muito, tem valor apenas na fantasia. Ou no pesadelo.

​Não existe intervenção militar constitucional. É preciso reafirmar tantas vezes quanto necessário. E o motivo é simples, pois nossa Carta previu exatamente a quem cabe resolver conflitos sobre a interpretação das suas próprias regras: o Supremo Tribunal Federal.

​Em seu artigo 102, diz-se, com todas as letras, que é a principal tarefa do STF promover a guarda da Constituição. Como o ministro Marco Aurélio Mello diz com frequência, entendeu o constituinte por dar ao STF o poder de errar por último. Pode-se até pensar —e há liberdade para isso— que o STF erra ao aplicar essa ou aquela norma constitucional. Mas não se pode admitir que haja alguma autoridade, acima do STF, com poderes legítimos para dizer: não irei cumprir.

​Quem equivocadamente defende que as Forças Armadas pairam como juiz soberano, pronto a subjugar o STF se discordar da corte, costuma escorar-se no artigo 142 da Constituição Federal. Em seu trecho final, diz que cabe às Forças Armadas, a pedido de algum dos Poderes, garantir a lei e a ordem.

​É sabido e consabido na hermenêutica que não se interpreta por partes. Esse artigo 142 integra a Constituição, é parte dela, e deve ser interpretado em harmonia com os demais, que preveem, expressamente, que o poder emana do povo, que o exerce por seus representantes. Qualquer manual de direito constitucional mostra que isso está consubstanciado no que se chama de Unidade da Constituição. Nenhuma norma constitucional dá às Forças Armadas a missão de exercer um fictício "Poder Moderador".

​Mas então, para que serve o tão falado artigo 142?

​Simples, para dar suporte às funções atípicas das Forças Armadas. Originalmente pensadas para proteger o país contra incursões externas, podem também cumprir missões ligadas à segurança pública, interna, em determinadas situações.

​O tema é devidamente regulado pela lei complementar 97/99 e, nos últimos anos, habituamo-nos a ver as Forças Armadas nesse tipo de missão, chamadas de “Garantia da Lei e da Ordem”. O próprio Ministério da Defesa destaca exemplos desta atuação na Rio + 20, na Copa das Confederações, na Copa do Mundo e na Olimpíada do Rio de Janeiro. Nada mais do que isso. Não há atalho que permita descumprir as decisões soberanas do STF sobre as questões constitucionais.

​Mas de onde vem, então, a argumentação dos que defendem essa leitura do artigo 142?

​Sem dúvida, da tentativa de ganhar, no replay, uma briga jurídica perdida há décadas: aquela que se travou, na Alemanha do entreguerras, entre Carl Schmitt e Hans Kelsen. Resumidamente, o debate girava em torno de saber quem dava a última palavra na guarda da Constituição: uma corte constitucional ou o presidente.

Para Carl Schmitt, esse poder deveria ser do presidente, que representaria a vontade viva do povo em um certo momento histórico. E essa vontade não podia encontrar qualquer limitação.

​Kelsen, de outro lado, entendia a Constituição como um conjunto de regras representando um consenso obtido na fundação do Estado. Esse consenso mínimo haveria de ser preservado e protegido. As normas não poderiam obter legitimidade fora da Constituição.

A história deu razão a Kelsen. As ideias de Carl Schmitt deram amparo ao horror estabelecido na Alemanha nazista, enquanto a reconstrução europeia e mundial, em grande medida, valeu-se da proposta de Kelsen de estabelecer cortes constitucionais estabilizadoras dos sentidos das respectivas Constituições. Afinal, Kelsen fora o mentor-construtor do Tribunal Constitucional da Áustria, no qual, aliás, atuou.​

Também no Brasil esse debate se travou. Reportagem desta Folha expôs as discussões da constituinte em torno do artigo 142 e a tentativa de manter aberta uma porta ao autoritarismo.

​E ainda que não tenhamos adotado integralmente as sugestões de Kelsen quanto ao controle de constitucionalidade, vez que mantemos a possibilidade de controle difuso pelos demais juízes, é fora de dúvida que, neste ponto, prevaleceu sua visão: a guarda da nossa Constituição cabe ao STF, e não ao presidente da República ou às Forças Armadas.

Sobre os autores
Fernando Neisser

Doutor em direito pela USP, presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) e sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados

Lenio Luiz Streck

Doutor em Direito pela UFSC, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB e advogado sócio de Streck & Trindade Advogados Associados

Marco Aurélio de Carvalho

Advogado especializado em direito público e em direito notarial e de registro

A teoria do metabolismo de Marx na era da crise ecológica global

Quando a ordem existente não pode oferecer uma solução, a solução para a crise climática deve vir da esquerda radical, e é precisamente por isso que a ideia de ecossocialismo de Karl Marx é mais importante do que nunca. Neste contexto, vale a pena revisitar não apenas o legado da teoria do "metabolismo social" de István Mészáros e de seus sucessores — que podem ser categorizados como compreendendo a "escola da fratura metabólica", que inclui John Bellamy Foster, Paul Burkett e Brett Clark —, mas também a própria teoria do metabolismo de Karl Marx. A fim de destacar a importância contemporânea da teoria do metabolismo de Marx após sua longa supressão no século XX, este artigo visa classificar os três níveis diferentes do conceito de "fratura metabólica" de Marx, o que também implica esclarecer três níveis diferentes de "mudança metabólica" como a base teórica para atualizar a teoria do pós-capitalismo de Marx na era da crise ecológica global.

Historical Materialism - Volume 28 Issue 2, 2020

Tradução / Há quase cinquenta anos atrás, em 1971, István Mészáros iniciou a primeira palestra memorial do Prémio Deutscher, referindo-se ao aviso de Isaac Deutscher contra o perigo que "ameaça a nossa existência biológica", a perspetiva de uma guerra nuclear. Ele então prosseguiu alargando o aviso do Deutscher a uma outra crise existencial contemporânea para "toda a humanidade", que é a destruição ecológica sob o capitalismo (1). Esta asserção de Mészáros foi pioneira, uma vez que foi feita antes mesmo da publicação de The Limits to Growth pelo Clube de Roma em 1972. Apontou claramente para a natureza destrutiva do desenvolvimento capitalista:

"[A] contradição básica do sistema capitalista de controlo é que ele não pode separar ‘avanço’ de destruição, nem ‘progresso’ do desperdício - por mais catastróficos que sejam os resultados. Quanto mais desbloqueia os poderes da produtividade, mais deve desencadear os poderes de destruição; e quanto mais aumenta o volume de produção, mais deve enterrar tudo sob montanhas de resíduos asfixiantes" (2).

Hoje em dia, esta contradição fundamental do capitalismo manifesta-se mais agudamente como a rotura climática. O Alasca, a Califórnia, a Amazónia e a Austrália estão a arder. O gelo na Antártida e na Gronelândia está a derreter rapidamente. Os corais estão a morrer devido ao aumento da temperatura da água do mar. Supertufões e furacões destroem cidades. Todos estes fenómenos estão a acontecer como resultado de um “mero” aumento de 1,0° C na temperatura média do mundo desde a revolução industrial.

Como o estima o relatório do Painel Internacional para as Mudanças Climáticas (PIMC), se o atual ritmo de emissão de CO2 continuar, a temperatura média global subirá cerca de 4,0° C. Mas pode até subir mais, devido a vários mecanismos de retorno positivo que o relatório do PIMC não tem em conta. Em contrapartida, a fim de limitar o aumento das temperaturas globais até 2100 a 1,5°C (ao ritmo atual de emissão de CO2, 1,5° C será atingido dentro de 10 anos), é necessário reduzir a emissão de CO2 a cerca de metade até 2030 e a emissão líquida deve ser zero até 2050. Isto significa a redução imediata das emissões de CO2 em cerca de 7% por ano. Obviamente, isto não pode ser alcançado sem uma transformação radical de toda a sociedade e salienta a urgente "necessidade de controlo social" a uma escala sem precedentes.

O planeamento social da produção e a regulamentação severa das atividades de mercado são, no entanto, totalmente incompatível com a lógica do capitalismo neoliberal, que tem constituiu o paradigma do sistema global desde o colapso do sistema do socialismo realmente existente. Esta é, precisamente, a razão pela qual os políticos e as elites não são capazes de responder à crise climática de uma forma eficaz no quadro atual, que gira em torno da ONU. Mesmo que as promessas do Acordo de Paris sejam cumpridas, estima-se que a temperatura média global ainda suba cerca de 3,0° C. Esta incapacidade e ineficácia demonstram claramente que a produção capitalista não pode oferecer qualquer contramedida eficaz contra a crise climática, enquanto se basear fundamentalmente na confluência de um mercado não regulamentado em prol de um crescimento económico infinito. O que é necessário é precisamente uma cooperação global e uma coordenação em prol da sobrevivência coletiva neste planeta finito, sem um Plano B.

Como salienta Greta Thunberg, se for impossível encontrar uma solução dentro do sistema atual, é necessário alterar o próprio sistema. Não é, pois, de admirar, que “Mudança de sistema, não mudança climática!” se tenha tornado a palavra de ordem dos movimentos ambientalistas radicais. Quando a ordem existente não pode oferecer uma solução, a solução para a crise climática tem de vir da esquerda radical, e é precisamente esta a razão porque a ideia do ecossocialismo de Karl Marx é mais importante hoje do que nunca. Neste contexto, vale a pena rever não só o legado da teoria "do metabolismo social" de Mészáros e dos seus sucessores - que podem ser categorizados como constituindo a "escola da fratura metabólica", que inclui John Bellamy Foster, Paul Burkett e Brett Clark -, mas também a própria teoria do metabolismo de Marx. A fim de destacar a importância contemporânea da teoria do metabolismo de Marx, após a sua longa supressão no século XX, este ensaio visa classificar os três níveis diferentes do conceito de "fratura metabólica" de Marx, o que também implica clarificar três níveis diferentes de “mudança metabólica” como fundamento teórico para atualizar a teoria de Marx sobre o pós-capitalismo na era da crise ecológica global.

1. A supressão do ecossocialismo de Marx

Como é bem sabido, a Marx foi repetidamente atribuído um ingénuo "prometeanismo", que defenderia o crescimento ilimitado da produtividade e apoiaria sem qualquer crítica a tendência capitalista para desenvolver tecnologias. É bem conhecido que o Ted Benton criticou Marx pela sua "fuga" ao reconhecimento dos limites naturais (3). De acordo com os seus críticos, Marx teria assumido acriticamente que o desenvolvimento tecnológico sob o capitalismo permite a livre manipulação da natureza, o que funcionaria em última instância como a base material para a realização da emancipação humana na sociedade do futuro.

O mito do prometeanismo de Marx persiste ainda hoje. Axel Honneth aponta para as limitações do marxismo, na medida em que uma das ideias inerentes ao marxismo seria um “determinismo tecnológico", que pressupõe o progresso linear das forças produtivas em nome do “domínio sobre a natureza” (Naturbeherrschung) (4). Para além disso, Sven-Eric Liedman acredita que Marx não era uma "pessoa ecologicamente consciente" no sentido moderno, porque "imaginava que a sociedade que substituiria o capitalismo poderia também restabelecer o equilíbrio entre a humanidade e a natureza na agricultura" (5).

No entanto, a situação mudou decisivamente com o aprofundamento da crise ecológica. Quanto mais claramente a crise se manifesta como a consequência da guerra interminável do capital contra o planeta, mais forte será o interesse na crítica ecológica marxista do capitalismo, bem como na ideia de ecossocialismo como uma alternativa ao atual sistema económico irracional. Autores como John Bellamy Foster, Paul Burkett, James O'Connor, Joel Kovel e Michael Löwy têm demonstrado convincentemente, em publicações como a Monthly Review e Capitalism Nature Socialism, como uma abordagem marxista pode ser útil a uma análise crítica da degradação ambiental de hoje, bem como a uma visão de uma sociedade sustentável para além do capitalismo (6).

Uma vez reconhecida a existência da ecologia de Marx, ela parece tão óbvia que nos podemos perguntar porque foi negligenciada durante tanto tempo e porque razão algumas pessoas tão obstinadamente se recusaram a reconhecer a sua importância teórica como uma base para a crítica ecológica do capitalismo. Aqui podemos apontar para duas principais razões.

Primeiro, a negligência da ecologia de Marx tem a ver, em grande parte, com o carácter inacabado da sua crítica à economia política. Como é sabido, os volumes II e III de O Capital não foram publicadas durante a vida de Marx. Engels editou-os após a morte de Marx, baseando-se em vários manuscritos escritos em alturas diferentes. Os estudiosos marxistas tomaram simplesmente a edição de O Capital de Engels como sendo a versão definitiva. Não lhes ocorreu que Marx, especialmente nos seus últimos anos, tenha estudado intensivamente as ciências naturais e deixado para trás um grande número de cadernos compostos por vários excertos e comentários.

Tal como é discutido no meu livro Karl Marx’s Ecosocialism, Marx iniciou esta nova investigação após a publicação do Volume I de O Capital (7). Uma vez que ele mal publicou após 1868, incluindo os volumes II e III de O Capital, não podia em parte alguma elaborar sobre os resultados da sua nova investigação. Foi, nomeadamente, nestes cadernos de notas que os novos conhecimentos ecológicos de Marx ficaram documentados, mas simplesmente permaneceram despercebidos e inéditos ao longo do século XX. Ainda que estes cadernos de notas sobre as ciências naturais documentem do interesse de Marx no carácter destrutivo do capital no ambiente natural, e nos permitam rastrear o desenvolvimento da crítica ecológica de Marx sobre o capitalismo, ninguém estava realmente interessado no estudo destes cadernos. Por exemplo, David Riazanov, que foi o fundador do Instituto Marx-Engels em Moscovo e o editor chefe do primeiro Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA1), comentou negativamente sobre o envolvimento tardio de Marx com as ciências naturais, descartando a importância do cadernos de notas para compreender a sua crítica da economia política:

"Se em 1881-82 ele perdeu a sua capacidade de criação, no entanto nunca perdeu a capacidade de investigação. Por vezes, ao reconsiderar estes Cadernos de Notas, surge a questão: Porque desperdiçou ele tanto tempo neste resumo sistemático e fundamental, ou gastou tanto trabalho como gastou, num ano tão tardio como 1881, num livro básico sobre geologia, resumindo-o capítulo por capítulo. No 63.º ano da sua vida - isto é pedantice indesculpável" (8).

Consequentemente, a maioria dos cadernos de Marx sobre as ciências naturais não foi sequer publicada até 2019. Esta situação contribuiu indubitavelmente para a negligência generalizada a que foi votado o interesse de Marx pelas questões ecológicas, levando alguns ecossocialistas antimarxistas, como Engel-Di Mauro, a argumentar, ainda hoje, que o marxismo ecologista “extrapola o ecológico em Marx a partir de excursões suas breves e vagas, em textos que abordam outros temas que não a dinâmica ecológica” (9).

No entanto, há ainda mais um fator dentro do marxismo que marginalizou a crítica ecológica de Marx ao capitalismo no século XX. Foi porque o chamado “marxismo tradicional” sempre interpretou a teoria de Marx como um sistema fechado de materialismo histórico que nos permite, ostensivamente, compreender tudo no universo (10). O estabelecimento de um aparelho ideológico gigantesco foi necessário para a mobilização maciça dos trabalhadores para o marxismo. Assim, o seu sistema como uma "visão do mundo" deveria abranger a história do desenvolvimento dialéctico nas esferas tanto da sociedade como da natureza. Houve, no entanto, vários problemas. Como foi mencionado acima, os volumes II e III de O Capital apresentam muitas lacunas teóricas. Além disso, Marx não escreveu nenhum relato sistemático da dialética da natureza. Embora houvesse uma série de manuscritos e cadernos, os marxistas tradicionais não se atreveram a publicá-los e a examiná-los porque tinham medo que estes escritos inéditos pudessem revelar o carácter incompleto do sistema de Marx (11). Eles foram “suprimidos”.

O fundador do “marxismo tradicional”, Friedrich Engels, tem um importante papel nesta história. Ele sabia da existência dos cadernos de notas de Marx sobre as ciências, e tiveram conversas sobre questões ecológicas. No entanto, Engels nem sequer mencionou o sério compromisso de Marx com as ciências naturais no seu Anti-Dühring. Isto deveu-se, presumivelmente, a que Engels visava estabelecer o marxismo como uma visão do mundo para o movimento social e político da classe trabalhadora. Nesta linha, foi compelido a destacar o carácter sistemático de O Capital de Marx, em comparação com a influente obra de Eugen Dühring. Isto funcionou bem e Engels alcançou o seu objetivo, mas não sem custos. Por causa de Engels, as gerações seguintes da teoria tradicional marxista simplesmente tomaram por certo que existe uma divisão intelectual do trabalho entre Marx e Engels; que Marx não tinha muito a dizer sobre a natureza, precisamente porque tinha confiado a Engels o desenvolvimento futuro da dialética da natureza. Assim, A Dialética da Natureza e o Anti-Dühring de Engels tornaram-se pontos de referência chave na aplicação do materialismo dialético de Marx à esfera da natureza. No entanto, como argumenta Terrell Carver, existem diferenças teóricas significativas entre Marx e Engels (12). O tratamento das ciências naturais não é exceção. Uma vez que Engels lidou principalmente com a esfera da natureza a partir de uma perspetiva metafísica e enciclopédica, o interesse ecológico do próprio Marx nas ciências naturais não foi devidamente entendido em relação à sua crítica da economia política (13).

Escusado será dizer que houve outros marxistas que desafiaram esta visão do mundo do marxismo tradicional. Ao fazê-lo, recorreram a Hegel por forma a contrariar o materialismo bruto de um marxismo tradicional que afirma explicar tudo no universo. Esta corrente teórica chama-se "Marxismo Ocidental", o termo sendo por vezes ligado ao Merleau-Ponty (14). No entanto, enquanto rejeitaram, com razão, os entendimentos mecanicistas e positivistas do marxismo tradicional, os marxistas ocidentais assinalaram Engels como o fundador enganador desta problemática Weltanschauung filosófica. Como é bem sabido, foi György Lukács quem insistiu nisto, na sua obra História e Consciência de Classe:

"É da primeira importância perceber que o método está aqui limitado aos reinos da história e da sociedade. Os mal-entendidos que surgem da visão da dialética de Engels podem, no essencial, ser atribuído ao facto de que Engels - seguindo a pista errada de Hegel - estendeu o método para o aplicar também ao conhecimento da natureza. No entanto, os determinantes cruciais da dialética - a interação de sujeito e objeto, a unidade da teoria e da prática, as mudanças históricas na realidade subjacente às categorias como a causa raiz das mudanças no pensamento, etc. - estão ausentes do nosso conhecimento da natureza" (15).

Embora esta passagem estivesse escondida numa nota de rodapé, Lukács fundou o marxismo ocidental com esta reivindicação provocadora. O seu ponto de vista é claro. Engels aplicou erradamente a análise dialética de Marx da sociedade ao conhecimento da natureza. Em conformidade, quando os marxistas ocidentais expulsaram Engels e a sua dialética mecanicista da natureza da sua análise, ao mesmo tempo, excluíram completamente do marxismo a esfera da natureza e das ciências naturais. A natureza desaparece. Esta decisão era inevitável para eles, a fim de evitar que a teoria social de Marx descesse até ao materialismo cru do marxismo soviético, mas o preço que o marxismo ocidental teve de pagar por isso foi bastante elevado: O marxismo ocidental tornou-se incapaz de integrar o problema da ecologia na sua análise, porque a ecologia é a esfera em que a natureza deve voltar à investigação teórica. Uma vez que o problema da natureza já não pode ser suprimido, na era da crise ecológica, Alain Badiou perde o seu brilho habitual e nega histericamente a sua importância: "A ecologia é um novo ópio para as massas " (16). Badiou quer enfatizar a centralidade da luta de classes pelo comunismo. Concordo plenamente. No entanto, a lealdade a Marx não deve levar à subestimação das questões ecológicas para o projeto socialista – antes de mais porque o próprio Marx estava profundamente preocupado com as questões ecológicas!

Em qualquer caso, tanto o marxismo tradicional como o marxismo ocidental acabaram por ignorar a importância da investigação séria de Marx no domínio das ciências naturais durante o século XX. As novas obras completas de Marx e Engels, o Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA2), têm estado, pela primeira vez, embrenhadas no processo de publicação de materiais que documentam como Marx, nos seus anos finais, desenvolveu a sua crítica ecológica do capitalismo. Hoje, o marxismo ocidental já não pode mais justificar a omissão das contribuições da ciência natural para a teoria crítica marxista. No entanto, o novo MEGA também deixa claro que Marx, ao contrário de Engels e outros marxistas tradicionais, não pretendia expor as leis naturais de todo o universo. É necessário abrir uma terceira via para compreender a razão do envolvimento de Marx com as ciências naturais. O conceito chave aqui é "metabolismo".

2. A redescoberta da ecologia marxista

Neste contexto, a contribuição teórica de Mészáros para a renovação do marxismo, para além tanto do marxismo tradicional como do ocidental, é fundamental, por colocar em destaque o conceito de “metabolismo” (Stoffwechsel) cunhado por Marx. Em particular, a sua obra Beyond Capital mudou radicalmente toda a constelação discursiva em torno da crítica da economia política de Marx, prestando atenção a este conceito (17). Mészáros desenvolveu o conceito de “metabolismo social”, a fim de analisar o modo de produção capitalista como uma forma historicamente única de (re)organizar a interação metabólica entre o homem e a natureza. De acordo com ele, qualquer crítica ao modo de produção capitalista não pode limitar-se a observar o quotidiano, concentrando-se unicamente na exploração de trabalhadores pelo capitalista. Mészáros defendeu uma abordagem muito mais holística, que analisa a totalidade da interação metabólica entre o homem e a natureza sob o domínio do capital, ligando a sua abordagem a uma crise existencial muito mais vasta de degradação ecológica.

O que é o metabolismo? Marx escreveu em O Capital: “O trabalho é, antes de mais nada, um processo entre o homem e a natureza, um processo pelo qual o homem [...] medeia, regula e controla o metabolismo entre ele próprio e a natureza” (18). Este processo metabólico é, por um lado, um processo natural-ecológico, que é comum a qualquer etapa histórica, porque os seres humanos não podem viver sem agir sobre a natureza através do trabalho.

Por outras palavras, os humanos fazem parte da natureza e o seu processo é mediado pelo trabalho ao nível "primário", alterando constantemente as condições objetivas de reprodução produtiva. As condições mudam ao longo da história humana, mas esta condição material primária permanece e não pode ser abolida.

Por outro lado, é também um processo sócio-histórico, cujas formas concretas são mediadas pelas relações sociais existentes. Em particular, Mészáros sustentou, em Beyond Capital, que existem as “mediações de segunda ordem de sistemas reprodutivos sociais historicamente específicos” (19). Um conjunto particular de mediações de segunda ordem é único para cada sistema social. Por exemplo, a lógica do capital de busca da valorização máxima é única e própria do modo de produção capitalista, constituindo um conjunto único de mediações de segunda ordem, de tal forma que

"cada uma das formas primárias [de metabolismo entre os seres humanos e natureza] é alterada quase para além do reconhecimento, de modo a adequar-se às auto-expansivas necessidades de um sistema fetichista e alienante de controlo metabólico social, que deve subordinar absolutamente tudo ao imperativo da acumulação-capital" (20).

Todo o objetivo da análise de Marx sobre o capital é compreender estas mediações de segunda ordem do metabolismo humano com a natureza.

De acordo com Mészáros, a organização do metabolismo social feita pelo capital, com as suas mediações de segunda ordem, é incompatível com várias características materiais do metabolismo entre o ser humano e a natureza ao nível primário, levando à sua destruição. Ele afirmou que o capital deixa assim de ser produtivo, passando a ser destrutivo:

"os limites do capital já não podem ser conceptualizados como sendo meramente os obstáculos materiais a um maior aumento da produtividade e da riqueza social, e assim como um travão ao desenvolvimento, mas como o desafio direto à própria sobrevivência da humanidade. E num outro sentido, os limites do capital podem virar-se contra ele como o controlador dominante do metabolismo social [...] quando o capital já não é capaz de assegurar, por quaisquer meios, as condições da sua autorreprodução destrutiva, provocando assim a rotura do metabolismo social global" (21).

Além disso, Mészáros acrescentou que "o sistema do capital como um modo de reprodução metabólica social encontra-se na sua fase descendente de desenvolvimento histórico e, portanto, é apenas capitalisticamente avançado, mas em nenhum outro sentido, de todo, sendo assim capaz de se sustentar apenas de uma forma cada vez mais destrutiva e, portanto, em última análise, também autodestrutiva" (22).

O legado da teoria do metabolismo de Mészáros é retomado por John Bellamy Foster e Paul Burkett, que examinaram cuidadosamente o uso que Marx faz do conceito de metabolismo e desenvolveram o conceito de "fratura metabólica" a partir de passagens do Volume III de O Capital, a fim de se poder tematizar a irracionalidade do modo de produção capitalista existente (23). Hoje em dia, há várias tentativas para analisar as fraturas na interacção metabólica entre o ser humano e a natureza, tais como as que envolvem a ecologia marinha (Stephano Longo), as alterações climáticas (Naomi Klein, Brett Clark e Richard York), as perturbações do ciclo do azoto (Philip Mancus) e a erosão dos solos (Hannah Holleman). Estes excelentes exemplos confirmam a validade e a fecundidade da aplicação ecossocialista contemporânea da teoria de Marx sobre a fratura metabólica. Claramente, o meu trabalho Karl Marx’s Ecosocialism pode ser visto como pertencente a esta tradição.

Poder-se-á objetar que essa "ecologização" da crítica de Marx ao capitalismo é uma mera imposição das "nossas" preocupações ao texto de Marx, distorcendo-o e negligenciando a existência de falhas e limitações fatais na teoria de Marx (24). Em contraste, Marx reconheceu claramente o poder destrutivo do capital e argumentou que as perturbações no metabolismo universal da natureza minam inevitavelmente as condições materiais para um desenvolvimento humano livre e sustentável:

[Produção capitalista] perturba a interação metabólica entre o homem e a terra, ou seja, impede o retorno ao solo dos seus elementos constituintes consumidos pelo homem sob a forma de alimentos e vestuário; por conseguinte, dificulta o funcionamento da eterna condição natural para a fertilidade duradoura do solo. Assim, destrói ao mesmo tempo a saúde física do trabalhador urbano e a vida intelectual do trabalhador rural" (25).

O roubo inerente ao desenvolvimento capitalista das forças produtivas não traz consigo as progressões que levariam automaticamente a uma sociedade comunista. Em vez disso, Marx tentou analisar como a lógica do capital diverge do ciclo natural eterno e, em última análise, causa várias desarmonias na interação metabólica entre o ser humano e a natureza.

Marx analisou este ponto com referência à crítica de Justus von Liebig à moderna "agricultura de roubo", que retira o máximo de nutrição possível do solo sem a devolver. A agricultura de roubo é impulsionada pela necessidade de maximizar lucros a curto prazo, o que significa que as condições materiais do solo sob o capitalismo tornam-se simplesmente incompatíveis com a produção sustentável. Assim, surge um grave desfasamento entre a lógica da valorização do capital e a do metabolismo sustentável da natureza, que cria uma "fratura irreparável" na interação metabólica humana com o ambiente. No Volume III de O Capital Marx escreveu:

"Por outro lado, a grande propriedade fundiária reduz a população agrícola a um mínimo sempre decrescente, confrontando-a com uma população industrial crescente amontoada em grandes cidades; desta forma, produz as condições que provocam uma fratura irreparável no interdependente processo entre o metabolismo social e o metabolismo natural prescrito pelas leis naturais do solo. O resultado disto é um esbanjamento da vitalidade do solo, e o comércio leva esta devastação muito para além os limites de um único país (Liebig)" (26).

Marx acreditava que, enquanto o sistema capitalista persistir, existe uma inevitável tendência para a degradação das condições materiais de produção. Por outras palavras, o mercado não pode funcionar como um bom mediador para a produção sustentável pese embora a crença persistente de que o capitalismo verde fosse de alguma forma possível num futuro próximo. O problema fundamental é que o valor não fornece um mecanismo de retorno entre o mercado e a natureza. A inovação capitalista em ciência e tecnologia também não resolverá a crise ecológica, mas simplesmente a deslocará e aprofundará. A fim de compreender estes pontos, é necessário examinar o conceito de fratura metabólica de Marx com mais cuidado.

3. Três dimensões da fratura metabólica

Marx não desenvolveu em pormenor o conceito de "fratura metabólica". Como se viu acima, ele simplesmente utilizou o termo "fratura irreparável" numa passagem de O Capital. Em consequência, apesar da análise cuidadosa de Foster aos textos de Marx e da aplicação deste conceito a várias questões ecológicas contemporâneas, alguns críticos argumentam que "as implicações da tese de Foster para o pensamento contemporâneo são vagas e as conclusões atávicas" (27). Aqui seria uma boa oportunidade para responder aos críticos, clarificando o conceito de fratura metabólica de Marx com base na sua própria utilização do termo. Embora Marx não classificasse explicitamente o conceito, três dimensões de fratura metabólica são claramente discerníveis.

Em primeiro lugar e mais fundamentalmente, existe uma fratura na circulação material dentro do ciclo metabólico da natureza. O famoso exemplo de Marx é, como se viu acima, a perturbação na circulação dos nutrientes do solo. A agricultura capitalista moderna visa fazer com que as plantas absorvam a nutrição do solo o mais possível e o mais rapidamente possível, para que possam ser vendidas como mercadoria a clientes nas grandes cidades.

Como Liebig avisou no seu livro Química Agrícola, substâncias inorgânicas como o fósforo e o potássio são essenciais para permitir o crescimento suficiente das plantas, mas a sua disponibilidade é bastante limitada em termos da sua ocorrência quantitativa natural no solo, porque o processo de desagregação que dispersa estas substâncias inorgânicas, através das ações da atmosfera e da água da chuva, leva muito tempo (28). Assim, Liebig defendeu a "lei do reabastecimento" (Gesetz des Ersatzes) como o primeiro princípio da "agricultura racional", enfatizando a importância de devolver cuidadosamente uma quantidade suficiente de minerais absorvidos pelas plantas ao solo original, se se quiser manter a fertilidade do solo. No entanto, as culturas que são vendidas nas grandes cidades não regressam ao solo original depois de serem consumidas. Em vez disso, fluem diretamente para o rio como excremento através das águas residuais. Esta perturbação no ciclo natural do metabolismo entre o homem e a natureza mina as condições ecológicas naturais de sustentabilidade da agricultura, causando um esgotamento generalizado do solo na Europa e nos E.U.A. na altura. Liebig criticou duramente esta busca vesga da maximização do lucro a curto prazo como sendo uma “agricultura de roubo”. A sua perceção fundamental permanece válida hoje em dia, pois é exatamente isto que ainda está a acontecer, como a perturbação dos ciclos globais do azoto e do fósforo.

Este nível fundamental de fratura metabólica sob a forma de rotura de fluxo material não pode ocorrer sem ser complementado por duas outras dimensões. A segunda dimensão é a fratura espacial. Marx problematizou esta fratura exclusiva da organização capitalista do espaço como o "antagonismo entre a cidade e campo" (29). A agricultura de roubo não existe sem uma divisão social do trabalho, que se baseia na concentração da classe trabalhadora nas grandes cidades e na necessidade emergente de transporte constante dos seus alimentos a partir do campo. Esta é a separação espacial antagónica dentro de um país capitalista.

No entanto, é de notar que a expressão de Marx, na passagem acima citada, indica também uma hierarquização internacional através da fratura espacial. Nomeadamente, a fratura metabólica é externalizada à escala global através do comércio de longa distância. Daí advém que as consequências negativas da fratura, tais como a exaustão de recursos e a poluição, surgem desproporcionadamente nessas zonas periféricas das quais os recursos são constantemente extraídos e transportados para o centro. Esta chamada "troca ecologicamente desigual" é o modo como o centro acumula mais riqueza e se torna mais próspero.

A fim de compreender esta organização espacial antagónica produzida pelo capital, o livro de Andreas Malm Fossil Capital é um ponto de referência útil. Fossil Capital reconstrói a transição histórica dos moinhos de água para os motores a vapor alimentados a carvão. A água é abundante e disponível, sendo, portanto, uma fonte de energia perfeitamente sustentável e gratuita. Este é certamente um facto óbvio, mas um facto importante, tendo em conta a comum explicação "malthusiana" das tecnologias, segundo a qual a escassez crescente de recursos e o seu correspondente aumento de preço, num processo de crescimento económico, leva necessariamente à descoberta ou invenção de outros materiais de substituição, mais baratos. Malm argumenta que esta explicação não se aplica à substituição da água gratuita e abundante pela máquina a vapor, dependente da utilização de carvão caro e escasso.

De acordo com Malm, para explicar esta transição histórica, é necessário levar em conta a dimensão da mediação de segunda ordem do "capital". A utilização de combustível fóssil começou não simplesmente como um recurso energético, mas sim como capital fóssil. As características naturais do carvão - em contraste com as da água - como uma fonte de energia transportável e monopolizável, possuíam um significado social único para o desenvolvimento da produção capitalista. Graças ao carvão, o capital poderia deixar as zonas em torno dos rios, onde os trabalhadores eram mais resistentes, uma vez que a força de trabalho era escassa, deslocando as fábricas para grandes cidades, onde existia um grande número de trabalhadores a precisar muito de empregos. Foi basicamente assim que o equilíbrio de poder entre capital e trabalho mudou radicalmente com a invenção da máquina a vapor (30).

O combustível fóssil está intimamente ligado à forma exclusivamente capitalista de organizar uma divisão social do trabalho antagonística entre a cidade e o campo. A relação é antagónica precisamente porque as consequências negativas da fratura espacial são desproporcionalmente redistribuídas em favor das grandes cidades. Estas industrializam-se e acumulam capital, enquanto o campo continua apenas a transportar vários recursos naturais. Os recursos naturais no campo tornam-se cada vez mais escassos, degradando também o ambiente. Este intercâmbio ecologicamente desigual é claramente discernível ao nível global, pois que esta fratura espacial permite que o Norte Global externalize os custos económicos e ambientais para o Sul Global. Esta é, em última análise, a causa da "falácia da Holanda”, daqueles que pretendem que o desenvolvimento tecnológico resolva sozinho o problema da poluição ambiental (31). A falácia é um produto da ignorância da constante externalização espacial da fratura metabólica.

A terceira dimensão da fratura é a dimensão temporal. Como é óbvio se considerarmos a formação lenta dos nutrientes do solo e dos combustíveis fósseis, existe um fosso entre os tempos da natureza e os tempos do capital. Enquanto o capital tenta constantemente encurtar no tempo o seu ciclo de negócios e maximizar a valorização, este processo é inevitavelmente acompanhado pelo aumento do capital flutuante, sob a forma de matérias-primas e materiais auxiliares. Além disso, o capital revoluciona constantemente o processo de produção, aumentando as forças produtivas com uma velocidade sem precedentes. As forças produtivas podem duplicar ou triplicar com a introdução de novas tecnologias, mas a natureza não pode alterar os seus processos de formação de fósforo ou combustível fóssil. Em última análise, a natureza não consegue alcançar a velocidade do capital, e surge uma grave discrepância entre dois tipos de tempo, próprios da natureza e do capital. O exemplo avançado por Marx é a desflorestação excessiva sob o capitalismo, que ele comenta assim:

"O longo tempo de produção (que inclui uma quantidade relativamente pequena de tempo de trabalho), e a consequente grande extensão do seu ciclo faz da cultura florestal uma linha de negócio não adequada à produção privada e, portanto, capitalista, sendo esta última fundamentalmente uma operação privada, mesmo quando o capitalista associado toma o lugar do individual. O desenvolvimento da civilização e da indústria em geral sempre se mostraram tão ativos na destruição das florestas que tudo o que tem sido feito para a sua conservação e expansão é completamente insignificante em comparação" (32).

Há três dimensões de fratura metabólica. A teoria do metabolismo de Marx preocupa-se com a forma como o processo ecológico natural do metabolismo universal da natureza, como condição material fundamental para a reprodução, é reorganizado sob a mediação da segunda ordem do metabolismo social. Existe uma grave tensão entre o metabolismo social e o metabolismo natural, e ele advertiu contra as consequências negativas da sua perturbação. Marx, no entanto, não se satisfez com o reconhecimento da existência da fratura, mostrando-se muito mais interessado em saber como a fratura emerge na natureza e como é distribuída de forma desproporcionada, tanto espacial como temporalmente. Esta é a razão pela qual Marx, nos seus últimos anos, estudou intensivamente as ciências naturais enquanto tentava completar o seu grandioso projeto de economia política.

4. Três dimensões da mutação metabólica

A fenda metabólica aprofunda-se com o desenvolvimento do capitalismo. Em muitos casos, manifesta-se como o esgotamento dos recursos naturais, o seu aumento de preço e a correspondente queda da taxa de lucro. Assim, é bastante essencial para o capital assegurar o acesso a recursos baratos, energia e alimentos. Isto é o que leva o capital a construir "um sistema de exploração geral das qualidades naturais e humanas” e "um sistema de utilidade geral", como Marx argumentou em Grundrisse:

"Daí a exploração de toda a natureza a fim de descobrir novas qualidades úteis nas coisas; troca universal dos produtos de todas as terras e climas estranhos; nova preparação (artificial) de objetos naturais, pela qual são oferecidos novos valores de utilização. A exploração da Terra em todas as direções, para descobrir coisas novas utilizáveis, bem como novas qualidades úteis do antigo; por exemplo, novas qualidades dessas coisas como matérias-primas, etc." (33).

Esta exploração da Terra e a invenção de novas tecnologias pelo capital, no entanto, não reparam a fratura. Esta continua a ser "irreparável" no capitalismo. Em última análise, existe a necessidade de "deslocar" a fratura metabólica para outro lugar, não apenas por uma questão de ganhar tempo, mas também para minimizar a manifestação de contradições no centro (34). Aqui, correspondendo às três dimensões da fratura metabólica, há também três maneiras de a deslocar.

Em primeiro lugar, a fenda metabólica manifesta-se como o esgotamento dos recursos naturais, como a exaustão do solo. Embora Liebig tenha advertido contra o colapso da civilização europeia devido à agricultura de roubo, a sua previsão não chegou a concretizar-se. Isso deveu-se a que, em 1906, Fritz Haber e Carl Bosch inventaram o chamado processo Haber-Bosch, que permitiu a produção industrial de amoníaco e, portanto, de fertilizante químico.

No entanto, o processo Haber-Bosch não cicatrizou a fratura. A produção de amoníaco (NH3) utiliza uma quantidade maciça de gás natural como fonte de hidrogénio (H). Utiliza simplesmente outro recurso limitado para produzir amoníaco, mas é bastante intensiva em energia (utiliza 2% do consumo total de energia) e produz muito CO2 (1% do total das emissões de carbono). Além disso, a utilização excessiva de fertilizante químico causa eutrofização, como azoto e fósforo, bem como poluição da água, como resultado do seu vazamento para o ambiente. A ecologia do solo é perturbada pelo fertilizante químico, a capacidade de retenção de água do solo desce, e as plantas tornam-se mais suscetíveis a doenças. Consequentemente, torna-se necessário cada vez mais fertilizante, bem como agroquímicos e pesticida. Estes produtos químicos poluem também o ambiente e perturbam o funcionamento normal do ecossistema, aprofundando a crise ecológica.

Em suma, a mudança metabólica cria externalidade com a ajuda de novas tecnologias: A fertilidade do solo é mantida artificialmente e mesmo reforçada, enquanto que o capital não paga nada pela perturbação, poluição e destruição nos ecossistemas mais vastos. Ao mesmo tempo, o capital encontra novas oportunidades de negócio nestas perturbações, aproveitando a oportunidade para vender mais fertilizantes químicos, agroquímicos e pesticidas. É desta forma que a subsunção formal e real da natureza sob o capital prossegue através da mudança metabólica (35).

Em segundo lugar, há uma deslocação espacial da fratura metabólica. Mais uma vez, Marx discutiu esta questão em relação à exaustão do solo. Na costa do Peru, existiam pequenas ilhas constituídas pelos excrementos de aves marinhas que se tinham acumulado ao longo de muitos anos. Estas ilhas foram chamadas ilhas de guano. O guano é bastante rico em minerais que são úteis para induzir o crescimento das plantas. “Guano" originalmente significa fertilizante agrícola na língua indígena andina quechua. Os povos indígenas usavam-no tradicionalmente como esterco. Foi Alexander von Humboldt quem se deparou com o uso indígena do guano durante a sua viagem de investigação ao Peru, em 1802. Ele investigou a eficácia do guano e testou-a em solos europeus. O resultado foi positivo, pelo que a sua utilização se tornou depois bastante popular nas áreas da Europa onde a exaustão do solo era uma questão social importante.

A exaustão do solo era uma manifestação da fratura metabólica, mas a "solução” do guano não reparou a fratura, pois simplesmente deslocou o problema para o Sul Global. Como resultado, o guano era continuamente transportado da periferia para o centro do capitalismo, sustentando a fertilidade do solo na Europa e nos E.U.A., fornecendo assim alimentos aos trabalhadores urbanos. Por outro lado, a sua externalidade surgiu sob a forma de opressão brutal dos povos indígenas, severa exploração de milhares de coolies chineses, o rápido esgotamento dos stocks de guano e uma degradação ambiental mais geral. Em última análise, o esgotamento das reservas de guano levou à Guerra do Guano (1865-6) e à Guerra do Salitre (1879-84). Em suma, o antagonismo entre cidade e campo dentro de uma nação foi deslocado espacialmente e expandido para a fratura global através do guano. Como argumentam John Bellamy Foster e Brett Clark, uma tal solução a favor do Norte Global levou ao “imperialismo ecológico”. O roubo continuou. Embora o imperialismo ecológico desloque a fratura para as periferias, tornando-a invisível no centro, a fratura metabólica aprofunda-se (36).

Uma semelhante troca ecologicamente desigual persiste no capitalismo globalizado de hoje. Como solução para a crise climática, a energia solar é essencial, mas a tecnologia das baterias utiliza vários tipos de metais raros. Por exemplo, a maioria do lítio do mundo está localizada no planalto andino, pelo que o Chile se tornou o maior exportador de lítio. Salar de Atacama é o local onde todo o lítio do Chile é extraído. O lítio só existe em locais secos, tais como as grandes salinas, uma vez que só gradualmente é condensado em salmoura durante um longo período. A mineração do lítio é assim conduzida através da extração desta salmoura sob as salinas de Salar de Atacama e deixando a água evaporar, de modo a permitir a concentração de lítio.

Nesta situação, é bastante óbvio que a extração excessiva da salmoura torna a área ainda mais seca e também degrada o ecossistema. Põe em perigo o flamingo andino, que come camarão com salmoura. Além disso, provoca uma diminuição do lençol freático, reduzindo o acesso à água doce para as comunidades indígenas antacamenhas (37). A situação é exacerbada pela mineração de cobre que também extrai quantidades maciças de água doce no Salar. Por outras palavras, o esverdeamento do Norte Global não está a transformar o planeta de uma forma sustentável, mas sim a reforçar os processos de extração de lítio e cobre pela mineração de roubo. A fratura metabólica não pode ser reparada simplesmente por novas tecnologias. As soluções tecnológicas soam atraentes porque não nos obrigam a mudar o nosso corrente estilo de vida. No entanto, enquanto o modo de vida atual continuar, ele simplesmente desloca a fratura para outro lugar, aprofundando-a à escala global. Mészáros advertiu corretamente contra o otimismo tecnocrático, "E, finalmente, dizer que ‘a ciência e a tecnologia podem resolver todos os nossos problemas a longo prazo’ é muito pior do que acreditar em bruxaria” (38).

O terceiro tipo de desvio metabólico é o temporal. A discrepância entre o tempo da natureza e o tempo do capital não conduz imediatamente a uma situação ecológica de catástrofe. A natureza possui “elasticidade” (39). A crise climática é um caso representativo. As emissões maciças de CO2 devido à utilização excessiva de combustíveis fósseis são uma causa evidente das alterações climáticas. Mas os seus efeitos não se cristalizam imediatamente, pelo que o capital usa a oportunidade aberta pelo desfasamento temporal para obter lucros de investimentos anteriores em perfurações e oleodutos. O capital reflete a voz dos acionistas atuais, mas não a das gerações futuras. Os custos do roubo são transferidos para elas. Como resultado, as gerações futuras sofrerão por aquilo de que não são responsáveis. Marx caracterizava uma tal atitude do desenvolvimento capitalista com o slogan, 'Apès moi, le déluge!'

Há uma enorme expetativa pública investida na inovação tecnológica futura contra a crise climática. É verdade que a deslocação da fratura dá tempo para o desenvolvimento de novas tecnologias. No entanto, as novas tecnologias não se disseminam rapidamente, demorando anos até substituírem as antigas. Mutações temporais contínuas, contando com tecnologias futuras, irão inevitavelmente enfrentar um inesperado agravamento da crise, devido a mecanismos de "retorno positivo". O desfasamento temporal da introdução de novas tecnologias torna ainda mais difícil controlar a situação, anulando os resultados esperados dessas tecnologias.

5. A crise ecológica como a contradição do capitalismo

O poder do capital para deslocar a fratura metabólica é espantoso. Assim, é muito questionável que o aumento de preços devido ao "fim da Natureza Barata” conduza inevitavelmente à "crise epocal" do capitalismo, como argumenta Jason W. Moore (40). Bill McKibben descreve melhor a dinâmica histórica do capitalismo: “A diminuição da disponibilidade de combustível fóssil não é o único limite que enfrentamos. Na realidade, não é sequer o mais importante. Mesmo antes de ficarmos sem petróleo, estamos a ficar sem planeta” (41). Isto não se deve apenas ao facto de o capital poder encontrar novas oportunidades para uma “doutrina do choque das alterações climáticas" no meio da crise ecológica (42), mas também porque externaliza sempre as suas consequências negativas para o Sul Global.

Desta forma, o Sul Global sofre de consequências duplamente negativas. Depois de sofrer o roubo da natureza e dos seres humanos sob o imperialismo ecológico, enfrenta também o impacto real da crise ecológica, uma vez que já não seja possível mais adiá-lo. Como argumenta Stephan Lessenich, a palavra cde ordem do capital "Depois de nós, o dilúvio!" torna-se "Ao nosso lado, o dilúvio" (Neben uns, die Sintflut), na época de crise ecológica global, quando já não é mais possível ganhar tempo. Esta é a essência da "sociedade de externalização" (Externalisierungsgesellschaft) que é dominante no Norte Global (43).

A vida próspera no Norte Global está obviamente dependente de roubos de outras áreas, mas esta desigualdade estrutural e esta injustiça foram mantidas invisíveis durante muito tempo, através da mudança temporal, espacial e social e da externalização da fratura metabólica. Isto é aquilo que Ulrich Brand e Markus Wissen chamam de "modo imperial de viver" (imperiale Lebensweise). O seu argumento é que uma vida melhor para um certo grupo de pessoas de uma determinada região pressupõe a degradação das condições de vida para outro grupo de pessoas noutra região (44). O modo imperial de viver significa essencialmente uma relação de dominação e subordinação. A ordem atual da sociedade parece atraente e confortável para um certo grupo social no Norte Global, mas os seus custos reais são impostos a outros grupos sociais noutras áreas.

Evidentemente, o problema fundamental não é um "modo de vida", mas um "modo de produção", porque a tendência para o roubo do homem e da natureza e a mudança metabólica é inerente à lógica do capital. O modo imperial de produção é constantemente reproduzido e a sua violência torna-se invisível devido à mudança metabólica. Consequentemente, as pessoas que desfrutam da vida próspera no Norte Global são primeiro forçadas a ser “ignorantes” (Nicht-Wissen) sobre a desigualdade estrutural do modo de produção imperial, mas mais tarde, desde que este prometa uma vida próspera, começam a aceitá-lo como algo desejável e a internalizá-lo, desviando o olhar das consequências negativas. Eles não querem saber (Nicht-Wissen-Wollen). Consequentemente, o modo de produção imperial transforma-se num “modo de vida imperial”.

No entanto, é impossível deslocar infinitamente a fratura metabólica. É cada vez mais difícil ignorar as consequências negativas da fratura metabólica, uma vez que a competição pelo roubo se torna mais brutal com o rápido desenvolvimento da China, Brasil e Índia. À medida que o espaço para a externalização diminui, a fratura metabólica, outrora obscurecida, torna-se cada vez mais visível, à medida que a crise climática provoca ondas de calor e super-tufões, mesmo no Norte Global. Desde que o comunismo é "em última análise uma questão de justiça" (45), a justiça climática é uma componente essencial para o comunismo. É por isso que a ideia do comunismo de Marx deve ser radicalmente atualizada na era da crise ecológica global.

Notas:

(1) Deutscher 1967, p. 110.

(2) Mészáros 2014, pp. 49-50.

(3) Benton 1989.

(4) Honneth 2017, p. 45.

(5) Liedman 2018, p. 480. Parece-nos que esta crítica é bastante peculiar, uma vez que tornaria grande parte dos movimentos ambientais atuais não ecológicos, no sentido moderno. Não é claro que tipo de movimento ambiental pode ser considerado como "ecologicamente consciente" na definição de Liedman.

(6) O'Connor 1998; Burkett 1999; Foster 2000; Kovel 2007; Löwy 2015; Saito 2017. Existem disputas teóricas entre a Monthly Review e Capitalism Nature Socialism, e a minha própria abordagem está definitivamente mais próxima da primeira. No entanto, também me inspiro numa série de marxistas japoneses, tais como Shigeto Tsuru, Tomonaga Tairako e Ryuji Sasaki.

(7) Saito 2017.

(8) Citado em Anderson 2016, p. 249.

(9) Engel-Di Mauro 2014, p. 137.

(10) Heinrich 2012, pp. 24-5.

(11) Por exemplo, a publicação dos chamados Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844, em 1932, como parte do MEGA1, levou à crítica "humanista" do marxismo soviético. Mas é também digno de nota que os russos queriam tratar este pacote de texto como “manuscritos” e conferir um carácter sistemático à estrutura geral do texto, ainda que Marx não tenha tido qualquer plano real para o publicar. Como mostra Jürgen Rojahn, o texto era antes um resultado espontâneo no processo de estudo da Economia Política. Ver Rojahn 2002.

(12) Carver 1983.

(13) Para uma discussão mais detalhada sobre a diferença entre Marx e Engels em termos de ciências naturais, ver Saito 2019.

(14) Merleau-Ponty 1973, p. 59. Como Merleau-Ponty assinala, a expressão em si, no entanto, vem originalmente de Marxismus und Philosophie de Karl Korsch. Ver Korsch 1966, p. 63. O parágrafo relevante em Korsch não foi traduzido para inglês, sendo por isso, provavelmente, que Merleau-Ponty se tornou o ponto de referência.

(15) Lukács 1971, p. 24.

(16) Badiou 2008, p. 139.

(17) Mészáros 2000. Esta contribuição não foi tão bem apreciada no Japão, onde Mészáros continua a ser largamente desconhecido; outros estudiosos japoneses, tais como Shigeaki Shiina e Fumikazu Yoshida já tinham atendido a este conceito, aplicando-o à análise da poluição ambiental nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, em minha opinião, Mészáros captou mais adequadamente o núcleo teórico do argumento de Marx.

(18) Marx 1976, p. 283.

(19) Mészáros 2000, pp. 139-40.

(20) Mészáros 2000, p. 140.

(21) Mészáros 2000, p. 599.

(22) Mészáros 2012, p. 316.

(23) Ver Foster e Burkett 2016.

(24) Tanuro 2003.

(25) Marx 1976, p. 637.

(26) Marx 1991, p. 949; tradução modificada, seguindo Marx 1993, pp. 752-3.

(27) Loftus 2012, p. 31.

(28) Liebig 2018.

(29) Marx e Engels 1970, p. 69.

(30) Malm 2016.

(31) Ehrlich e Ehrlich 1990, p. 39.

(32) Marx 1992, pp. 321-2.

(33) Marx 1973, p. 409.

(34) Foster, Clark e York 2011, p. 74.

(35) Boyd, Prudham e Schurman 2001.

(36) Clark e Foster 2009.

(37) Aronoff, Battistoni, Cohen e Riofrancos 2019, pp. 148-9.

(38) Mészáros 2014, p. 29.

(39) Akashi 2016.

(40) Moore 2015, p. 27.

(41) McKibben 2007, p. 18.

(42) Klein 2019, p. 36.

(43) Lessenich 2018, p. 166.

(44) Brand e Wissen 2017, p. 61.

(45) Žižek 2017, p. 29.

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Sobre o autor

Kohei Saito formou-se em Filosofia na Universidade Humboldt, em Berlim, sendo atualmente professor associado de Economia Política na Escola Superior de Economia da Universidade de Osaka, no Japão. Tem participado nos trabalhos de edição das Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA). É autor de Karl Marx's Ecosocialism: Capital, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy (Monthly Review Press, 2017). Esta obra foi distinguida com o prestigioso Prémio Memorial Isaac e Tamara Deutscher de 2018. O presente ensaio constitui a comunicação do autor por ocasião da aceitação dessa distinção. Foi publicado originalmente na revista Historical Materialism N.º 28.2 (2020), pp. 3-24. A tradução aqui publicada é de Ângelo Novo. Este jovem autor não saiu do nada, sendo continuador de uma riquíssima tradição de pensamento marxista japonês, infelizmente quase totalmente desconhecida no ocidente. Leia-se, por exemplo, Gavin Walker, “Marxist Theory in Japan: A Critical Overview”, Historical Materialism.

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