4 de maio de 2020

Planeta dos anti-humanistas

Michael Moore defendeu os direitos e interesses dos trabalhadores por décadas. Mas seu novo filme, Planeta dos Humanos, abraça a má ciência sobre energia renovável e narrativas anti-humanistas e anti-classe trabalhadora de superpopulação e consumo excessivo.

Leigh Phillips

Jacobin

Michael Moore comparece à exibição de "The Specials" durante a cerimônia de encerramento do 72º Festival Anual de Cinema de Cannes, em 25 de maio de 2019, em Cannes, França. Foto: Vittorio Zunino Celotto/Getty

Tradução / Não há provavelmente cineasta contemporâneo mais associado com a defesa dos sindicatos e trabalhadores do que o documentarista Michael Moore.

Seu documentário de estreia de 1989, “Roger e Eu”, nos leva da greve de 1936 em Flint, Michigan, que levou à formação do sindicato dos Trabalhadores de Automóveis Unidos, até a desindustrialização dos anos 1980, que devastou sua terra natal e tantas outras comunidades. Sua ousada e inovadora série documental de 1990, “TV Nation”, que episódio após episódio expunha malfeitos corporativos de cair o queixo, desenvolveu o conceito de Roger mais longe e estabeleceu um formato que foi emulado desde então. Todos os filmes que ele fez estão – de maneira furiosa, bem humorada, e humanista – ao lado dos muitos e não dos poucos.

O mesmo não pode ser dito de seu mais recente trabalho. “Planeta dos humanos” – dessa vez produzido por Moore e dirigido por Jeff Gibbs (invertendo seus papéis de “Fahrenheit 11 de Setembro” e “Tiros em Columbine”) – conclui que soluções para as mudanças climáticas como a energia eólica e solar e os veículos elétricos não fazem jus a sua imagem pública. Eles concluem que entre aquecimento global, perda de biodiversidade, escassez de água doce e esgotamento da fertilidade do solo, não há soluções políticas ou tecnológicas a altura da tarefa, e a única solução para os desafios ambientais seria que não houvessem tantos entre os muitos. Moore e Gibbs podem não ter abraçado os poucos, mas eles certamente querem menos.

Em uma guinada para a política malthusiana de decrescimento e, notavelmente, até abraçando a ideologia marginal de “anti-civilização”, “Planet of the Humans” declara que os problemas causados pela civilização industrial não podem ser resolvidos pela civilização industrial.

O progresso é um mito perigoso, argumenta o filme; há seres humanos demais, consumindo coisas demais, então todos nos países desenvolvidos – incluindo a classe trabalhadora – precisam consumir menos, enquanto o planeta como um todo deve passar por uma redução populacional para um número mais sustentável.

Mesmo com todas as muitas e generosas contribuições de Michael Moore para a política progressista e humanista através das décadas, tais argumentos são literalmente anti-progressistas e anti-humanos.

E não precisamos deles, de qualquer maneira. Nossa série de problemas ambientais muito reais e desafiadores são causados principalmente não pelo crescimento – tanto das pessoas como da economia – mas pela estrutura de incentivos inerente a qualquer sistema de mercado.

Em um mundo atualmente arruinado por uma pandemia global que já está cortando o crescimento econômico ao mesmo tempo em que mata milhões de pessoas, ao invés de dizer que isso é basicamente o que queremos, mas feito de uma maneira mais agradável, nós deveríamos estar abraçando a regulação e o planejamento econômico de que precisamos para salvar o planeta e todas as pessoas nele.

Diário de bordo do apocalipse

“Planet of the Humans” oferece um diário de bordo sombrio, às vezes apocalíptico, listando os múltiplos desafios ecológicos, frequentemente sobrepostos, indo muito além das mudanças climáticas – incluindo pesca excessiva, perda de biodiversidade, consumo de água e esgotamento da fertilidade do solo.

Seu foco principal, no entanto, é o fracasso das fontes de energia renováveis, em particular a solar e a eólica. O diretor Jeff Gibbs percorre uma jornada a partir de um festival de música alimentado por energia solar que, quando começa a chover, consome sua eletricidade a partir de geradores à biodiesel e da rede de energia dominante na região, baseada em carvão, até matrizes solares abandonadas na Califórnia, que ele alega terem destruído antigos ecossistemas do deserto, e conservacionistas em Vermont em campanha contra a derrubada das florestas que cobrem a Montanha Lowell para abrir caminho para um parque de energia eólica. Ele também destaca como, ao lado da eólica e solar, a biomassa predomina na produção de energia renovável e, para isso, coloca abaixo porções de floresta.

Gibbs certamente apresenta sacadas inteligentes sobre a ironia disso tudo, chamando as dunas de Daggett, Califórnia, de uma “zona morta solar”, e a destruição causada pelas turbinas em Vermont de “remoção do topo da montanha em nome do vento ao invés do carvão”.

Mas no geral, a sua análise da produção de energia limpa não tem nada de inteligente. Seus números sobre a eficiência energética dos painéis solares são incrivelmente datados. Continua a haver matrizes solares fornecendo eletricidade limpa para a rede virando uma esquina de onde Gibbs pensou ter visto sua zona morta.

Os documentaristas estão corretos quando nos lembram que a energia eólica e solar não podem por conta própria manter uma rede elétrica confiável. O vento não sopra sempre, e o sol não brilha sempre, e, como o diretor do serviço público de água e luz de Lansing, Michigan nos diz no filme, às vezes não há sol nem vento. Isso as torna intermitentes, então elas precisam do apoio de alguma uma fonte do tipo que os especialistas em sistemas de energia chamam de “firme”, disponível 24 horas, sete dias por semana.

Não queremos que nossos hospitais tenham de esperar que esteja ensolarado para que nós possamos operar as máquinas de diálise.

Gibbs e Moore também não estão errados quando destacam como a energia solar e eólica tendem a ser apoiados por usinas de gás natural. Alberta, que optou por aumentar sua capacidade eólica à medida que se desgasta a baseada em carvão, sem poder utilizar hidroeletricidade ou energia nuclear ao lado dessa fonte de energia variável, está na verdade usando créditos de energia renovável para construir novas usinas de gás natural.

O gás natural produz cerca de metade das emissões do carvão em seu ciclo de vida completo de extração, distribuição e combustão, então é melhor que nada. De fato, a transição do carvão para o gás natural é responsável pela maior parte da redução nas emissões nos EUA. Além disso, a atual transição nos cargueiros do uso de óleo combustível pesado (um dos combustíveis mais sujos que existem, o que sobra depois que todos os outros combustíveis são refinados) para o gás natural liquefeito é um passo essencial no caminho para hidrocarbonetos sintéticos neutros em carbono (já que a maioria dos envios logísticos não podem ser eletrificados devido ao peso e volume das baterias que seriam necessárias para travessias transoceânicas). Mas um dia, provavelmente em algum momento nos próximos dez ou quinze anos, teremos também de colocar um fim na combustão convencional de gás natural para zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa até meados do século.

Os limites reais das energias renováveis variáveis

Alguns defensores das energias renováveis variáveis responderam ao filme dizendo que nós podemos resolver esses problemas com uma combinação de baterias, outras formas de armazenamento em rede, e redes inteligentes abrangendo continentes inteiros, que seriam capazes de deslocar energia daqueles lugares onde o sol estiver brilhando ou o vento estiver soprando para aqueles lugares onde não estejam.

São todas boas ideias, mas elas podem apenas melhorar o problema da intermitência do sol e do vento – elas não podem resolvê-lo.

Ignorando por um momento os horrendos impactos climáticos dos combustíveis fósseis, podemos agora ver o quanto eles são importantes para uma rede, ou para qualquer outra atividade para a qual precisamos de energia, como transporte e produção industrial: nós podemos usá-las sempre que quisermos, onde quisermos.

Há uma razão porque Lênin definiu o comunismo como “poder dos trabalhadores mais a eletrificação de todo o país”. Os estratigráficos, geólogos, paleontologistas e ecologistas que estão trabalhando para definir a época do Antropoceno concluíram que o que eles chamaram de “Grande Aceleração”, a explosão do impacto humano no sistema da Terra não começou no século XVIII com a Revolução Industrial, mas nos anos de 1950, com o advento do Estado de Bem-Estar Social, a institucionalização dos sindicatos, e o concomitante crescimento da “classe média” nos países centrais do capitalismo.

É claro, nós agora sabemos que não podemos ignorar os impactos dos combustíveis fósseis sobre a atmosfera. Mas há fontes de energia limpa que são firmes, como a nuclear, hidrelétrica e geotérmica, que o filme não discute, e a biomassa, sobre a qual o filme fala de maneira prolongada.

“Planet of the Humans” está certo em se preocupar com a utilização agressiva de biomassa, incluindo biocombustíveis. A Alemanha ganha muita repercussão na imprensa por seu programa Energiewende de transição para energia limpa e sua vasta construção de parques eólicos e solares, mas a realidade é que para fazer isso ao mesmo tempo ela eliminou de seu mix de eletricidade opções de baixo carbono e a opção de firmeza nuclear – e teve de construir novas usinas a base de carvão e estabelecer novas minas de carvão. Ela também teve que depender de biomassa, principalmente na forma de pastilhas de madeira, em uma proporção de seu mix de eletricidade quase tão grande quanto a da energia solar (respectivamente 8,7% e 9,1%).

O filme apresenta algumas coisas incorretas, entretanto. O uso daquilo que é chamado de “corte”, ou os galhos, ramos e outros resíduos florestais restantes, tem que ser queimado em muitas jurisdições, para que não seja deixado no chão como combustível seco, aumentando o risco de incêndios. Se tem que ser queimado de qualquer modo, nós podemos também usá-lo para gerar eletricidade.

Mas “Planet of the Humans” não está errado sobre como muitas jurisdições deixam muito solta a definição do que conta como resíduo florestal, e sobre como muito do que a Europa usa para suas usinas de biomassa são na verdade árvores que foram transformadas em pastilhas de madeira; árvores que teriam um impacto muito maior na descarbonização se fossem usadas como produtos de madeira de longa duração, como mobília, ou substituindo o uso de aço e cimento em construções. Além disso, também não está errado sobre como na escala necessária para que os combustíveis fósseis sejam inteiramente substituídos, a dependência sobre biomassa (incluindo biocombustíveis) teria uma pegada massiva na terra, competindo com a produção de comida e ração por terra arável.

Uma vez que a mudança no uso da terra é considerada, a maioria dos biocombustíveis de primeira geração como bioetanol na verdade produzem mais poluição de carbono do que seus equivalentes fósseis. É na verdade algo como um escândalo oculto o fato de que grande parte do esforço de redução de emissões na Europa depende de uma fonte de energia renovável que não é realmente limpa.

Mas ao invés de explorar o quanto as fontes de energia renováveis variáveis como solar e eólica poderiam ser emparelhadas com formas de energia limpas, mas firmes, “Planet of the Humans” conclui que todo o esforço para descarbonizar a rede não passa de um sonho impossível.

Superando o medo da energia nuclear

De fato, isso já aconteceu em oito grandes economias, França, Suécia, Noruega, Paraguai e Suíça e os estados canadenses de Quebec, Ontario e Columbia Britânica, já descarbonizaram por completo ou pelo menos grande parte das suas redes elétricas. Nós podemos fazer isso. Contudo, cada um deles depende principalmente de energia hidrelétrica e/ou nuclear, permitindo-os integrar a energia eólica, solar e outras renováveis variáveis, sem que isso represente um desafio para a confiabilidade da rede.

Na verdade, a mais rápida taxa de descarbonização já alcançada foi a da França, nos anos 1970 e 1980, quando ela nuclearizou sua produção de eletricidade. A Finlândia e o Reino Unido também estão indo muito bem e ambas abraçaram a energia nuclear como fundamental para seus esforços de descarbonização. A rede da Islândia também é praticamente completamente limpa, dependente de hidrelétrica e geotérmica – mas a Islândia, temos de manter em mente, é uma pequena economia de apenas 360.000 pessoas.

A razão porque nós não podemos depender de hidroeletricidade e energia geotérmica sozinhas, sem a energia nuclear ao lado delas, é que as duas são geograficamente limitadas. Você pode construir uma usina de combustível fóssil ou uma usina nuclear em qualquer lugar, mas você precisa ter montanhas e vales para hidrelétricas, ou estar situado em uma zona geologicamente ativa (como o “Anel de Fogo” do Pacífico) para a energia geotérmica convencional. (O alcance da energia geotérmica pode ser estendido significativamente via sistemas geotérmicos aprimorados, ou EGS, que dependem de fraturamento hidráulico para bombear água para rachaduras em rochas quentes subterrâneas, mas isso ainda não é uma opção que pode ser usada em todos os lugares).

Embora os cineastas não toquem no tema da energia nuclear no documentário, como parte da promoção, eles deixaram claro que também se opõem a essa opção. Michael Moore disse a uma transmissão ao vivo no YouTube que uma das suas primeiras ações como ativista político foi participar do movimento antinuclear do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 (que, ironicamente, naquela época, argumentava que nós devíamos abraçar mais o carvão ao invés do urânio).

Já está na hora do movimento ambientalista pós-Guerra Fria – e, sim, figuras como Bernie Sanders – repensar a sua postura sobre a energia nuclear. Nós sabemos agora que a energia nuclear tem o menor número de mortes por Quilowatt-hora do que qualquer fonte de energia, que um único voo de volta de Nova York para Londres expõe um passageiro a mais radiação ionizante do que uma vida inteira de exposição de um trabalhador em uma usina nuclear, e que em qualquer caso, os reatores de próxima geração fisicamente não podem derreter.

Há uma razão porque cada uma das quatro vias ilustrativas apresentadas pelo Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês) para zerar as emissões líquidas até 2050, compatíveis com a manutenção do aquecimento dentro de 1,5 graus C de aquecimento acima dos tempos pré-industriais, assume um aumento entre 100% e 500% na geração de energia nuclear em relação à proporção atual. De acordo com a última avaliação das mudanças climáticas pelo IPCC, a energia nuclear tem uma média de intensidade de carbono, por todo o seu ciclo de vida completo, de apenas o equivalente a 12 gramas de CO2 por Quilowatt-hora, a mesma do energia eólica oceânica – mas, ao contrário do vento, está disponível 24 horas, sete dias por semana. A energia solar fotovoltaica em escala de utilidade, que é intermitente, atinge uma média de 48 gramas.

“Planet of the Humans” também entende muito errado a questão do hidrogênio, o que de certo modo explica muitos dos outros problemas que o filme tem com todas as tecnologias de baixo carbono que menciona.

Gibbs em um certo ponto entrevista uma figura de relações públicas para um veículo movido a hidrogênio em uma exposição de tecnologias limpas. Quando perguntado sobre de onde retiram o hidrogênio, o cara das relações públicas responde que vem principalmente da quebra do metano (gás natural) em hidrogênio e moléculas de dióxido de carbono (CO2), via um processo conhecido como reforma de metano a vapor (SMR, na sigla em inglês – steam methane reforming), depois do qual o CO2 é liberado na atmosfera. O diretor com razão pergunta porque você liberaria CO2 para evitar liberar CO2. “Em todos os lugares em que encontrei energia verde, as coisas não eram aquilo que pareciam”, diz.

Ele e os acadêmicos que entrevista continuam enfatizando quão surpresos estão em descobrir que os combustíveis fósseis ainda são usados na produção de energia limpa.

Mas essa não é a história completa. A reforma de metano a vapor é atualmente apenas a maneira mais barata de se fazer hidrogênio (e nós precisamos fazer hidrogênio para todos os tipos de propósitos, não apenas para combustíveis limpos). Podemos aplicar tecnologias de captura e armazenamento de carbono para o hidrogênio de origem SMR, eliminando as liberações de CO2, no que é descrito nos círculos de sistema de energia como “hidrogênio azul”, por causa da chama azul do gás natural, mas isso aumenta significativamente os custos.

Outra opção seria usar parte do excesso de energia solar e eólica para fabricar hidrogênio por divisão de água (eletrólise). É chamado de “hidrogênio verde”, porque não envolve o uso de gás natural, e ainda é muito intensivo em energia, então as melhores estimativas que temos no momento sugerem que ele também não vai ser competitivo com a reforma de metano a vapor. Além disso, é mais eficiente, com menos uso e desgaste de equipamento, se a produção de hidrogênio correr 24 horas por dia, sete dias por semana, ao invés de ajustes constantes na produção para cima e para baixo dependendo do clima.

Podemos, contudo, usar o calor de reatores nucleares ao invés da eletricidade para dividir a água (via um processo termoquímico, ao invés da eletrólise), um processo muito menos caro. Os reatores na verdade primeiro produzem calor, que então utilizam para transformar em eletricidade, então nós poderíamos até ter alguns dedicados somente para a produção de calor para a fabricação de hidrogênio – sem precisar da etapa da eletricidade – para trazer o custo ainda mais para baixo.

Outra alternativa ainda nos estágios iniciais do desenvolvimento em Alberta, no Canadá, seria, com efeito, a mineração de hidrogênio por meio da quebra do metano no subterrâneo e o uso de uma membrana especial para impedir a liberação de CO2. As projeções iniciais de custos tornariam essa forma de produção de hidrogênio competitiva com a convencional reforma de metano a vapor.

E nós vamos quase certamente precisar de hidrogênio como uma entrada ao lado do CO2 diretamente capturado do ar (DAC, na sigla em inglês, às vezes referido como “árvores artificiais) para produzir hidrocarbonetos sintéticos neutros em carbono, para aqueles setores de transporte como caminhões de longo percurso, frotas de navios e aviação, que são difíceis de eletrificar. (Caminhões de médio curso podem ser eletrificados, e grande parte do que é transportado por caminhões pode ser mudado para ferrovias, mas não tudo. Além disso, também há considerações de temperatura; durante invernos frios, os combustíveis não enfrentam os mesmos desafios que as baterias). Não se trata de sonhos e tecnologias não testadas, se encontra atualmente em produção, embora em escala comercial piloto.

Limpar a rede

Ouso do gás natural como suporte para a energia renovável variável é na verdade inevitável se a energia eólica e solar (e outras fontes variáveis como a energia das marés e das ondas) não forem pareadas com fontes de energia firmes como nuclear, hidrelétrica ou geotérmica. No entanto, o uso de combustíveis fósseis em outros lugares na cadeia de suprimentos da produção de energia limpa declina constantemente ao longo do tempo, à medida em que a economia é descarbonizada.

Compreender esse aspecto das opções de energia limpa – sua intensidade de carbono atual e em declínio – é crucial. As energias eólica, solar, geotérmica, nuclear, e assim por diante, não produzem zero emissões: elas apenas produzem muito menos do que carvão, petróleo e gás durante a sua operação, mas os recursos de que elas são feitas ainda têm que ser extraídos e processados, depois eles têm de ser transportados e o produto final ainda tem que ser fabricado.

A extração frequentemente ocorre em um local remoto e desconectado da rede, então a geração à diesel é frequentemente usada para prover energia a esses processos. O transporte na maioria dos lugares ainda precisa ser descarbonizado, então há outra fonte de emissões na cadeia de suprimentos, e se a fabricação ocorrer praticamente em qualquer outro lugar do que aquelas oito principais economias que descarbonizaram suas redes, essa é outra parte da cadeia de suprimentos que adiciona uma pegada de carbono. Todavia, cada uma dessas etapas pode ser descarbonizada também.

Gibbs tem uma certa razão em se horrorizar ao descobrir que carros elétricos captam sua eletricidade de uma rede dominada pelo carvão, mas aí a solução seria limpar a rede. A descarbonização representa um círculo virtuoso: quanto mais limpas as coisas estiverem em parte da economia, mais limpas as coisas estarão em qualquer outro lugar da economia.

Pequenos reatores nucleares modulares são provavelmente nossa melhor aposta para substituição da geração à diesel na extração. A eletrificação de caminhões, navios e aviões de pequeno e médio curso, juntamente de hidrocarbonetos sintéticos para caminhões, navios e aviação de longo curso provavelmente nos levarão a maior parte do caminho para o desafio em torno do transporte.

Ter redes limpas também limpa a maior parte da fabricação. Há dificuldades próprias representadas pela produção de aço e cimento, porque as emissões aqui não vêm apenas da queima de combustíveis fósseis, mas principalmente dos processos químicos usados para fabricar esses materiais. Mas há processos de fabricação experimentais atualmente em vários estágios, desde alguns ainda nas bancadas de laboratório até projetos pilotos que, dado o apropriado apoio do setor público, podem ser capazes de descarbonizar até aqueles processos difíceis de descarbonizar.

Todas essas soluções tecnológicas precisam ser guiadas pelas mãos do setor público para realizar completamente suas capacidades de descarbonização. Há muitas críticas injustas sobre a legislação de estímulo econômico de $800 bilhões da administração Obama, a Lei Americana de Recuperação e Reinvestimento de 2009, mas ela dá uma dica do que é possível. Se você apertar os olhos, pode até pensar nisso como um primeiro Green New Deal.

Apesar de pouco lembrado agora, o estímulo também incluía em torno de $90 bilhões (reconhecidamente abaixo dos $150 bilhões prometidos na plataforma de Obama de 2008) investidos em eletricidade e transporte limpos – incluindo para avançadas tecnologias de veículos, uma rede elétrica mais inteligente e eficiência energética. Esse estímulo lançou as bases para a transição limpa nos Estados Unidos, que não havia realmente decolado antes desse ponto.

O “mini” Green New Deal de Obama gerou um aumento de 20 vezes nos gastos com energia limpa nos Estados Unidos, e permitiu a construção do que foi naquela época a maior fazenda eólica do mundo e algumas das maiores matrizes solares do mundo. Em essência, o estímulo de Obama, junto com a China abraçando a fabricação de tecnologia limpa, guiaram para baixo a curva de custos do que anteriormente haviam sido tecnologias muito caras.

A capacidade eólica dos Estados Unidos é agora três vezes o que era em 2008, e a capacidade solar, seis vezes. Lâmpadas de LED eram apenas 1% do mercado de iluminação americano, naquela época; agora elas possuem mais de metade do setor.

O estímulo também criou a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada – Energia (ARPA – E, na sigla em inglês), um laboratório de pesquisa seguindo o modelo da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa do Pentágono (DARPA, na sigla em inglês), que é célebre por ter sido responsável não só pelo desenvolvimento da internet, mas também pela maioria das dezenas ou mais de tecnologias presentes no smartphone no seu bolso. Independente do que pensamos sobre os ataques aos sindicatos por Elon Musk, provavelmente nunca haveria uma Tesla sem os subsídios e o compartilhamento de riscos do estímulo para a fabricação de baterias elétricas.

O impulso no investimento em energias renováveis especificamente, junto com a mudança de carvão para gás de xisto mais barato, foram aproximadamente igualmente responsáveis por cortar as emissões de CO2 dos EUA no setor energético por 28% desde 2005. Onde o mini Green New Deal de Obama falhou foi na escala: $90 bilhões em dez anos foi um grande catalisador, mas passou longe de ser suficiente para alcançar a escala de profunda descarbonização necessária: 100% de redução líquida de emissões, em meados do século.

Um esforço muito mais ambicioso e muito mais intervencionista será necessário nos Estados Unidos e além. É preciso de um Green New Deal com uma etiqueta de preço de multi-trilhões de dólares dessa vez, na escala do que Bernie Sanders pediu.

A ironia é que tal intervencionismo gigantesco – construção de infraestrutura colossal pelo setor público, aumentos acentuados nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias limpas nos laboratórios governamentais e universitários, compartilhamento de riscos com empresas com tecnologias promissoras para assegurar que elas não desapareçam se o capital de risco secar – exige exatamente o tipo de críticas aos mercados deixados por conta própria que deveria ser o arroz com feijão de Michael Moore.

Câmeras de filmagem também precisam de mineração

Um Green New Deal que coloque a energia nuclear e hidrocarbonetos sintéticos no coração de uma abordagem abrangente e variada, incluindo energia solar, eólica, geotérmica aprimorada, ondas, maré, hidrogênio e captura e armazenamento de carbono (CCS, na sigla em inglês) representa o tipo de estímulo econômico que comunidades desindustrializadas podem compreender como algo que vai gerar transformações genuínas. Isso pode assegurar um futuro tanto para o planeta, quanto para a esquerda política.

Ao invés disso, Michael Moore e Jeff Gibbs concluem que a única solução seria uma redução no consumo e na população mundial – e ainda mais desindustrialização. Vídeos promocionais acompanhando o filme nos dão mais informações sobre o que eles têm em mente: as pessoas no Sul Global deveriam poder continuar a desenvolver suas economias, mas aquelas nos países desenvolvidos precisam cortar fortemente e recuar em seu desenvolvimento.

Esse argumento de eco-austeridade, reivindicando por cortes no padrão de vida dos trabalhadores ocidentais para além dos já observados nos 40 anos de restrição salarial neoliberal, simplesmente não faz sentido, dado os compromissos políticos admiráveis e de longa data de Moore. Moore ficaria feliz em mostrar sua solidariedade em uma linha de piquete. Entretanto, quando os trabalhadores entram em greve, o objetivo, junto de melhores condições, é um aumento nos nossos salários, o que significa necessariamente que nós seríamos capazes de consumir mais.

A posição de “Planet of the Humans” pelo decrescimento não é apenas anti-trabalhador; é também desnecessária. Nenhuma das genuínas vitórias ambientais que conquistamos ao longo das décadas, desde o fim da diminuição da camada de ozônio e do envenenamento por chumbo, até às proibições de PCBs e amianto, e legislações como as Leis do Ar Limpo e da Água Limpa nos EUA, resultou da restrição do consumo dos trabalhadores. A camada de ozônio deverá estar completamente recuperada em meados do século, mas nós temos mais geladeiras e latas de spray de cabelo do que nunca.

Em todas essas vitórias, o que foi necessário foi o reconhecimento de que o mercado, deixado por conta própria, continuaria a incentivar a produção de mercadorias prejudiciais, tais como os gases CFC, então era preciso uma intervenção governamental para forçar a troca de tecnologias, mesmo que contra os atores do mercado. Essas empresas se lamentaram, processaram os governos e fizeram lobby, reclamando no velho estilo neoliberal que não seria o papel do governo “escolher vencedores”. Mas, no fim das contas, graças às campanhas dos movimentos ambientalistas e dos sindicatos e comunidades locais, o bem público venceu sobre o ganho do privado.

No que tem de pior, “Planet of the Humans” chega a atacar a própria civilização industrial e a tecnologia. Nisso, uma antropóloga especializada em primatas do Velho Mundo e na evolução da pigmentação da pele, Nina Jablonski, denuncia qualquer tentativa de resolver problemas ambientais com “correções tecnológicas”. Como se por toda parte da história humana nós não tivéssemos tentado resolver problemas via novas tecnologias e então usado a luta de classes para forçar as elites a compartilhar os benefícios daquelas tecnologias com todos.

Uma montagem simplesmente oferece recortes de minas, fábricas, escavadoras, caminhões basculantes e trabalho infantil produzindo o silicone, grafite, cobalto, níquel, lítio, cobre, estanho e outras substâncias com nomes difíceis de pronunciar, como fluoreto de amônio, hidróxido de sódio e acetato de etileno vinil (ecoando as Gwyneth Paltrows quimiofóbicas desse mundo, temendo os perigos do monóxido de Di-hidrogênio) utilizados na fabricação de tecnologias limpas. Não há argumentação narrativa por cima da sequência; ao invés disso, o filme nesse ponto parece simplesmente dizer: “Viu? Minas! Fábricas! Produtos químicos! Bú!”

Os problemas com a tecnologia limpa delineados por Moore e Gibbs basicamente resumem-se ao fato de que ela ainda envolve mineração. Bem, o mesmo vale para as câmeras de filmagem.

Em muitos países desenvolvidos, com sindicatos historicamente fortes e onde a mineração ainda constitui uma parte significativa do PIB, como Canadá ou Austrália, com o passar das décadas, o setor passou a fornecer trabalho com bons salários, segurança e sindicalização, e as empresas são forçadas pela regulamentação a melhorar os lugares. Ainda há problemas como o terrível desastre do rompimento da barragem de rejeitos de cobre de Mount Polley, em 2014, na Colúmbia Britânica? É claro. Mas isso se relaciona principalmente com os cortes neoliberais nos regimes de inspeção, pelo lobby bem sucedido da inspeção terceirizada para as próprias empresas, e pela captura regulatória.

Em outras palavras, o problema é o mercado deixado por conta própria, não a própria mineração. A mineração pode ser limpa e amigável ao trabalhador, ou pode ser tão brutal quanto um armazém na Amazônia. Não há setor da economia intrinsicamente mal; ao invés, as condições dependem inteiramente da força dos sindicatos, do nível de responsabilidade e responsividade democrática do governo, e da vontade do setor público de intervir contra o mercado.

Então, ironicamente, ao focar na civilização industrial e na “superpopulação” como as causas dos problemas ambientais, Moore e Gibbs nos distraem do real problema: o mercado sem limites.

Você pode até ir mais longe ao dizer que nos distraindo dos problemas dos mercados e, pelo contrário, focando no crescimento, Michael Moore e Jeff Gibbs inadvertidamente fizeram o filme mais neoliberal de suas carreiras.Enquanto Moore, Gibbs e os ativistas inspirados pelo pensamento Malthusiano estiverem focados em tentar fazer a classe trabalhadora reduzir o seu consumo, já inadequado, ou a ter menos filhos, declarando em suas bandeiras: “Sigam-me! Eu prometo menos a vocês!”, as empresas de combustíveis fósseis vão continuar bem contentes, pois não correm perigo nenhum.

Colaborador

Leigh Phillips é articulista científico e jornalista especializado em questões sobre a União Europeia. É autor de "Austerity Ecology & the Collapse-Porn Addicts" ("Ecologia da austeridade e os viciados em pornô do colapso") e co-autor de República Democrática do Walmart (Autonomia Literária 2020).

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