Ricardo Antunes
Folha de S.Paulo
Há um ano desempregado, Fábio Chrysostomo, 41, financiou um carro para ganhar dinheiro como motorista de aplicativo. Ronny Santos/Folhapress |
O desenvolvimento tecno-informacional-digital, acelerado espetacularmente nas últimas décadas, parecia endereçar definitivamente o trabalho ao paraíso. Menos labor, mais “criatividade”, o milagre se converteria em realidade. Poderíamos, finalmente, vivenciar o gozo pleno e a fruição catártica.
A liberdade seria finalmente conquistada pelas benesses do admirável mundo do mercado. A “nova” sociedade do trabalho digital, on line, com seus smartphones, iPads e iPhones, comandada pelos algoritmos, pela internet das coisas, pela inteligência artificial, pelo big data, na antessala da Indústria 4.0, selaria o último caixão da sociedade do automóvel, que moldou o século 20. O fardo do labor, típico da fase taylorista-fordista, em sua rudeza quase animal (tão magistralmente criticado na obra-prima de Chaplin), parecia definitivamente sepultado.
Sob a batuta do capital financeiro e o embalo das corporações globais, estaríamos adentrando na era da “liberdade sem patrão”, onde desempregados e precarizados, num passe de mágica, livravam-se de vez das mazelas e dissabores do labor. Florescia, então, uma pletora de prestadores de “serviços”, tornados “autônomos”, “empreendedores”, convertidos em novos “proprietários dos meios de produção”, resultado de uma maravilhosa simbiose entre mundo digital e liberdade do capital.
Mas havia algo de estranho no mundo real. Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), Google, Cabify, 99, Lyft, IFood, Glovo, Deliveroo e seus símiles, sem esquecer do alegre Rappi —enfim, a totalidade das grandes plataformas digitais chegaram à idade da (des)razão instrumental: agora não haveria mais trabalho assalariado, mas “prestadores de serviços” e, como tal, excluídos da legislação protetora do trabalho.
A liberdade seria finalmente conquistada pelas benesses do admirável mundo do mercado. A “nova” sociedade do trabalho digital, on line, com seus smartphones, iPads e iPhones, comandada pelos algoritmos, pela internet das coisas, pela inteligência artificial, pelo big data, na antessala da Indústria 4.0, selaria o último caixão da sociedade do automóvel, que moldou o século 20. O fardo do labor, típico da fase taylorista-fordista, em sua rudeza quase animal (tão magistralmente criticado na obra-prima de Chaplin), parecia definitivamente sepultado.
Sob a batuta do capital financeiro e o embalo das corporações globais, estaríamos adentrando na era da “liberdade sem patrão”, onde desempregados e precarizados, num passe de mágica, livravam-se de vez das mazelas e dissabores do labor. Florescia, então, uma pletora de prestadores de “serviços”, tornados “autônomos”, “empreendedores”, convertidos em novos “proprietários dos meios de produção”, resultado de uma maravilhosa simbiose entre mundo digital e liberdade do capital.
Mas havia algo de estranho no mundo real. Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), Google, Cabify, 99, Lyft, IFood, Glovo, Deliveroo e seus símiles, sem esquecer do alegre Rappi —enfim, a totalidade das grandes plataformas digitais chegaram à idade da (des)razão instrumental: agora não haveria mais trabalho assalariado, mas “prestadores de serviços” e, como tal, excluídos da legislação protetora do trabalho.
Os léxicos, entretanto, começaram a se estranhar e antagonizar: "platform economy", "gig-economy", "crowdwork", "collaborative economy", de um lado. Uberização, intermitência, pejotização, precarização, de outro. Um esdrúxulo paralelo, então, parece aflorar, pois há algo em comum entre o capitalismo de plataforma e a protoforma do capitalismo: o novo, ao ressuscitar o velho, gerou a escravidão digital.
Neste contexto, em que o coronavírus virou pandemia, em meio a uma crise mundial de consequências imprevisíveis, algumas interrogações afloram: como irão sobreviver os mais de 5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras “uberizados” no Brasil, que têm jornadas diárias intermináveis, que se exaurem, se acidentam e morrem nas ruas (para não falar do flagelo dos quase 40 milhões que estão na informalidade)?
Como poderão cumprir a quarentena e o isolamento e, ao mesmo tempo, perceber o necessário para sua sobrevivência? Quantos terão convênios para se cuidar do flagelo da Covid-19? Como utilizarão o sistema de previdência pública que o imprevidente desgoverno Bolsonaro-Guedes fez virar pó? E, por fim, como será possível garantir os direitos do trabalho, se o modus operandi dessas corporações é calibrado pela burla e pelo vilipêndio?
Neste contexto, em que o coronavírus virou pandemia, em meio a uma crise mundial de consequências imprevisíveis, algumas interrogações afloram: como irão sobreviver os mais de 5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras “uberizados” no Brasil, que têm jornadas diárias intermináveis, que se exaurem, se acidentam e morrem nas ruas (para não falar do flagelo dos quase 40 milhões que estão na informalidade)?
Como poderão cumprir a quarentena e o isolamento e, ao mesmo tempo, perceber o necessário para sua sobrevivência? Quantos terão convênios para se cuidar do flagelo da Covid-19? Como utilizarão o sistema de previdência pública que o imprevidente desgoverno Bolsonaro-Guedes fez virar pó? E, por fim, como será possível garantir os direitos do trabalho, se o modus operandi dessas corporações é calibrado pela burla e pelo vilipêndio?
A festa acabou, a luz apagou. O desafio não pode ser outro: o imperativo crucial de nosso tempo é reinventar um modo de vida.
Sobre o autor
Professor titular de sociologia na Unicamp, é autor de "Coronavirus: O trabalho sob fogo cruzado" e "O Privilégio da Servidão" (Boitempo).
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