Vira Ameli
New Left Review
Tradução / Na pandemia global hoje em curso, o Irã tem posição muito especial. Um dos primeiros países a conhecer o surto de COVID-19, o Irã também é alvo de bloqueio econômico que já dura não anos, mas décadas. O modo como o Irã conseguiu enfrentar esse duplo massacre é determinado pela interação entre o lugar singular que o país tem na ordem geopolítica e o caráter distintivo de suas próprias instituições. A potência dominante na política internacional e seus aliados puseram a sociedade iraniana sob pressão terrível; mesmo assim, entre países com PIB semelhante ao seu, poucos – parece mesmo que nenhum – alcançou resultados positivos mais impressionantes na construção de sistema de saúde pública realmente efetivo. O curso da pandemia no Irá é o resultado de um encontro desses dois fatores. Para compreender isso, é preciso exame cuidadoso. Mas, antes, um rápido histórico do surgimento e da disseminação da pandemia.
Há rumores de que o vírus teria começado a circular no Irã em janeiro, mas só dia 19 de fevereiro foram confirmados os dois primeiros casos de infecção, em Qom. Destino chave de peregrinação e de estudos religiosos, a cidade atrai anualmente 20 milhões de visitantes, inclusive professores, acadêmicos e turistas de cerca de 80 países – incluindo a China, que é atualmente o mais próximo parceiro comercial do Irã, com relações comerciais e projetos comuns de construção em Qom e em outras cidades. Por que a demora para anunciar a chegada do COVID-19? Embora a mídia ocidental tenha atribuído a demora a um esforço do governo para tentar encobrir as notícias, o fato é que os kits de testagem só chegaram da China dia 17 de fevereiro. Outro impedimento aconteceu quando os kits de testagem que a Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou ao Irã não foram entregues, detidos pelos impedimentos de embarque impostos pelo regime de sanções dos EUA. – Adiante os kits chegaram, em voo comercial a partir de Bagdá, mas o atraso impediu a detecção precoce de casos da doença, crucial para controlar a pandemia. Rapidamente se tornou claro que o vírus estava muito mais disseminado do que já se sabia, tendo já chegado a Teerã, Arak e Gilan, e que as autoridades de saúde estavam atrasados na corrida para detecção de casos. Essa defasagem não aconteceu só no Irã, é claro, mas em todos os países que não conseguiram enfrentar o contágio com a necessária prontidão.
Dia 21 de fevereiro havia 17 casos confirmados, com quatro óbitos ocorridos logo depois do diagnóstico. No mesmo dia, o país realizou eleições legislativas, apesar do pânico crescente que cercava a pandemia. As eleições estavam marcadas há muito tempo, mas a ocasião levantou questões posteriores, sobre se as eleições deveriam ter sido canceladas e sobre por que Qom não foi imediatamente posta sob quarentena. A realidade é que, no dia das eleições, o vírus já se disseminara por todo o país. Pôr Qom sob quarentena pouco ajudaria a impedir que chegasse Teerã. Seja como for, de um ponto de vista de saúde pública, o Irã sem dúvida deveria ter adiado as eleições e intensificado o trabalho de identificação de novos infectados, com rastreamento dos contatos. Fato é, contudo, que se a resposta do país à pandemia parece ter sido desqualificada por incompetência e inação política, não se pode dizer que se trate de negligência mal-intencionada. Foi, isso sim, o mesmo tipo de mistura de perplexidade e complacência frente a uma colossal ameaça de saúde pública, que adiante também paralisaria outras nações. A França e os EUA também realizaram eleições e não impuseram o isolamento social senão várias semanas depois de os primeiros casos terem sido detectados. Naquele momento, o Irã não estava desobedecendo quaisquer orientações da OMS sobre conter a disseminação da pandemia. Dia 26 de fevereiro já havia fechado todas as escolas e universidade em todo o país, embora atividades não essenciais só tenham sido fechadas pouco antes do Nowruz, o feriado do Ano Novo Iraniano.
Agora, a linha de frente da defesa contra a pandemia é o sistema público nacional de saúde. Depois da Revolução de 1979, reformas muito amplas estenderam o acesso a tratamento médico a todo o Irã, criando uma vasta rede de trabalhadores da comunidade de saúde e Centros de Atendimento Primário à Saúde. Instituído durante a guerra 1980-88 com o Iraque, o sistema foi depois descrito pela OMS como “inacreditável obra-prima”.1 Orquestrado numa estrutura piramidal com eficiente sistema de referência, suas realizações foram notáveis: imunização universal; redução dramática nas taxas de mortalidade materna e infantil; e planejamento familiar e controle populacional efetivos. Avanços estratégicos em capacidade de resposta, igualdade e universalidade focados em monitoramento continuado das necessidades da população e sistemas de entrega de serviços adequado às necessidades da população. Entre os ganhos na saúde pública iraniana está “o mais rápido declínio na taxa de nascimentos de toda a história”, de uma média de sete para duas crianças por mãe, ao final do século – transição demográfica de proporções imensas”.2
Atualmente, o sistema de saúde do Irã conta com 150 mil médicos, 1.500 hospitais e 140 mil leitos hospitalares, para uma população de 82 milhões – uma média de 1,7 leitos por mil pessoas. Ocupa o 16º lugar no mundo em termos de resultados de pesquisas em Medicina. Na luta contra o HIV e uso de drogas, duas epidemias interconectadas dentro do país, o Irã alcançou sucesso notável, por padrões regionais e globais, assegurando acesso livre e universal à terapia com antirretrovirais e programas para redução de danos, e na oferta de atenção modelada para as necessidades culturais locais e comunitárias. Além disso, uma política pós-revolucionária de autossuficiência avançou muito na oferta de medicamentos e equipamentos a preços acessíveis, só importando matérias primas. Antes da Revolução, 80% dos medicamentos em uso eram importados. Hoje, 97% deles são produzidos internamente, manufaturados por cerca de cem empresas farmacêuticas locais, a maior parte das quais do setor privado. Mas, embora apenas 3% da demanda corresponda a importações, esses produtos incluem medicação vital para crianças e pacientes vulneráveis com doenças raras ou em estágio avançado, e o acesso a esses 3% foi interrompido por efeito das sanções norte-americanas.
Todos esses ganhos foram alcançados contra as garras e os dentes dos mais viciosos e longos regimes de sanções de toda a história. Vale a pena recordar que as primeiras sanções contra o Irã foram impostas por Carter, continuadas por Reagan, Bush Pai, Clinton e Bush Kid, muito intensificadas na sequência por Obama e aprofundadas ainda mais por Trump. Diferente do que crê a opinião pública no ocidente, o chamado ‘Acordo Nuclear para o Irã’ [em inglês no original JCPOA] que Obama extorquiu de Rouhani e Zarif não levantou sanções que havia contra o Irã; simplesmente suspendeu as sanções que a Casa Branca impusera ao Irã mediante a ONU (com uma cláusula que tornava automática a rápida reimposição dessas sanções), deixando inalteradas as sanções impostas exclusivamente pelos EUA, que continuaram vigentes – e desde então têm sido ampliadas por efeito da campanha de “Máxima Pressão” de Trump, imposta em maior de 2019. As sanções do governo Trump são claramente concebidas para derrubar o governo do Irã por estrangulamento econômico. As potências europeias que são também signatárias do “Acordo Nuclear para o Irã” – França, Grã-Bretanha e Alemanha – apesar de terem arrochado os parafusos aplicados contra o Irã para assegurar seus objetivos ocidentais comuns no Oriente Médio, não apoiaram a decisão de Washington de rasgar o Acordo Nuclear, e em 2019 construíram um veículo específico, INSTEX, para contornar as sanções dos EUA contra o Irã. Contudo, quando se tornou bem claro que a operação levaria a ‘castigos’ a serem aplicados pelos EUA, o projeto foi silenciosamente abandonado: o INSTEX só completou uma transação desde que foi estabelecido.
O atual impacto desse bloqueio sobre o sistema de saúde iraniano atinge sobretudo três principais áreas. Em primeiro lugar, as sanções bloqueiam quase todas as transações financeiras necessárias para a atividade comercial do Irã, incluindo compras no campo médico; as exceções de itens ditos ‘humanitários’ não cobre materiais de proteção dos profissionais médicos. Em segundo lugar, as sanções interrompem as cadeias de suprimento da produção doméstica, dado que mesmo os medicamentos e equipamentos médicos localmente produzidos dependem de itens de vários fabricantes em vários países do mundo. A falta de um único ingrediente, como embalagens a vácuo para pílulas, pode paralisar toda a produção. Em terceiro lugar, ao reduzir o poder de compra em todo o campo econômico, as sanções ferem tanto provedores como consumidores. Ao tempo em que o governo Trump festeja a contração de 14% na economia do Irã e o rápido crescimento da inflação causada pela “Pressão Máxima”, essa queda reduziu os fundos com que o governo conta, o que por sua fez pressionou o programa iraniano de seguro-saúde universal, e aumentou o custo dos atendimentos em cerca de 20%, por efeito da inflação crescente. Para proteger os doentes contra a instabilidade do mercado, o Ministério da Saúde regula os preços de todos os medicamentos. Efeito disso, as empresas farmacêuticas também são pressionadas, tendo de viver com margem mínima, ou sem margem alguma, para superar a pressão da inflação e das flutuações de preços. O controle burocrático de preços em condições de escassez leva, tipicamente, ao surgimento de mercado negro, e o Irã não é exceção. O resultado é escassez ainda maior para todos os iranianos, especialmente para os trabalhadores, dado que a OMS não pode fazer frente aos preços exorbitantes do mercado negro.
Além das sanções, o Irã foi acossado por crises ao longo do ano passado, algumas naturais, outras políticas, que puseram à prova a confiança do povo nos governantes. Em março de 2019 foram grandes inundações que começaram em cidades do norte e rapidamente avançaram para regiões sul e oeste do país, causando centenas de mortes e de famílias sem-teto. Em maio, a campanha “Pressão Máxima” de Trump foi intensificada, apertando as sanções sobre as vendas de petróleo. O governo Rouhani foi forçado a cortar subsídios à gasolina, o que resultou em o preço triplicar em novembro, gerando protestos em todo o país. No início de janeiro de 2020, os EUA assassinaram o general Qasem Soleimani, comandante da Brigada Quds do Corpo de Guardas da Revolução Iraniana. O Irã retaliou com ataque de mísseis contra uma base aérea dos EUA no Iraque. Adiante, suas forças armadas derrubaram, erradamente, um avião de passageiros ucraniano, matando 176 passageiros e provocando luto e ira dentro do Irã – um erro que, num ano caótico, só fez reforçar a desconfiança da sociedade, no próprio estado.
Contra esse pano de fundo, a tarefa de equilibrar uma ameaça de saúde pública contra uma crise econômica às vésperas do Nowruz é muito complexa e desafiadora. Os iranianos vivem vidas altamente independentes, e seria preciso mobilizar força militar para manter a população confinada durante as festividades anuais, o que gerava o risco de confrontações hostis como aconteceu noutros lugares. O governo Rouhani também enfrentou preocupações legítimas quanto ao risco de fome entre os mais pobres, se a economia, já ferida pela “Pressão Máxima” fosse paralisada pelo confinamento. Em vez disso, dia 22 de março foi ordenado o fechamento de todas as atividades comerciais não essenciais que deveriam ser retomadas dia 4 de abril, depois dos feriados de Nowruz, e alocados 18% do orçamento nacional, mais de $6 bilhões, para cobrir pagamentos a desempregados e do seguro social, com apoio estendido a pequenos negócios que não demitissem. Mais $1 bilhão do fundo soberano do país está sendo agora alocado para a batalha contra o coronavírus. Foi constituído um novo centro de operações, para centralizar uma resposta coordenada à pandemia, sob os auspícios do ministro da Saúde.
Além do mais, apesar da confiança no governo, que está em queda, a sociedade civil iraniana conseguiu mobilizar-se e cooperar com eficiência. Grupos surgem mobilizando diferentes classes sociais e posições ideológicas em torno de uma campanha para reunir massas e recursos de capital na luta contra o vírus. Enquanto o governo está comprometido com cobrir 90% das despesas médicas de cada paciente de COVID-19, essas campanhas levantaram dinheiro, mobilizaram ventiladores de clínicas privadas e aumentaram a produção de kits de testagem, máscaras, vestimentas e ventiladores para apoiar hospitais estatais dedicados a pacientes de COVID-19. Recentemente foi construído um hospital completamente equipado, com 300 leitos, mediante uma campanha “do setor privado para o bem público”. Veio dinheiro também da diáspora iraniana, apesar das sanções financeiras que travam todos os negócios. Além desses esforços da sociedade civil, os militares liberaram um total de 4.000 leitos de clínicas, com leitos especiais para atenção de emergência; e o Corpo de Guardas Revolucionários construiu pequenos hospitais em partes remotas do país.
Atendentes de saúde dos Centros para Atenção Primária à Saúde organizaram-se numa campanha para localização de infectados e rastreamento de contatos, mediante telefonemas, mensagens por e-mail e aplicativos para telefones celulares. Com a ajuda da Cruz Vermelha e da Sociedade Crescente Vermelho do Irã, o Exército também mobilizou-se para medir a temperatura corporal de viajantes e isolar casos sintomáticos e respectivos contatos. Por fim, rápidos investimentos na produção doméstica de ventiladores destinados a garantir que nenhum paciente seja deixado sem o necessário apoio ou equipamento. No momento em que escrevo, os hospitais e UTIs do país não estão todos ocupados, demonstrando que, até aqui, o Irã tem conseguido manter a pandemia dentro dos limites da capacidade de atendimento nas unidades de saúde pública – principal razão que justificava o esforço para “derrubar a curva”. Assim, apesar do choque inicial da crise, que pegou o Irã com a guarda baixa, a força do sistema de saúde pública, aliada à mobilização institucional, combinaram-se para reduzir o número de mortes pelo coronavírus.3
Depois de a pandemia ter explodido, países europeus piedosos pediram aos EUA que reduzissem as sanções, pelo menos no que tivesse a ver com alívio médico para os doentes. Só conseguiram ouvir, de Mike Pompeo, que “suprimentos humanitários e medicamentos não estão sancionados”. E, isso, apesar da obstrução feita por Washington, de canais financeiros e de transporte – com empresas internacionais de navegação e serviços de correio ou já impedidas de negociar com o Irã, ou cobrando preços inacessíveis para o mercado iraniano – a qual, como vimos, impediu que o Irã recebesse em tempo os kits de testagem e equipamento médico. Uma das consequências foi manter o Irã dependente, de modo não usual, de centros regionais, para transporte aéreo e expedição de mercadorias –, situação que agravou as dificuldades quando países vizinhos impuseram restrições impostas para combater a epidemia. Mas fato é que os EUA redobraram as medidas punitivas, movendo-se para bloquear o pedido do Irã, ao FMI, de um empréstimo emergencial de $5 bilhões –, primeira vez que o país apresenta tal pedido, desde a fundação da República Islâmica –, para enfrentar o coronavírus.
Nesse contexto, a ‘notícia’ do New York Times, de que “as sanções dos EUA não seriam responsáveis pela disseminação do corona vírus no Irã” é caso exemplar de ‘desnotícia’. Os EUA – cuja estratégia é chamada de “terrorismo econômico” pelos funcionários iranianos – são responsáveis primários por minar a capacidade do Irã para enfrentar uma crise que já incapacitou e paralisou alguns dos sistemas de saúde mais prestigiados do mundo.4 Mas os iranianos comuns não deixarão de ver com clareza a culpa do governo Trump, e a cumplicidade, nos mesmos atos, de potências europeias que discordam nos discursos, mas são cúmplices nas ações. Numa pandemia global, é essencial questionar as ações de governos nacionais – mas o objetivo de qualquer discurso crítico tem de ser benefícios para a saúde pública, não ‘lucros’ políticos. A cobertura depreciativa que o ocidente dá à resposta do Irã à crise acabou por ter efeito ainda mais deletério: a campanha da mídia-empresa hegemônica para deslegitimar a República Islâmica acabou por minar os esforços de autoridades globais da saúde pública, bloqueando o fluxo de informação correta. A extensão do muito que a análise epidemiológica da experiência iraniana foi enviesada e distorcida por essas denúncias descabidas pode ser vista claramente pelo fato de que EUA, Reino Unido e França também fracassaram na tentativa para evitar os mesmos erros no modo de abordar questões de saúde pública. Em vez de quebrar a cadeia da transmissão viral, governos do ocidente e respectiva mídia-empresa comercial quebraram, isso sim, a cadeia da transmissão de conhecimento prestável.
O padrão assimétrico de condenação acrescenta mais uma dimensão de caos, à crise humanitária já muito complexa e desafiadora. Exemplos não faltam. Quando o Irã impôs proibição de viagens para suas cidades do norte, a mídia ocidental condenou a medida. A manchete do Guardian dizia que “Irã ameaça usar a força para restringir viagens”.5 Mas a proibição foi medida policial, não algum tipo de lockdown militar, e foi depois criticada por não ter sido aplicada antes! Restringir viagens seria medida apresentada como abuso de poder; não restringir viagens seria atitude denunciada por criar risco de vida para os cidadãos. Fazer eleições mostraria descuido com a saúde pública. Cancelá-las seria declarado pretexto para ocultar o baixo comparecimento de eleitores às urnas.6 Virtualmente qualquer decisão tomada pela República Islâmica – independentemente de qualquer mérito ou demérito – é alvo do mais incansável ataque pela mídia-empresa, de todos os lados do espectro político ocidental. Quando o vice-ministro da Saúde do Irã testou positivo para COVID-19, seria ‘prova’ da resposta disfuncional que os iranianos teriam dado ao vírus. Quando políticos nos EUA, Reino Unido e Canadá adoeceram, não se viu sensacionalismo semelhante.
Notas:
1. Seyyed Meysam Mousavi, Jamil Sadeghifar, "Universal health coverage in Iran", The Lancet Global Health, vol. 4, no. 5, May 2016, pp. 305–6.
2. Kevan Harris, A Social Revolution: Politics and the Welfare State in Iran, Oakland 2017, pp. 18–19, 119 FF.
3. "Coronavirus Deaths by US State and Country Over Time", New York Times, 1 April 2020.
4. "This Coronavirus Crisis Is the Time to Ease Sanctions on Iran", New York Times editorial, 25 March 2020.
5. "Coronavirus cases pass 100,000 globally as Iran threatens force to restrict travel", The Guardian, 6 March 2020
6. As eleições legislativas de 21 de fevereiro foram apresentadas como teste final da unidade entre estado e sociedade, aferida pelo comparecimento às urnas. Com apenas 40% de eleitores votantes, o baixo comparecimento foi atribuído à pandemia, por apoiadores do estado e pela baixa qualifidação de muitos candidatos reformistas e centristas, alguns dos quais, como Ali Motahari, mesmo assim compareceu para votar em Teerã.
7. Maysam Behravesh, "The Untold Story of How Iran Botched the Coronavirus Pandemic", Foreign Policy, 24 March 2020.
8 "Valas para sepultar vítimas de Coronavirus são tão vastas que podem ser vistas do espaço", Washington Post, 12 March 2020; "Imagens de satélite mostram que o Irã cavou valas para sepultamentos em massa, em pleno surto de coronavírus", The Guardian, 12 March 2020.
NLR 122, MAR/APR 2020 |
Tradução / Na pandemia global hoje em curso, o Irã tem posição muito especial. Um dos primeiros países a conhecer o surto de COVID-19, o Irã também é alvo de bloqueio econômico que já dura não anos, mas décadas. O modo como o Irã conseguiu enfrentar esse duplo massacre é determinado pela interação entre o lugar singular que o país tem na ordem geopolítica e o caráter distintivo de suas próprias instituições. A potência dominante na política internacional e seus aliados puseram a sociedade iraniana sob pressão terrível; mesmo assim, entre países com PIB semelhante ao seu, poucos – parece mesmo que nenhum – alcançou resultados positivos mais impressionantes na construção de sistema de saúde pública realmente efetivo. O curso da pandemia no Irá é o resultado de um encontro desses dois fatores. Para compreender isso, é preciso exame cuidadoso. Mas, antes, um rápido histórico do surgimento e da disseminação da pandemia.
Há rumores de que o vírus teria começado a circular no Irã em janeiro, mas só dia 19 de fevereiro foram confirmados os dois primeiros casos de infecção, em Qom. Destino chave de peregrinação e de estudos religiosos, a cidade atrai anualmente 20 milhões de visitantes, inclusive professores, acadêmicos e turistas de cerca de 80 países – incluindo a China, que é atualmente o mais próximo parceiro comercial do Irã, com relações comerciais e projetos comuns de construção em Qom e em outras cidades. Por que a demora para anunciar a chegada do COVID-19? Embora a mídia ocidental tenha atribuído a demora a um esforço do governo para tentar encobrir as notícias, o fato é que os kits de testagem só chegaram da China dia 17 de fevereiro. Outro impedimento aconteceu quando os kits de testagem que a Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou ao Irã não foram entregues, detidos pelos impedimentos de embarque impostos pelo regime de sanções dos EUA. – Adiante os kits chegaram, em voo comercial a partir de Bagdá, mas o atraso impediu a detecção precoce de casos da doença, crucial para controlar a pandemia. Rapidamente se tornou claro que o vírus estava muito mais disseminado do que já se sabia, tendo já chegado a Teerã, Arak e Gilan, e que as autoridades de saúde estavam atrasados na corrida para detecção de casos. Essa defasagem não aconteceu só no Irã, é claro, mas em todos os países que não conseguiram enfrentar o contágio com a necessária prontidão.
Dia 21 de fevereiro havia 17 casos confirmados, com quatro óbitos ocorridos logo depois do diagnóstico. No mesmo dia, o país realizou eleições legislativas, apesar do pânico crescente que cercava a pandemia. As eleições estavam marcadas há muito tempo, mas a ocasião levantou questões posteriores, sobre se as eleições deveriam ter sido canceladas e sobre por que Qom não foi imediatamente posta sob quarentena. A realidade é que, no dia das eleições, o vírus já se disseminara por todo o país. Pôr Qom sob quarentena pouco ajudaria a impedir que chegasse Teerã. Seja como for, de um ponto de vista de saúde pública, o Irã sem dúvida deveria ter adiado as eleições e intensificado o trabalho de identificação de novos infectados, com rastreamento dos contatos. Fato é, contudo, que se a resposta do país à pandemia parece ter sido desqualificada por incompetência e inação política, não se pode dizer que se trate de negligência mal-intencionada. Foi, isso sim, o mesmo tipo de mistura de perplexidade e complacência frente a uma colossal ameaça de saúde pública, que adiante também paralisaria outras nações. A França e os EUA também realizaram eleições e não impuseram o isolamento social senão várias semanas depois de os primeiros casos terem sido detectados. Naquele momento, o Irã não estava desobedecendo quaisquer orientações da OMS sobre conter a disseminação da pandemia. Dia 26 de fevereiro já havia fechado todas as escolas e universidade em todo o país, embora atividades não essenciais só tenham sido fechadas pouco antes do Nowruz, o feriado do Ano Novo Iraniano.
Agora, a linha de frente da defesa contra a pandemia é o sistema público nacional de saúde. Depois da Revolução de 1979, reformas muito amplas estenderam o acesso a tratamento médico a todo o Irã, criando uma vasta rede de trabalhadores da comunidade de saúde e Centros de Atendimento Primário à Saúde. Instituído durante a guerra 1980-88 com o Iraque, o sistema foi depois descrito pela OMS como “inacreditável obra-prima”.1 Orquestrado numa estrutura piramidal com eficiente sistema de referência, suas realizações foram notáveis: imunização universal; redução dramática nas taxas de mortalidade materna e infantil; e planejamento familiar e controle populacional efetivos. Avanços estratégicos em capacidade de resposta, igualdade e universalidade focados em monitoramento continuado das necessidades da população e sistemas de entrega de serviços adequado às necessidades da população. Entre os ganhos na saúde pública iraniana está “o mais rápido declínio na taxa de nascimentos de toda a história”, de uma média de sete para duas crianças por mãe, ao final do século – transição demográfica de proporções imensas”.2
Atualmente, o sistema de saúde do Irã conta com 150 mil médicos, 1.500 hospitais e 140 mil leitos hospitalares, para uma população de 82 milhões – uma média de 1,7 leitos por mil pessoas. Ocupa o 16º lugar no mundo em termos de resultados de pesquisas em Medicina. Na luta contra o HIV e uso de drogas, duas epidemias interconectadas dentro do país, o Irã alcançou sucesso notável, por padrões regionais e globais, assegurando acesso livre e universal à terapia com antirretrovirais e programas para redução de danos, e na oferta de atenção modelada para as necessidades culturais locais e comunitárias. Além disso, uma política pós-revolucionária de autossuficiência avançou muito na oferta de medicamentos e equipamentos a preços acessíveis, só importando matérias primas. Antes da Revolução, 80% dos medicamentos em uso eram importados. Hoje, 97% deles são produzidos internamente, manufaturados por cerca de cem empresas farmacêuticas locais, a maior parte das quais do setor privado. Mas, embora apenas 3% da demanda corresponda a importações, esses produtos incluem medicação vital para crianças e pacientes vulneráveis com doenças raras ou em estágio avançado, e o acesso a esses 3% foi interrompido por efeito das sanções norte-americanas.
Todos esses ganhos foram alcançados contra as garras e os dentes dos mais viciosos e longos regimes de sanções de toda a história. Vale a pena recordar que as primeiras sanções contra o Irã foram impostas por Carter, continuadas por Reagan, Bush Pai, Clinton e Bush Kid, muito intensificadas na sequência por Obama e aprofundadas ainda mais por Trump. Diferente do que crê a opinião pública no ocidente, o chamado ‘Acordo Nuclear para o Irã’ [em inglês no original JCPOA] que Obama extorquiu de Rouhani e Zarif não levantou sanções que havia contra o Irã; simplesmente suspendeu as sanções que a Casa Branca impusera ao Irã mediante a ONU (com uma cláusula que tornava automática a rápida reimposição dessas sanções), deixando inalteradas as sanções impostas exclusivamente pelos EUA, que continuaram vigentes – e desde então têm sido ampliadas por efeito da campanha de “Máxima Pressão” de Trump, imposta em maior de 2019. As sanções do governo Trump são claramente concebidas para derrubar o governo do Irã por estrangulamento econômico. As potências europeias que são também signatárias do “Acordo Nuclear para o Irã” – França, Grã-Bretanha e Alemanha – apesar de terem arrochado os parafusos aplicados contra o Irã para assegurar seus objetivos ocidentais comuns no Oriente Médio, não apoiaram a decisão de Washington de rasgar o Acordo Nuclear, e em 2019 construíram um veículo específico, INSTEX, para contornar as sanções dos EUA contra o Irã. Contudo, quando se tornou bem claro que a operação levaria a ‘castigos’ a serem aplicados pelos EUA, o projeto foi silenciosamente abandonado: o INSTEX só completou uma transação desde que foi estabelecido.
O atual impacto desse bloqueio sobre o sistema de saúde iraniano atinge sobretudo três principais áreas. Em primeiro lugar, as sanções bloqueiam quase todas as transações financeiras necessárias para a atividade comercial do Irã, incluindo compras no campo médico; as exceções de itens ditos ‘humanitários’ não cobre materiais de proteção dos profissionais médicos. Em segundo lugar, as sanções interrompem as cadeias de suprimento da produção doméstica, dado que mesmo os medicamentos e equipamentos médicos localmente produzidos dependem de itens de vários fabricantes em vários países do mundo. A falta de um único ingrediente, como embalagens a vácuo para pílulas, pode paralisar toda a produção. Em terceiro lugar, ao reduzir o poder de compra em todo o campo econômico, as sanções ferem tanto provedores como consumidores. Ao tempo em que o governo Trump festeja a contração de 14% na economia do Irã e o rápido crescimento da inflação causada pela “Pressão Máxima”, essa queda reduziu os fundos com que o governo conta, o que por sua fez pressionou o programa iraniano de seguro-saúde universal, e aumentou o custo dos atendimentos em cerca de 20%, por efeito da inflação crescente. Para proteger os doentes contra a instabilidade do mercado, o Ministério da Saúde regula os preços de todos os medicamentos. Efeito disso, as empresas farmacêuticas também são pressionadas, tendo de viver com margem mínima, ou sem margem alguma, para superar a pressão da inflação e das flutuações de preços. O controle burocrático de preços em condições de escassez leva, tipicamente, ao surgimento de mercado negro, e o Irã não é exceção. O resultado é escassez ainda maior para todos os iranianos, especialmente para os trabalhadores, dado que a OMS não pode fazer frente aos preços exorbitantes do mercado negro.
Além das sanções, o Irã foi acossado por crises ao longo do ano passado, algumas naturais, outras políticas, que puseram à prova a confiança do povo nos governantes. Em março de 2019 foram grandes inundações que começaram em cidades do norte e rapidamente avançaram para regiões sul e oeste do país, causando centenas de mortes e de famílias sem-teto. Em maio, a campanha “Pressão Máxima” de Trump foi intensificada, apertando as sanções sobre as vendas de petróleo. O governo Rouhani foi forçado a cortar subsídios à gasolina, o que resultou em o preço triplicar em novembro, gerando protestos em todo o país. No início de janeiro de 2020, os EUA assassinaram o general Qasem Soleimani, comandante da Brigada Quds do Corpo de Guardas da Revolução Iraniana. O Irã retaliou com ataque de mísseis contra uma base aérea dos EUA no Iraque. Adiante, suas forças armadas derrubaram, erradamente, um avião de passageiros ucraniano, matando 176 passageiros e provocando luto e ira dentro do Irã – um erro que, num ano caótico, só fez reforçar a desconfiança da sociedade, no próprio estado.
Contra esse pano de fundo, a tarefa de equilibrar uma ameaça de saúde pública contra uma crise econômica às vésperas do Nowruz é muito complexa e desafiadora. Os iranianos vivem vidas altamente independentes, e seria preciso mobilizar força militar para manter a população confinada durante as festividades anuais, o que gerava o risco de confrontações hostis como aconteceu noutros lugares. O governo Rouhani também enfrentou preocupações legítimas quanto ao risco de fome entre os mais pobres, se a economia, já ferida pela “Pressão Máxima” fosse paralisada pelo confinamento. Em vez disso, dia 22 de março foi ordenado o fechamento de todas as atividades comerciais não essenciais que deveriam ser retomadas dia 4 de abril, depois dos feriados de Nowruz, e alocados 18% do orçamento nacional, mais de $6 bilhões, para cobrir pagamentos a desempregados e do seguro social, com apoio estendido a pequenos negócios que não demitissem. Mais $1 bilhão do fundo soberano do país está sendo agora alocado para a batalha contra o coronavírus. Foi constituído um novo centro de operações, para centralizar uma resposta coordenada à pandemia, sob os auspícios do ministro da Saúde.
Além do mais, apesar da confiança no governo, que está em queda, a sociedade civil iraniana conseguiu mobilizar-se e cooperar com eficiência. Grupos surgem mobilizando diferentes classes sociais e posições ideológicas em torno de uma campanha para reunir massas e recursos de capital na luta contra o vírus. Enquanto o governo está comprometido com cobrir 90% das despesas médicas de cada paciente de COVID-19, essas campanhas levantaram dinheiro, mobilizaram ventiladores de clínicas privadas e aumentaram a produção de kits de testagem, máscaras, vestimentas e ventiladores para apoiar hospitais estatais dedicados a pacientes de COVID-19. Recentemente foi construído um hospital completamente equipado, com 300 leitos, mediante uma campanha “do setor privado para o bem público”. Veio dinheiro também da diáspora iraniana, apesar das sanções financeiras que travam todos os negócios. Além desses esforços da sociedade civil, os militares liberaram um total de 4.000 leitos de clínicas, com leitos especiais para atenção de emergência; e o Corpo de Guardas Revolucionários construiu pequenos hospitais em partes remotas do país.
Atendentes de saúde dos Centros para Atenção Primária à Saúde organizaram-se numa campanha para localização de infectados e rastreamento de contatos, mediante telefonemas, mensagens por e-mail e aplicativos para telefones celulares. Com a ajuda da Cruz Vermelha e da Sociedade Crescente Vermelho do Irã, o Exército também mobilizou-se para medir a temperatura corporal de viajantes e isolar casos sintomáticos e respectivos contatos. Por fim, rápidos investimentos na produção doméstica de ventiladores destinados a garantir que nenhum paciente seja deixado sem o necessário apoio ou equipamento. No momento em que escrevo, os hospitais e UTIs do país não estão todos ocupados, demonstrando que, até aqui, o Irã tem conseguido manter a pandemia dentro dos limites da capacidade de atendimento nas unidades de saúde pública – principal razão que justificava o esforço para “derrubar a curva”. Assim, apesar do choque inicial da crise, que pegou o Irã com a guarda baixa, a força do sistema de saúde pública, aliada à mobilização institucional, combinaram-se para reduzir o número de mortes pelo coronavírus.3
Depois de a pandemia ter explodido, países europeus piedosos pediram aos EUA que reduzissem as sanções, pelo menos no que tivesse a ver com alívio médico para os doentes. Só conseguiram ouvir, de Mike Pompeo, que “suprimentos humanitários e medicamentos não estão sancionados”. E, isso, apesar da obstrução feita por Washington, de canais financeiros e de transporte – com empresas internacionais de navegação e serviços de correio ou já impedidas de negociar com o Irã, ou cobrando preços inacessíveis para o mercado iraniano – a qual, como vimos, impediu que o Irã recebesse em tempo os kits de testagem e equipamento médico. Uma das consequências foi manter o Irã dependente, de modo não usual, de centros regionais, para transporte aéreo e expedição de mercadorias –, situação que agravou as dificuldades quando países vizinhos impuseram restrições impostas para combater a epidemia. Mas fato é que os EUA redobraram as medidas punitivas, movendo-se para bloquear o pedido do Irã, ao FMI, de um empréstimo emergencial de $5 bilhões –, primeira vez que o país apresenta tal pedido, desde a fundação da República Islâmica –, para enfrentar o coronavírus.
Nesse contexto, a ‘notícia’ do New York Times, de que “as sanções dos EUA não seriam responsáveis pela disseminação do corona vírus no Irã” é caso exemplar de ‘desnotícia’. Os EUA – cuja estratégia é chamada de “terrorismo econômico” pelos funcionários iranianos – são responsáveis primários por minar a capacidade do Irã para enfrentar uma crise que já incapacitou e paralisou alguns dos sistemas de saúde mais prestigiados do mundo.4 Mas os iranianos comuns não deixarão de ver com clareza a culpa do governo Trump, e a cumplicidade, nos mesmos atos, de potências europeias que discordam nos discursos, mas são cúmplices nas ações. Numa pandemia global, é essencial questionar as ações de governos nacionais – mas o objetivo de qualquer discurso crítico tem de ser benefícios para a saúde pública, não ‘lucros’ políticos. A cobertura depreciativa que o ocidente dá à resposta do Irã à crise acabou por ter efeito ainda mais deletério: a campanha da mídia-empresa hegemônica para deslegitimar a República Islâmica acabou por minar os esforços de autoridades globais da saúde pública, bloqueando o fluxo de informação correta. A extensão do muito que a análise epidemiológica da experiência iraniana foi enviesada e distorcida por essas denúncias descabidas pode ser vista claramente pelo fato de que EUA, Reino Unido e França também fracassaram na tentativa para evitar os mesmos erros no modo de abordar questões de saúde pública. Em vez de quebrar a cadeia da transmissão viral, governos do ocidente e respectiva mídia-empresa comercial quebraram, isso sim, a cadeia da transmissão de conhecimento prestável.
O padrão assimétrico de condenação acrescenta mais uma dimensão de caos, à crise humanitária já muito complexa e desafiadora. Exemplos não faltam. Quando o Irã impôs proibição de viagens para suas cidades do norte, a mídia ocidental condenou a medida. A manchete do Guardian dizia que “Irã ameaça usar a força para restringir viagens”.5 Mas a proibição foi medida policial, não algum tipo de lockdown militar, e foi depois criticada por não ter sido aplicada antes! Restringir viagens seria medida apresentada como abuso de poder; não restringir viagens seria atitude denunciada por criar risco de vida para os cidadãos. Fazer eleições mostraria descuido com a saúde pública. Cancelá-las seria declarado pretexto para ocultar o baixo comparecimento de eleitores às urnas.6 Virtualmente qualquer decisão tomada pela República Islâmica – independentemente de qualquer mérito ou demérito – é alvo do mais incansável ataque pela mídia-empresa, de todos os lados do espectro político ocidental. Quando o vice-ministro da Saúde do Irã testou positivo para COVID-19, seria ‘prova’ da resposta disfuncional que os iranianos teriam dado ao vírus. Quando políticos nos EUA, Reino Unido e Canadá adoeceram, não se viu sensacionalismo semelhante.
Campanhas de desinformação também são disseminadas pelas redes em idioma persa, financiadas por opositores geopolíticos do Irã – Arábia Saudita, EUA e Reino Unido – e acessadas dentro do país por canais de satélite, Rádio Farda, um dos braços da Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade, anunciou recentemente que “o número de mortos por coronavírus no Irã é cinco vezes mais alto do que noticiado”. O periódico norte-americano Foreign Policy ‘repercutiu’ a notícia, citando como fonte a Rádio Farda.7 Contudo, não passa de observação feita por um representante da OMS, e distorcida, de que o número de infectados – não de mortos – talvez fosse até cinco vezes maior que o já sabido. Dada a proporção de doentes assintomáticos e a falta de kits de testagem que se observam em praticamente todos os países afetados, é óbvio que o número dos detectados sempre será inferior ao dos infectados. Mas este tipo de truísmo raramente tem eco entre os meios de comunicação social liberais no Ocidente. Outro exemplo das mentiras e distorções de que o jornalismo ocidental é capaz aparece no Washington Post, que comentou sobre “covas para enterrar vítimas do coronavírus no Irã” – “tão vastas que podem ser vistas do espaço”. Dessa vez, quem ‘repercutiu’ sem criticar foi o Guardian.8 De fato, eram covas normais, num cemitério normal, ampliadas por recursos de imagem de satélite para parecer “valas comuns” nas quais, ficava implícito, as autoridades estariam jogando secretamente centenas de corpos – isso, num momento em que a OMS não discordara das estatísticas de mortos no Irã. Parece, assim, que fatores ideológicos, não científicos, modelaram em grande parte a cobertura da pandemia no país, com especialistas de saúde alinhados contra os fatos e a favor de cientistas políticos e jornalistas.
A politização da pandemia de coronavírus – e de outras crises – na República Islâmica é, claro, entretecida com campanhas para mudança de regime. Lobbies como “United Against Nuclear Iran” que há muito tempo pressiona a favor de sanções ainda mais violentas, têm feito campanha contra venda de medicamentos ao país, atacando empresas ocidentais que ainda negociam com o Irã. Houve um coro de indignação quando o Irã rejeitou a oferta de Médicos sem Fronteiras, de um hospital de campanha com 50 leitos, ignorando o fato de que o cofundador dessa ONG e ex-ministro de Relações Exteriores da França Bernard Kouchner, ao longo dos últimos três anos tem apoiado e participado das reuniões conhecidas como “Pró Irã Livre”, do MEK (Mujahedin do Povo do Irã), – um culto dedicado a promover a mudança violenta de regime, e que, desde a queda de seu antigo patrocinador, Saddam Hussein, mudou-se para a Albânia. Ao ver a pandemia COVID-19 pelo prisma da política do poder internacional, governos, observadores políticos e especialistas midiáticos ocidentais erram não só ao não conhecer os fatos em campo; também perdem várias oportunidades para aprender com a experiência do Irã – no que o país acertou na resposta que deu à pandemia e também nos pontos em que errou –, o que poderia ter beneficiado também outros países e respectivas populações, num mundo que hoje é interdependente, não só economicamente e culturalmente, mas talvez acima de tudo, em questões de saúde pública.
Oxford, 1º de abril de 2020
1. Seyyed Meysam Mousavi, Jamil Sadeghifar, "Universal health coverage in Iran", The Lancet Global Health, vol. 4, no. 5, May 2016, pp. 305–6.
2. Kevan Harris, A Social Revolution: Politics and the Welfare State in Iran, Oakland 2017, pp. 18–19, 119 FF.
3. "Coronavirus Deaths by US State and Country Over Time", New York Times, 1 April 2020.
4. "This Coronavirus Crisis Is the Time to Ease Sanctions on Iran", New York Times editorial, 25 March 2020.
5. "Coronavirus cases pass 100,000 globally as Iran threatens force to restrict travel", The Guardian, 6 March 2020
6. As eleições legislativas de 21 de fevereiro foram apresentadas como teste final da unidade entre estado e sociedade, aferida pelo comparecimento às urnas. Com apenas 40% de eleitores votantes, o baixo comparecimento foi atribuído à pandemia, por apoiadores do estado e pela baixa qualifidação de muitos candidatos reformistas e centristas, alguns dos quais, como Ali Motahari, mesmo assim compareceu para votar em Teerã.
7. Maysam Behravesh, "The Untold Story of How Iran Botched the Coronavirus Pandemic", Foreign Policy, 24 March 2020.
8 "Valas para sepultar vítimas de Coronavirus são tão vastas que podem ser vistas do espaço", Washington Post, 12 March 2020; "Imagens de satélite mostram que o Irã cavou valas para sepultamentos em massa, em pleno surto de coronavírus", The Guardian, 12 March 2020.
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