31 de outubro de 2020

A histórica luta da Polônia pelo direito ao aborto

Nesta semana, a Polônia proibiu o aborto após o governo direitista aparelhar os tribunais. Mas os conservadores não contavam com uma explosiva reação das mulheres – e agora enfrentam uma onda protestos furiosos sem precedentes na história democrática do país.

Kinga Stánczuk


Manifestantes se reúnem na capital, Varsóvia, contra a nova legislação sobre o aborto na sexta-feira. Foto: Reuters


Tradução / A Polônia está pegando fogo. Durante uma recessão histórica, em meio à pior pandemia desde a 1ª Guerra Mundial, o Tribunal Constitucional decidiu que o aborto é inconstitucional em casos de anomalias fetais letais. Essa decisão desencadeou uma onda de protestos furiosos, articulado pelas mulheres, sem precedentes na Polônia democrática.

O projeto de lei de regulamentação do aborto polonês de 1993 afirmava que o aborto era legal em três casos: 1) quando a gravidez é resultado de estupro; 2) quando a vida da mãe está em risco; ou 3) em caso de anomalias fetais letais. Na última década, cerca de 95-97% dos abortos legais na Polónia foram realizados devido à última condição, o que significa que o veredicto recente é uma proibição efetiva do aborto, com apenas os 3% restantes dos casos permanecendo legais.

O partido de direita nacional conservador Lei e Justiça é responsável pela atual composição do Tribunal Constitucional; parte da instituição jurídica acredita que o Tribunal foi politizado a ponto de suas decisões não serem juridicamente vinculativas. O debate entre os advogados é uma coisa, mas algo muito maior está acontecendo: as mulheres estão se organizando politicamente na maior mobilização da história do país.

O governo já havia tentado aprovar um projeto de lei antiaborto redigido por um think tank de extrema direita, Ordo Iuris, uma vez antes, mas teve que abandonar seus planos até uma onda implacável de protestos de cerca de 160.000 manifestantes em 2016. Até o momento, os protestos das mulheres têm sido a única mobilização social totalmente eficaz contra o governo do partido Lei e Justiça – os únicos a forçar o governo a dar um passo atrás.

Se a mobilização em 2016 foi grande, em 2020 parece ser uma força da natureza. Piquetes, cânticos, caminhadas espontâneas em mais de 80 vilas e cidades, várias marchas com mais de 50.000 pessoas. Os protestos atuais acontecem após a decisão já ter sido tomada, quando sabemos de fato que cerca de mil mulheres a cada ano serão obrigadas a dar à luz a fetos com graves anormalidades.

Nas ruas, pode-se ouvir a raiva retumbante, o desamparo, a fúria nua e crua. A maior organização pró-escolha, a Nationwide Women’s Strike (OSK) chamou sua campanha de ‘This Is War’: os protestos começaram imediatamente após o anúncio da decisão na noite de quinta-feira. Enquanto milhares de pessoas se reuniam na residência de Varsóvia de Jarosław Kaczyński, o líder do partido Lei e Justiça, centenas de vans da polícia chegaram ao local. Nas primeiras horas da manhã, os manifestantes foram atingidos com gás lacrimogêneo pela polícia.

No dia seguinte, o OSK organizou uma série de manifestações em massa em todas as principais cidades polonesas. Os protestos são massivos, furiosos e radicais “Dê o fora daqui!” é o slogan oficial do protesto: apenas alguns meses atrás, esse tipo de linguagem seria impensável. A onda anterior de protestos políticos manteve um certo decoro liberal: slogans espirituosos, caricaturas, sátiras, imagens, uma rima blasfema aqui e ali. Agora, os slogans são violentos e claramente anti-governo. Enquanto caminhávamos pelas ruas de Varsóvia em uma marcha de onze quilômetros, as pessoas se reuniam nas sacadas para acenar e praguejar juntas, os motoristas tocavam suas buzinas para reforçar os slogans; uma demonstração de solidariedade que nunca vi antes.

A cada dia, novos grupos se juntam aos protestos. No domingo passado, na pequena cidade de Nowy Dwor Gdanski (população de 10.000), o protesto das mulheres foi reforçado por uma longa coluna de tratores de fazendeiros protestando com piquetes contra as mudanças na lei de bem-estar animal. Em várias cidades, os protestos de mulheres foram acompanhados por fãs de futebol; em Praga, uma antiga parte da classe trabalhadora de Varsóvia, homens de meia-idade começaram a postar fotos em grupos locais do Facebook mostrando seu apoio. Alguns deles tiraram selfies fazendo um sinal “L” característico com os dedos – um claro indicador de que são torcedores do time de futebol Legia.

O sindicato dos motoristas de táxi organizou sua própria unidade de protesto, muitas instituições do conselho local adicionaram o símbolo da greve – um raio vermelho – em suas faixadas. O governo leva a propaganda ao limite: o protesto já foi comparado à SS, à Gestapo, ao fascismo italiano, ao bolchevismo e etc. O pânico da direita é evidente.

Curiosamente, o equilíbrio de gênero dos protestos mudou significativamente desde 2016, quando ocorreu a última onda massiva de protestos. Naquela época, havia principalmente mulheres. Agora, as pessoas vêm com suas famílias, amigos, colegas. Na sexta-feira passada vi um grande grupo de emrepsários se organizando antes de entrar na marcha, trazendo sócios, pais e filhos. A juventude desempenha um papel importante nos protestos: em vez dos velhos cânticos das revoluções passadas, a música dos protestos é Call On Me, Rage Against the Machine, de Eric Prydz, Miley Cirus ou o synthpop polonês que virou moda recentemente. Tecnicamente, devido às restrições da Covid-19, os adolescentes com menos de 16 anos não têm permissão legal para sair de casa. “Temos um governo para derrubar”, dizem os slogans.

Na terça-feira, cinco dias após o início da poderosa mobilização nacional de mulheres, Jarosław Kaczyński, presidente do partido Lei e Justiça, fez um discurso de 6 minutos para a nação. O discurso foi ofensivo e surreal; o nível de desconexão com a realidade social bastante chocante. “Não existem sistemas morais alternativos aos oferecidos pela Igreja Católica”, disse ele. “Rejeitar a Igreja significa niilismo.” Ele convocou seus apoiadores a “defender as igrejas a qualquer custo ou este protesto acabará com a história desta nação.”

Eu não tinha nem um ano de idade quando a Polônia começou sua transição para a democracia, então terça-feira foi a primeira vez na minha vida que um membro ativo do governo, o líder de fato da nação, declarou guerra ao seu próprio povo. É revelador que a palavra “mulheres” não apareça nenhuma vez em seu discurso; os manifestantes são descritos como “niilistas” sem gênero que “cometem um crime muito grave” por não seguir as restrições da pandemia.

O vídeo tem uma qualidade estranha, parece ter sido filmado em meados dos anos 1990; Kaczyński está sentado com as palmas das mãos grandes e inchadas, desconfortavelmente perto dos espectadores. Ele até sugeriu que os manifestantes eram treinados no exterior – o truque mais antigo do mundo. Militantes do movimento se perguntaram ontem: será que ele realmente se perdeu? O exército será usado para pacificar os protestos? Um dos líderes do partido da oposição comentou em resposta ao discurso de Kaczyński: “Mesmo que por algum milagre as pessoas de ambos os lados mantenham a calma, as provocações acontecerão. Você terá sangue nas mãos.” Tudo isso está acontecendo à medida que os casos da Covid estão disparando, atualmente com 18.000 casos por dia.

Persistir em uma situação tão ameaçadora exige caráter. A líder da Nationwide Women’s Strike (OSK), Marta Lempart, convocou uma greve na quarta-feira, 28 de outubro, e uma marcha por Varsóvia em 30 de outubro. A liderança do OSK publicou uma lista de demandas, incluindo a remoção do presidente indevidamente nomeado no Tribunal Constitucional, cancelamento da decisão, plenos direitos ao aborto para as mulheres e a renúncia do governo.

Enquanto isso, funcionários do governo admitem anonimamente o completo fracasso político em aprovar a decisão durante a pandemia, mas nenhuma declaração pública foi feita nesse sentido. No dia seguinte ao discurso sinistro de Kaczyński, milhares de mulheres voltaram às ruas – com a mesma, se não maior, perseverança.

No início deste ano, uma das lideranças do OSK, Klementyna Suchanow, publicou um livro poderoso com o mesmo título sinistro, “This Is War”, no qual ela descreve a maneira como a direita ultra-radical consegue fazer lobby com as forças democráticas para implementar leis diretamente da distópica Margaret de Atwood.

Como ela argumenta, se as mulheres cederem aos ideólogos agora, se eles permitirem que façam lobby em nossos governos, a extrema direita acabará aprovando uma legislação para encarcerar mulheres por aborto ou remover qualquer base médica para o aborto legal, como fez o projeto de lei anterior Ordo Iuris. Parece que a Polônia atingiu seu ponto crítico. A opressão das mulheres terá que acabar – e terá que ser agora.

Sobre o autor

Kinga Stánczuk é professora, escritora e historiadora intelectual radicada em Varsóvia.

Angela Davis sobre a luta pelo internacionalismo socialista e uma verdadeira democracia

A lendária ativista Angela Davis e o cineasta Astra Taylor falam sobre democracia econômica, justiça criminal e por que precisamos de um internacionalismo socialista.

Uma entrevista com
Angela Davis

Jacobin

Angela Davis em 10 de setembro de 2012 em Toronto, Canadá. (Foto: Jemal Countess / Getty Images)

Tradução / Em meados de outubro, a célebre cineasta e escritora Astra Taylor conversou com a lendária pensadora radical Angela Davis em uma live co-patrocinada pela Jacobin e a editora Haymarket Books. O tema: “A democracia deles e a nossa”. Em sua extensa conversa, elas falaram sobre a relação entre democracia e socialismo, o papel histórico dos radicais nas lutas democráticas, a necessidade de revitalizar o internacionalismo e muito mais.

Astra Taylor é a autora de Democracy May Not Exist, But We Will Miss It When It’s Gone (“A democracia pode não existir, mas vamos sentir falta dela quando ela se for”) e, mais recentemente, co-autora do manifesto do Debt Collective, Can’t Pay, Won’t Pay: The Case for Economic Disobedience and Debt Abolition (“Não posso pagar, não vou pagar: em defesa da desobediência econômica e da abolição da dívida”). Angela Davis é professora emérita na Universidade da Califórnia, Santa Cruz; tema do aclamado documentário Libertem Angela Davis; e autora de muitos livros, incluindo Mulheres, Raça e Classe.

A conversa foi condensada e editada para fins de clareza.

Astra Taylor

Gostaria de falar sobre a democracia dos Pais Fundadores dos EUA e sobre o fato de o sistema político estadunidense ter sido criado a partir de muitas exclusões: a exclusão de pessoas escravizadas, mulheres e homens privados de propriedade. Os Pais Fundadores queriam proteger os direitos de uma minoria de ricos, senhores de terras e donos de escravizados. As estruturas que eles idealizaram continuam a existir.

Também gostaria de falar sobre o horizonte do abolicionismo, mas creio que precisamos estar atentos à possibilidade de haver uma reversão do progresso já feito. Isso é algo que a Era Reconstrução (os 13 anos que se seguiram à Guerra Civil estadunidense) nos ensina. Basta olhar para a supressão de eleitores na Carolina do Norte. Na Flórida, encarcerados endividados não têm permissão para votar. Como podemos operar sem deixar de levar esses níveis de opressão em consideração?


Angela Davis

Se olharmos para a democracia simplesmente como uma forma de governo político, excluímos toda uma série de questões que deveriam ser abordadas nas discussões sobre ela. Por que o mito dos EUA como a primeira democracia continua merecendo tanta atenção? Como você disse, era, na verdade, uma democracia da minoria, o que deveria ser um oxímoro.

Seria interessante falar sobre as aplicações econômicas da democracia. O que uma democracia econômica acarretaria? Quais seriam as dimensões sociais da democracia? E como a democracia muda em relação ao sistema econômico em particular que sustenta tal democracia?

Como seria imaginar uma democracia na qual todos pudessem participar com igualdade econômica, cultural, social e política? Se argumentarmos que todos, por viverem em uma determinada região, devem ser considerados cidadãos e devem ter direito de participar do governo e da economia, o que isso significaria?

Astra Taylor

Adoro esse tipo de questionamento. Quando eu estava fazendo entrevistas para meu filme What Is Democracy?, particularmente com jovens conservadores, esperava que eles dissessem que o capitalismo é democrático e que usassem a retórica da democracia. Mas constatei, especialmente nos dias que seguiram à vitória de Donald Trump, que eles estavam cientes que não teriam o voto da maioria. O casamento do capitalismo com a democracia foi deixado para lá: eles aceitaram a parte capitalista e se tornaram conscientemente elitistas. Em setembro, vimos o republicano senador Mike Lee twittar que não somos uma democracia, de qualquer forma.

Por outro lado, as pessoas estão percebendo que precisamos unir o socialismo e a democracia. Precisamos ter um alicerce econômico de igualdade. Não temos nada que chegue perto dos direitos e liberdades liberais que deveríamos ter, devido à existência de tanta desigualdade.

Mas acredito que isso não responde a todas as nossas perguntas. Precisamos pensar sobre os enigmas democráticos que viriam à tona sob o socialismo. Como compartilharíamos o poder? Como viveríamos em um mundo com riqueza comum, no qual cada um de nós teria controle sobre sua própria vida? Como decidiríamos quem deve tomar qual decisão? Acredito que as questões relacionadas à democracia seriam muito mais ricas e mais profundas.


Angela Davis

Eu me pergunto se o resultado da última eleição poderia ter sido diferente se mais atenção tivesse sido dada àqueles que estão sofrendo com os impactos do capitalismo global — as famílias brancas e pobres que já estão reconhecendo que seus filhos não terão uma vida melhor no futuro. O resultado poderia ter sido diferente se tivéssemos desenvolvido estratégias que nos permitissem reconhecer que muitos dos problemas dos EUA estão diretamente relacionados ao crescimento e à disseminação do capitalismo global.

Na realidade, costumávamos ter mais democracia econômica do que temos hoje. Antigamente, as pessoas podiam ser tratadas em qualquer hospital se ficassem doentes. Os hospitais e todo o sistema de saúde dos EUA não eram privatizados, como são hoje. Essa é uma das razões de a pandemia da COVID-19 ter criado tamanho estado de emergência — particularmente no que diz respeito aos leitos hospitalares, porque leitos hospitalares vazios não são lucrativos.

Se olharmos para o impacto do capitalismo global, veremos que ele é, em grande parte, uma explicação para a ascensão do complexo industrial penitenciário, bem como o fim de muitas instituições que serviam como uma rede de segurança econômica para as pessoas. O fracasso em desenvolver mais instituições voltadas para o bem público criou um terreno favorável à expansão da pobreza, não apenas entre as comunidades de cor, mas também entre as pessoas brancas.

O atual ocupante da Casa Branca apelou aos que estavam sofrendo, oferecendo falsas soluções, como o retorno a uma época em que a economia industrializada respondia às necessidades das pessoas neste país. Mas isso não vai acontecer. Os empregos que foram deslocados para outros países, particularmente do Sul Global, não vão retornar aos EUA. É importante considerar as formas pelas quais as transformações econômicas impactam a democracia.

Astra Taylor

Gostaria de perguntar sobre a história da perseguição e ataques à esquerda, e seu papel no enfraquecimento da democracia. Acho que tem a ver com o que você estava dizendo — a falta de sindicatos robustos, a ausência de associações onde pessoas comuns possam obter uma educação política radical e ser tratadas como participantes ativos, pensantes.

Angela Davis

Por décadas, as pessoas envolvidas nas lutas socialistas e comunistas se referiam à “outra América”. Havia a América representada pelos que estavam no poder, e depois havia os sindicatos e as lutas contra o racismo e o sexismo. Perdemos, em nossos relatos históricos, o papel que comunistas e socialistas desempenharam na expansão das possibilidades de democracia nos EUA. Temos o seguro-desemprego como consequência das lutas dos anos 1930. Os comunistas negros no Sul ajudaram a abrir o terreno para o Movimento dos Direitos Civis.

Hoje, estamos nos engajando no que as pessoas chamam de “acerto de contas racial”, mas nossa terminologia deveria ser mais ampla. Não é simplesmente um “acerto de contas racial”, é um acerto de contas com a história estadunidense — não apenas a história do racismo e a história da exploração de classes, mas também uma história de resistência. Se não tivermos consciência das lutas que criaram a democracia como noção aspiracional, e não como um determinado conjunto dado de assuntos — não como uma simples forma de organização governamental, mas uma luta por uma sociedade mais justa, mais igualitária — então não teremos por onde começar. Não nos damos conta de que nossas lutas se desenvolvem em um continuum.

Astra Taylor

Você poderia fazer uma reflexão sobre a conexão entre encarceramento e democracia? Estamos nos aproximando de uma eleição em que a privação de direitos de voto na Flórida pode dar vantagem aos Republicanos. Foi isso que aconteceu em 2000, mas é muito mais grave.

Você observou que o livro A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, só se materializou após Tocqueville ter escrito um artigo em visita às prisões estadunidenses. Você disse que o encarceramento é uma negação exigida pela democracia liberal como prova de sua existência. Essa negação — em que eu só sou livre se você não for — é intrínseca à democracia, ou é a versão em que estamos vivendo?


Angela Davis

Em seu livro sobre escravidão e morte social, Orlando Patterson sugere que a democracia ocidental pode ter evoluído a partir dos anseios dos escravizados por liberdade. O próprio conceito de liberdade que usamos exige um sentimento de falta de liberdade para explicar seu surgimento. A escravidão foi, para aqueles que não haviam sido escravizados, a prova palpável de que eram, de fato, livres. Mas com o advento das prisões como forma de punição, em conjunto com o aumento de ideais revolucionários e a emergência do aprisionamento democrático, a punição tornou-se a base da democracia.

Não podemos conceber a prisão como forma de punição, sem uma democracia capitalista, pois a prisão implica a alienação de direitos. Isso não faria sentido em uma sociedade que não reconhecesse os direitos individuais. Não faria sentido fora do contexto de uma sociedade democrática. Acho que é realmente importante ter em mente que essa negação constitutiva da democracia é o que de fato a constrói e que, como tal, deve ser negada àqueles que estão na prisão.

Astra Taylor

Gostaria de convidá-la a falar sobre a ideia do feminismo abolicionista. As feministas sociais, como muitas outras, pensam na importância da reprodução social, que às vezes envolve o trabalho de cuidado. Isso veio à tona para mim como uma questão democrática, pois somos governados por uma administração que parece desprezar a vulnerabilidade. Fraqueza, doença e deficiência, são ridicularizadas. Eu adoraria ouvir seus pensamentos sobre feminismo, democracia e a importância do cuidado em uma sociedade democrática.

Angela Davis

Costumamos pressupor que ao falar de feminismo, vamos tratar de questões de gênero. É claro que precisamos tratar de questões de gênero, mas as abordagens feministas são muito mais amplas do que o simples enfoque no gênero. O feminismo abolicionista nos incita a pensar sobre o que é necessário para avançarmos em uma direção democrática — ou seja, o que precisamos jogar na lata de lixo da história.

No caso da violência de gênero; se não dependêssemos das instituições prisionais e de policiamento para resolver esse problema, teríamos que adotar uma abordagem muito mais complexa. Isso é o que aprecio no feminismo: ele nos faz problematizar nossa capacidade de análise. Isso nos força a reconhecer que as realidades sociais nem sempre refletem a nitidez de nossas categorias analíticas e que precisamos estar dispostos a tentar nos aproximar da bagunça da realidade social. Quando dizemos que a polícia e as prisões são instituições que precisam ser jogadas na lata de lixo da história, como podemos abordar os problemas que essas instituições fingem abordar, mas que não conseguem resolver?

O político forma o pessoal, assim como o que muitas vezes presumimos serem ideias geradas por nossas próprias individualidades. Uma feminista argumentaria que não podemos alcançar a abolição sem reconhecer que temos que adotar uma postura crítica às nossas próprias emoções e às ideias que acreditamos serem nossas. Essas são, muitas vezes, as ideias do Estado que operam através de nós.

Acho que essas sacadas feministas são essenciais para reimaginar uma democracia mais igualitária, que proporcionaria mais justiça para todos.

Astra Taylor

Eu gostaria de falar sobre animais não humanos. A COVID-19 não é um desastre natural, ela ocorre entre espécies, porque os seres humanos, movidos por imperativos capitalistas, estão devorando o mundo natural. Usamos 40% da superfície terrestre para o abastecimento de alimentos. A próxima pandemia provavelmente surgirá em uma fazenda industrial americana, porque milhares de animais são amontoados nessas gaiolas. As questões climáticas também fazem parte disso.

Pode ser muito utópico pensar em incluir a vida não-humana em nossa política democrática. Pessoalmente, sinto que nossas vidas dependem disso. Com a destruição do meio ambiente, as doenças estão aumentando em número e virulência. Algumas pessoas dizem que precisamos priorizar os humanos como se a solidariedade fosse um jogo de soma zero, mas sinto que temos que rejeitar essa visão e expandir nosso círculo de preocupação. Eu adoraria ouvir seus pensamentos sobre isso.


Angela Davis

Concordo totalmente com você. A priorização dos humanos também leva a definições restritivas de quem é considerado humano, e a brutalização dos animais está relacionada à brutalização de animais humanos. Esta será uma arena de luta muito importante nos próximos tempos.

Se quisermos nos engajar em lutas contínuas pela liberdade e democracia, temos que reconhecer que as coisas se tornarão cada vez mais amplas, pois, inicialmente, a questão da democracia abordava apenas um pequeno subconjunto de homens brancos ricos. Não estou sugerindo que a trajetória histórica seja automática, mas estamos testemunhando uma noção cada vez mais ampla da natureza da democracia. E não vejo como podemos excluir nossos companheiros não humanos com quem compartilhamos este planeta.

No início da pandemia, fiz um webinar com pessoas na Amazônia brasileira. Elas têm que lidar não apenas com questões de racismo, mas também com a queima da Amazônia. Por isso sugiro que precisamos evitar abordagens estreitas. Temos que trabalhar contra a miopia, ou seja, não podemos pensar apenas nas pessoas do nosso país.

Sobre o voto, imigrantes que vivem nos EUA deveriam poder votar porque são parte da comunidade. Também teremos que lidar com a obsolescência do Estado-nação. Estou pensando em problemas que provavelmente surgirão no futuro, não sei se ainda estarei por aqui quando se tornarem mainstream. Não achei que fosse testemunhar a disseminação do abolicionismo, mas aqui estamos.

Astra Taylor

Mesmo com todas as exclusões da democracia, existem alguns municípios onde a residência é o único requisito para votar. Há países em que não é necessário ser cidadão para votar. No passado, as pessoas encarceradas podiam votar em alguns estados estadunidenses.

Angela Davis

E os candidatos tinham que visitá-las na prisão.

Astra Taylor

Nossa mente está fechada para coisas que, na verdade, já existiram antes. Adoro essa visão da democracia como um círculo em expansão — ela evoca pessoas olhando para trás no futuro e dizendo: “Eles viveram na idade das trevas da democracia.”

Você faz um trabalho incrível junto à Critical Resistence, levando o conceito radical do abolicionismo prisional para o mainstream. Gostaria que você nos contasse um pouco sobre isso.

E você poderia falar também sobre sua incrível abertura a militantes emergentes e sua vontade de aprender com eles?


Angela Davis

Temos que desafiar as hierarquias, incluindo aquelas que parecem imutáveis —como as que garantem aos mais velhos mais poder e influência em virtude da idade e as que obrigam a geração mais jovem a seguir os passos dos mais velhos. Acho que precisamos ser mais igualitários.

Essa é uma das formas pelas quais podemos concretizar relações democráticas no decorrer da luta pela mudança, não apenas na relacionalidade de gerações, mas também em relação aos que estão na prisão e aos que estão fora dela. Muitas vezes, aqueles que habitam o chamado mundo livre acham que têm maior capacidade de liderança do que aqueles que estão presos. E agradeço à Critical Resistance, porque desde o princípio, eles insistiram em trazer para a liderança aqueles que de fato estavam na prisão.

Acho que não temos ocasiões suficientes para criar a democracia enquanto estamos lutando por ela, mas acho que essa também é uma abordagem feminista. O que nos ajuda não apenas a imaginar um novo mundo, mas a nos tornarmos dignos de participar desse mundo enquanto lutamos por ele.

Astra Taylor

Brilhante. Que resposta maravilhosa! E, no espírito da democracia, vamos agora responder a algumas perguntas dos espectadores.

O que a inspira no movimento Black Lives Matter? O que o movimento poderia aprender com a experiência da Nova Esquerda e com as lutas dos movimentos sociais da década de 1960?

Angela Davis

É um movimento muito entusiasmante. Os protestos de Ferguson e o surgimento do Black Lives Matter tiveram um impacto não só no país inteiro, mas no mundo inteiro — o entedimento do significado de “vidas negras importam”, tantas vezes mal interpretado como “todas as vidas importam.” A tirania do universal, como gosto de chamá-la, foi uma forma de desconsiderar o impacto e as experiências específicas dos negros neste país.

Aprendi muito com as três mulheres que fundaram a rede Black Lives Matter e o Movement for Black Lives. Meus mentores durante este período foram os jovens que tomaram as lutas do passado e deram a elas muito mais substância. Isso me inspira porque vejo uma geração que não subestima o quanto lutamos no passado. Eles não apenas sabem como articular isso, mas também ampliam o seu alcance, e desenvolvem formas verdadeiramente inspiradoras de transformar o mundo.

Muitas vezes, aprendemos mais com nossos erros do que acertos, e a geração mais jovem deve estar preparada para experimentar enquanto tenta descobrir como construir movimentos. Qual é a linguagem que atrai as pessoas? Mesmo que estejamos vivendo em um mundo construído pelo capitalismo racial, como podemos criar uma resposta crítica? Como encorajamos as pessoas, movimentos e organizações a reconhecer que, em última instância, teremos que desmontar esse sistema e avançar em uma direção socialista?

Astra Taylor

Quando pensamos no que manteve as gerações da Velha Esquerda à Nova Esquerda e além, vemos que, muitas vezes, elas tinham organizações “centralistas democráticas”, rígidas demais. Mas essas organizações tinham um senso de filiação, debatiam sobre seus programas e conseguiam canalizar a energia dos ativistas para instrumentos organizacionais. Hoje, estamos testemunhando o crescimento de várias organizações de esquerda, mas parece que estamos muito mais dispersos. Você poderia comentar sobre algo que talvez tenhamos perdido pelo caminho e que precisamos encontrar de novo?

Angela Davis

Posso falar sobre muitas coisas, mas, de momento, vou me concentrar no internacionalismo. Às vezes me pergunto por que não conseguimos criar um senso de conexão emocional com pessoas de outras partes do mundo. Por que as mulheres negras estadunidenses não estão mais conectadas com o movimento das mulheres negras brasileiras? Há tanta coisa que podemos aprender com as lutas das mulheres negras no Brasil.

Almejo um internacionalismo que nos faça sentir mais fortes — que nos permita reconhecer que nossos desejos são os mesmos dos das pessoas no mundo todo. Não estou sugerindo que já não exista internacionalismo hoje; a Palestina certamente desempenhou um papel importante no sentido de apontar o caminho para as lutas abolicionistas nos EUA. O abolicionismo não se trata de nos livrarmos das prisões, mas de todo o regime carcerário, e vemos isso na Palestina ocupada. Por isso, quero o internacionalismo já!

Sobre a entrevistada

Angela Davis é professora emérita na Universidade da Califórnia, Santa Cruz.

Sobre o entrevistador

Astra Taylor é escritora, documentarista e militante socialista. Seu último filme é What Is Democracy? ("O que é Democracia?"). Recentemente publicou o livro Democracy May Not Exist, but We’ll Miss it When It’s Gone ("A democracia pode não existir, mas vamos sentir falta dela quando ela se for").

30 de outubro de 2020

Barafunda fiscal e legislativa

Temos encontro marcado com a realidade, no máximo, até depois do Carnaval

Nelson Barbosa


Mais provável é que o Congresso só aprove a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e prorrogue o "estado de calamidade" e o "Orçamento de guerra". Leopoldo Silva/Agência Senado


A crise da Covid-19 fez o governo abandonar a meta de resultado primário. Segundo as projeções da equipe econômica, teremos déficit primário de 12% neste ano, pois a receita caiu bem abaixo do esperado e o gasto subiu (corretamente) para combater os efeitos da pandemia.

Para 2021, a projeção do governo é novo déficit, de 3% do PIB, ou seja, bem menor do que neste ano. A projeção oficial está baseada no cenário irrealista de manutenção do teto de gasto, mas todos sabem que isto será impossível no próximo ano.

Por ora, as discussões orçamentárias de 2021 estão suspensas, e o Congresso espera a conclusão das eleições municipais de novembro. Depois disso, segundo a retórica oficial, teremos o “grande milagre legislativo”, com aprovação de três reformas constitucionais —tributária, administrativa e federativa—nas três primeiras semanas de dezembro.

No mundo real o mais provável é que o Congresso só aprove a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e prorrogue o “estado de calamidade” e o “Orçamento de guerra”, deixando discussões fiscais mais detalhadas para depois do Carnaval de 2021, quando Senado e Câmara já terão novas lideranças.

Sem orçamento aprovado, o governo poderá iniciar 2021 com controle do gasto na “boca do caixa”, isto é, liberando apenas o mínimo necessário para despesas essenciais.

Traduzindo do economês, no cenário “deixa como está para ver como é que fica”, teremos grande contração fiscal, via decreto presidencial, a partir de janeiro. Como nosso presidente parece assinar coisas sem atentar ao conteúdo, a possibilidade de ruído político no início de 2021 é bem grande, com publicação e revogação de decretos em série.

Para piorar, temos um problema legislativo adicional para 2021: nesta semana o TCU disse que a proposta de “meta de resultado primário variável” apresentada pelo governo não atende à Lei de Responsabilidade Fiscal. Trata-se de mais um episódio de nossas discussões bizantinas, mas com impacto nas projeções fiscais.

Especificamente, diante da incerteza econômica, o governo anunciou que, em 2021, sua meta de resultado primário é não ter meta de resultado primário. A proposta do governo é ter meta de gasto e deixar o resultado primário flutuar de acordo com a evolução da receita. A “meta” de resultado seria, então, o resultado efetivo ao final do ano.

Do ponto de vista econômico o governo está certo. É melhor focar no gasto e deixar o resultado flutuar, como faz a maioria dos países do mundo. O gasto não precisa nem deve ser necessariamente o previsto no teto Temer, como tenho apontados nos últimos meses, mas o Congresso só deve reconhecer isso depois do Carnaval.

Até lá a equipe econômica terá que resolver o impasse com TCU e há duas soluções possíveis na estratégia governista.

No cenário “empurra com a barriga”, a prorrogação do “estado de calamidade” eliminará a necessidade de cumprimento de meta de resultado primário em 2021, mas possibilitará arrocho já em janeiro, via decreto, como apontei acima.

Já em outro cenário, o “me engana que eu gosto”, o governo pode atender ao TCU fixando um déficit bem elevado como meta de resultado primário na LDO de 2021, o que eliminará riscos de descumprir a meta, mas fará com que a projeção de aumento da dívida pública seja bem maior do que atualmente projetado pela equipe econômica.

Na barafunda fiscal e legislativa em que nos encontramos, só há uma certeza: temos encontro marcado com a realidade, em dezembro ou, no máximo, depois do Carnaval.

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

29 de outubro de 2020

O líder sindical boliviano Orlando Gutiérrez deu sua vida pela democracia e pelo socialismo

Orlando Gutiérrez, o líder sindical militante boliviano, foi assassinado por uma gangue fascista na Bolívia. Ele deu sua vida pela luta pela democracia, pelos direitos dos trabalhadores e pelo socialismo. Orlando não será esquecido. E o fascismo não vai vencer.

Olivia Arigho-Stiles

Jacobin

A morte de Orlando Gutiérrez ocorre em meio a uma onda de violência contra os movimentos sindicais e camponeses após o golpe na Bolívia em novembro passado.

Tradução / O carismático líder sindical do setor de mineração, Orlando Gutiérrez, morreu na Bolívia, dias após ter sido violentamente espancado por uma gangue de fascistas que protestava contra o resultado eleitoral, no qual triunfou o movimento de esquerda, Movimento ao Socialismo (MAS).

A morte de Gutiérrez, que tinha apenas 36 anos, aconteceu em meio uma onda de violência direcionada contra movimentos sindicais e campesinos, no período seguinte ao golpe ano passado. Em agosto, a sede da COB (Central Obrera Boliviana, em espanhol), a federação sindical boliviana, em La Paz, foi bombardeada por mandados de prisão contra sindicalistas, expedidos pelo regime golpista.

Gutiérrez, era secretário executivo da FSTMB (Federação Sindical dos Trabalhadores em Minas da Bolívia), o poderoso sindicato fundado em 1944 que domina a COB. Ele era a principal indicação para o novo ministério de mineração do governo recém eleito de Luis Arce. Semana passada ele foi atacado por uma gangue anti-MAS, deixando-o com sérias lesões. Ele estava sob cuidado intensivo em um hospital em La Paz durante alguns dias antes de morrer. A polícia e o Ministério Público abriram oficialmente uma investigação acerca de sua morte. A FSTMB declarou 90 dias de luto nacional.

A morte de Gutiérrez, ocorreu logo após a eleição presidencial neste mês, que por sua vez assinalou um dramático retorno à democracia para o Estado plurinacional e uma vitória esmagadora ao candidato do MAS. Gutiérrez era um apoiador ativo do MAS, acompanhando os candidatos em campanha por todo o país. Durante o ano, ele tinha liderado fervorosas críticas ao governo golpista por sua má gestão frente a pandemia da COVID-19, pelas prisões políticas e por adiar diversas vezes a eleição.

Um grande volume de mensagens chegou do movimento internacional trabalhista. Ian Lavery, que era trabalhador na mineração, ex-presidente do Sindicato Nacional de Trabalhadores em Minas e ex-presidente do Partido Trabalhista inglês, disse: “A solidariedade do movimento trabalhista ao redor do mundo deve estar hoje com a família de Orlando Gutiérrez, um homem assassinado apenas por lutar por dignidade e justiça para a classe trabalhadora.”

“Enquanto alguém que começou a trabalhar nas minas e viveu a Grande Greve de 1984-85, esta história em particular me deixou desolado – que aconteceu tão próxima a restauração da democracia na Bolívia este mês. Orlando não será esquecido. O fascismo não irá ganhar. Deve ser confrontado. Onde quer que exista.”

No último outubro, entre crescentes protestos anti-MAS, sindicalistas da mineração desceram rumo à La Paz, jogando dinamites insanamente barulhentas para protestar a favor do presidente afastado, Evo Morales, e do MAS. Recentemente, a COB e a FSTMB lideraram o movimento pela democracia, contra as tendências opressoras do regime golpista sob Jeanine Áñez. Em agosto, a COB e seus sindicatos associados chamaram uma greve geral por tempo indeterminado, com protestos, marchas e bloqueio de vias, deixando o país em um impasse, demandando novas eleições e pedindo a renúncia de Áñez.

O assassinato de Gutiérrez, indica uma crescente ameaça de grupos paramilitares fascistas. Em Cochabamba, o violento grupo armado Resistencia Juvenil Cochala (RJC) liderou protestos contra o resultado da última eleição, em Santa Cruz, o grupo civil Comitê Civil Pro-Santa Cruz emitiu um comunicado pedindo que as autoridades eleitorais suspendessem a contagem de votos devido à “fraudes”. A mobilização no ano passado das “pititas”, essencialmente grupos de classe média, urbanos e de direita, marcaram o início de um encorajado novo movimento de extrema-direita na Bolívia.

Em outubro de 2019, estes grupos protestaram ostensivamente sob o slogan de “democracia”, caluniando Evo e o governo MAS como ilegítimo e opressor. Com isso, eles esperavam capitalizar o descontentamento com a decisão de Evo em concorrer à um quarto mandato presidencial. Em seus gritos de ordem, difamavam Evo como um ditador e comparavam a Bolívia com a Venezuela “comunista”.

Quando o governo golpista de Jeanine Áñez, eventualmente sequestrou o poder, sombrias correntes fascistas proliferaram e por vezes ativamente apoiadas pelo regime. Após o golpe, diversos ex-Ministros e autoridades ficaram sujeitos à mandados de prisão e pediram asilo na Embaixada mexicana em La Paz. Em resposta, grupos de direita paceños da rica região Zona Sur, reuniram-se para atacar funcionários e veículos da embaixada com o apoio da polícia.

Conduzidos pelo Estado, o massacre de protestos contra o golpe em Senkata, El Alto e Sacaba, Cochabamba, coincidiram com o ressurgimento de atos racistas, como a queima da bandeira whipala, que representa os povos andinos indígenas. A demonização e perseguição sistemática do MAS subsequente tomou um viés altamente racista, com políticos de direita retratando povos indígenas como “selvagens” e inaptos para o poder político.

Gutiérrez ganhou proeminência em um movimento de trabalhadores reconhecido por sua militância e pelas duras condições de trabalho. O intelectual boliviano e fundador do Partido Comunista, Sergio Almaraz, disse uma vez que na Bolívia “o século XX chegou nos ombros da mineração de estanho.”

O movimento trabalhista boliviano – dominado pelos mineradores – historicamente tem sido um dos mais poderosos e organizados do mundo. Em parte, devido aos esforços do líder entre mineradores, Juan Lechín, a Revolução Boliviana de 1952 assistiu a nacionalização das companhias de mineração Patiño, Aramayo e Hochschild, que respondia por 1/4 da produção mundial de estanho no período. Isso colocou o setor de mineração sob o controle da Corporación Minera de Bolivia (Comibol) que foi dirigido pela FSTMB, apesar da catastrófica queda de estanho em 1985 ter enfraquecido o movimento de mineradores de forma irrevogável.

Posteriormente, a COB e a FSTMB exerceriam um importante papel nas lutas por democracia durante ditaduras nos anos 1970 e 1980, liderando greves gerais e bloqueios.

Gutiérrez nasceu na cidade dominada pela mineração, Colquiri, em La Paz e atuou no sindicato de mineradores até chegar a posição de secretário executivo em 2015. Angus McNelly, um pesquisador da Queen Mary, Universidade de Londres, que entrevistou Gutiérrez e passou um longo tempo com sindicatos de mineradores para sua pesquisa, lembra de um homem risonho, profundamente respeitado por seus colegas de trabalho e incansavelmente comprometido com a luta pela emancipação dos trabalhadores. De forma similar, o presidente eleito Luis Arce, escreveu um tweet dizendo que ele era um “grande líder dos mineradores que sempre defendeu os interesses do povo boliviano.”

A perda de Gutiérrez, nas mãos da violência fascista é um golpe arrebatador ao movimento de trabalhadores na Bolívia, à democracia, e as milhares de pessoas que conheciam e amavam o corajoso líder sindical. Seu legado agora deve ser o mundo justo que ele tanto lutou em defesa – e lamentavelmente nunca conseguiu ver.

Sobre o autor

Olivia Arigho-Stiles é doutoranda que pesquisa movimentos indígenas do século XX na Bolívia. Ela é editora colaboradora da Alborada.

28 de outubro de 2020

O que Engels deu a Marx e ao marxismo

Friedrich Engels foi muito mais do que o benfeitor de Karl Marx, ou o guardião de seu legado intelectual. Quando eles se conheceram, na juventude, na década de 1840, Engels já era um escritor político conhecido, que primeiro articulou alguns dos conceitos básicos do que viria a se tornar o "marxismo".

Terrell Carver


Friedrich Engels e Karl Marx.

Este é um trecho do livro Engels Before Marx de Terrell Carver (Palgrave Macmillan, 2020)

Tradução / Friedrich Engels levou sua capacidade de observação para Manchester, em dezembro de 1842, tendo acabado de fazer vinte e dois anos, no mês anterior. Em novembro, a caminho de Barmen (Alemanha) para Londres, Engels parou na redação do jornal "Rheinische Zeitung" ["Gazeta Renana"], onde se encontrou com o recém-instalado editor, Karl Marx.

Marx havia chegado à redação um tanto por omissão, e certamente não por experiência. Naquele ponto, Engels havia contribuído com cerca de duas vezes mais artigos para o jornal do que Marx, e Marx havia posto apenas alguns artigos em outras publicações.

Muitos anos depois, Engels relembrou esse encontro entre os dois, dizendo que foi notavelmente bom da parte de Marx, visto que ele desaprovava o conjunto excessivamente filosófico dos jovens hegelianos de Berlim. Mas, em suas lembranças, Engels nada diz sobre os outros editores, ou mesmo como ele mesmo se sentia em relação a Marx. Deve ter ficado claro, porém, que Engels era de longe o escritor mais talentoso e, na verdade, o publicitário do "pensamento livre" e do progresso político liberalizante.

E ele estava embarcando em uma aventura de tirar o fôlego para a maior potência econômica e militar do mundo, a Inglaterra, onde Engels já tinha estado antes. Seu inglês era fluente e ele estava fora dos estados alemães, para o mundo mais amplo da Grã-Bretanha imperial. Tudo isso estava muito além da imaginação de Marx na época.

Perspectivas inglesas

As notícias da Inglaterra já despertavam algum interesse no público de língua alemã. Ou melhor, seria de interesse tópico e político, a menos que seus interesses estivessem em outro lugar - como certamente foi o caso com as elites dominantes - ou seja, em manter firmemente à distância toda noção de mudança social e inovação política. Nesse caso, quanto menos notícias sobre a Inglaterra, melhor.

Evidentemente, Engels foi contratado para continuar sua carreira na "Rheinische Zeitung" com notícias da modernidade liberalizante. Esses eram os temas estampados sob o nome do jornal: política, comércio e indústria. Escrever agudamente a partir de fontes no reino das ideias, para pessoas interessadas em ideias, era uma forma de comunicação política da qual Engels era adepto.

Como um "colaborador" de um jornal liberal, o jovem Friedrich foi um presente e tanto, e é claro que era incrivelmente barato, provavelmente de graça, ou quase isso. Ele não era apenas financiado externamente pelo comércio e pela indústria, mas também trabalhava em um grande centro metropolitano (em Manchester). Com essa formação e esse tipo de conhecimento, e residente naquele tipo de local, ele poderia adicionar uma dimensão única à sua reportagem contínua. Sua política era progressista e liberalizante, mas não - aparentemente - utópica e visionária.

No jornalismo da época nos estados alemães, alguém que pudesse escrever a partir dessa perspectiva modernizadora - que era a dos empresários-editores do jornal - era um ativo realmente valioso. E mesmo para os leitores que talvez não estivessem tão interessados nas políticas conflituosas da mudança social, escrever sobre viagens certamente podia ser agradável e, sem dúvida, ajudar a vender jornais. Viajar até a Inglaterra era raro, e os emigrantes que publicavam suas experiências como jornalismo refinado ainda mais raros.

O primeiro despacho de Engels, "The English View of the Internal Crises", observou a política inglesa para os leitores a partir de uma perspectiva experiencial, ou seja, sua experiência com as "classes dominantes inglesas, sejam da classe média ou aristocracia." Suas experiências com a aristocracia teriam sido mínimas, já que ele não tinha conexões com essas situações exclusivas. Mas para ele as classes médias são claramente comerciais e obviamente de interesse, e ele singulariza esse tipo ideal para seus leitores como "o inglês prático".

Este típico empresário vê a política "como uma questão de aritmética ou mesmo como um assunto comercial". Na opinião de Engels, essa indiferença ao mundo mais amplo de ideias, ou mesmo ao "estado precário do país", sustenta a segurança e a confiança calmas - "em meio à agitação da vida inglesa", como ele disse - que parece ímpar.

Claramente, Engels considera o comercialismo inglês uma força social impressionante, certamente em comparação com os medievalismos reacionários nos estados alemães, e bastante diferente do autoritarismo burocratizado prussiano. Nesse contexto, as mudanças modernizadoras - se houver - deveriam ser cuidadosamente determinadas e controladas dentro do estado monárquico não constitucional e confessional cristão.

A explosão política do cartismo na vida inglesa, e na época, muito nas ruas das grandes cidades, foi um movimento pelo "progresso legal" e sufrágio universal - o artigo, conforme editado pela censura, não explica as citações assustadoras de Engels sobre o progresso jurídico. A principal contradição, para Engels aqui, é aquela entre a agitação das massas pelo sufrágio universal (masculino) e a classe média e os beneficiários aristocráticos do status quo.

A partir de 1832, um parlamento mal reformado e, portanto, altamente não representativo, surgindo de um eleitorado e nobreza minúsculo e privilegiado (masculino), estava firmemente no controle, "sejam Whigs ou Tories" Escrevendo analiticamente, Engels comenta que o sufrágio universal (masculino), resultante de uma década de agitação cartista, acabaria com essa complacência e "resultaria inevitavelmente em uma revolução".

Turismo negro

Apenas dois anos depois, apenas completando vinte e quatro anos de idade, Engels embarcou em um livro completo a ser publicado em seu próprio nome. Ele foi contratado por um editor em Leipzig, no Reino da Saxônia, onde a censura e as condições políticas eram às vezes mais fáceis do que na Prússia. O volume do livro, "Die Lage der arbeitenden Klasse in England" ("A condição da classe trabalhadora na Inglaterra") teve o subtítulo "De observação pessoal". Mas o autor também acrescenta que escreveu de "fontes autênticas".

Engels terminou o manuscrito na primavera de 1845 e, enviando-o aos editores, deixou a cidade e foi para Bruxelas, a fim de se juntar a um círculo literário radical que se mudara para lá para escapar das ameaças e frustrações da repressão neomedieval na Prússia. O livro apareceu no verão.

Dirigindo-se aos trabalhadores da Grã-Bretanha, Engels apresenta seu livro como um retrato de seus "sofrimentos e lutas" para que seus "compatriotas alemães" tenham uma "imagem fiel" de sua condição. A seriedade de suas intenções, diz, pode ser vista no uso de "documentos oficiais e não oficiais", uma prática discursiva que os leitores de hoje reconheceriam.

No entanto, também escreveu não estar satisfeito com um "mero conhecimento abstrato do meu assunto". Na primeira pessoa ele diz:

Queria vê-los em suas próprias casas, observá-los em sua vida cotidiana, conversar com vocês sobre suas condições e queixas, testemunhar suas lutas contra os poderes sociais e políticos de seus opressores.

Esse conhecimento experiencial, relata Engels, também funciona politicamente de maneira oposta. Aludindo às suas experiências de jantares, vinho do Porto e champanhe em propriedades abastadas, que seus leitores da classe trabalhadora não teriam, ele parte de sua “ampla oportunidade de vigiar a classe média” para justificar sua conclusão : "Vocês [trabalhadores britânicos] estão certos, perfeitamente certos em não esperar qualquer apoio deles." Segue-se uma série de perguntas retóricas expondo a hipocrisia das classes confortáveis.

Sua evidente intenção era ir além das notícias e reflexões do dia para algo muito mais sinótico e  em termos metodológicos - eclético. Para leitores de língua alemã, o gênero do livro é algo alinhado ao "turismo negro", ou seja, textos de viagens que levam o leitor a um lugar chocante. E, como diz Engels, para leitores de língua inglesa é um alerta. Ele deixa claro que os ingleses deveriam considerar a situação uma desgraça nacional que requer uma ação política transformadora por parte do estado.

"A guerra de cada um contra todos"

Os capítulos de abertura históricos são necessariamente escritos a partir de fontes publicadas sobre a história inglesa e geografia da paisagem, após o que o leitor viaja para “The Great Towns”, principalmente Londres e Manchester. É aqui que a observação pessoal se torna convincente.

Por um lado, o autor-observador dá-nos um panorama do porto de Londres: docas gigantes, incontáveis navios, centenas de vapores. “Um homem não consegue se recompor, mas está perdido na maravilha da grandeza da Inglaterra.” Mas quão bom é? Os londrinos “foram forçados a sacrificar as melhores qualidades de sua natureza humana”, tratando uns aos outros com indiferença brutal, um isolamento insensível no interesse privado, descarados e constrangidos. O “único acordo é o tácito, que cada um fique do seu lado da calçada”.

Isso é claramente observacional. O seguinte é experiencial: “As pessoas se consideram apenas como objetos úteis.” Aqui seu comentário adicional é abstratamente filosófico: a humanidade é dissolvida “em manadas, das quais cada uma tem um princípio separado”, há uma “guerra social, a guerra de cada um contra todos” e “o mais forte pisa o mais fraco sob os pés.” Claro, esses eram lugares-comuns, pelo menos nos círculos liberalizantes, em vez de referências filosóficas. Mas então esse era o ponto – inteligibilidade pronta e persuasão eficaz.

A mensagem era que, independentemente de classe e posição política, nessas multidões, todos “são seres humanos com as mesmas qualidades e capacidades, e com o mesmo interesse em ser felizes”. Contrariando os medievalismos hierárquicos dos estados alemães, esta é uma noção incendiária de equalização e uma abolição de privilégios de “nascimento” e “posição” e, portanto, de toda a “ordem” social.

Às vezes, a observação e a citação funcionam em conjunto. Engels identifica a Portman Square, no West End de Londres, como “muito respeitável”, mas ele pega um inquérito do legista que ilustra a proximidade de ricos e miseráveis em bairros residenciais.

Miséria escondida

Quando Engels e seus leitores chegam às cidades ao redor de Manchester, a “cidade central” do sul de Lancashire, o “solo clássico” da manufatura inglesa, os detalhes de observação na narrativa se tornam explícitos. Levando-nos a Stockport, Engels diz: “Não me lembro de ter visto tantos porões usados como moradias em qualquer outra cidade deste distrito.” E em Ashton-under-Lyne, ele diz que viu “ruas em que as casas estão ficando ruins, onde os tijolos das casas não são mais firmes, mas se movem, as paredes têm rachaduras.”

Nessas discussões, Engels inclui seus próprios desenhos de linha que ilustram os padrões de desenvolvimento desordenados, irracionais e não planejados na Cidade Velha de Manchester; a construção de “tribunais” sem ar entre os edifícios que foram construídos em linhas regulares; moradias construídas lado a lado; até métodos de corte de custos de alvenaria de má qualidade; e seu próprio mapa-guia detalhado de distritos, vias artificiais, canais, rios e ferrovias.

Mas nem tudo é miséria. Em contraste, fazemos um tour para ver “belos jardins amplos com soberbas casas”. Foram geralmente construídas no período elisabetano, isto é, no estilo Tudor falso, que, Engels diz, “é para o gótico exatamente o que a Igreja Anglicana é para o Católico Apostólico Romano”. O que interessa particularmente a Engels, e o que sua sensibilidade de observação busca, é a hipocrisia. Desta vez, é no ambiente construído, ao invés de apenas na fala ou atitude:

A cidade é peculiarmente construída para que uma pessoa possa viver nela por anos, entrando e saindo diariamente sem entrar em contato com um bairro operário ou mesmo com trabalhadores.

Os bairros dos trabalhadores são “nitidamente separados” das seções “reservadas para a classe média” ou escondidos entre as residências e lojas de classe alta. A “alta e média burguesia” vive fora do “cinturão” dos bairros da classe trabalhadora em “ruas regulares” ou “alturas arejadas”. Rotas de ônibus – cheias de lojas – mantém a miséria fora de vista:

E a melhor parte do arranjo é que os membros dessa aristocracia do dinheiro podem pegar o caminho mais curto pelo meio de todos os distritos de trabalho até seus locais de negócios.

Eles podem fazer isso "sem nunca ver que estão no meio da miséria suja que se esconde à direita e à esquerda".

A época industrial

Analiticamente, o que chama a atenção nessa narração é que Engels faz o leitor entender que "tudo o que aqui desperta horror e indignação é de origem recente [e] pertence à época industrial".

O livro atraiu atenção e notoriedade na época na imprensa de língua alemã, mas também muito mais amplamente e para o leste na Rússia czarista. Uma resenha de uma obra em língua estrangeira em um lugar tão distante, e em um assunto tão recôndito como a industrialização, poderia passar pelas censuras severas, mas bastante literais da época.

Um esquema para organizar a sociedade de alguma outra forma não está presente no texto; o mais próximo que o autor chega de tal visão transformadora é o longo capítulo sobre movimentos dos trabalhadores, cartismo e socialismo. Para Engels, os cartistas são indiferentes ao caráter essencialmente de classe de seu movimento – que defendia o sufrágio universal (masculino) e a reforma parlamentar. Dessa forma, e na visão de Engels, eles perderiam a questão do “garfo e faca” colocada pela precariedade industrial e o sofrimento da classe trabalhadora.

Como crítico político, ele explica que os socialistas são dogmáticos em seus princípios e, portanto, perdem o caráter progressista do desenvolvimento industrial e da miséria da classe trabalhadora. O verdadeiro “socialismo proletário” deve passar pelo cartismo, diz ele, “purificado de seus elementos burgueses”, chegando assim a uma “união”.

Quase ninguém, em inglês ou alemão, poderia realmente se conectar com a crítica de Engels à modernidade industrial. Isso porque não expõe em nenhum lugar visões religiosas ou utópicas, que eram um gênero facilmente inteligível na época. Nem presume que a liberalização da democracia por si resolverá a pobreza moderna por meio de reformas progressistas.

Sua escrita equilibra o toque humano da observação, mesmo que não o seu, com a visão geral do geógrafo dos sistemas físicos de produção e distribuição e a análise dos economistas políticos da sociedade em produtores da classe trabalhadora e consumidores da classe média. A geografia urbana com consciência de classe é, até certo ponto, sua invenção, embora ele raramente receba o crédito.

As leis da propriedade privada

Em vez de produzir mais esclarecimentos sobre os fatos das condições sociais inglesas, a abordagem seguida por Engels foi resumir a economia política inglesa (embora mais propriamente britânica, para incluir os escoceses). Na época, a economia política, como ciência francesa e britânica da política econômica nacional, não era desconhecida nos círculos intelectuais alemães, mas estava em processo de recepção. A principal autoridade sobre o assunto era Friedrich List, um escritor político de mentalidade liberal que apoiava uma união aduaneira alemã, ou Zollverein e, portanto, o livre comércio dentro de uma estrutura estatal nacional. Em seu “Kritik der Nationalökonomie” (“Esboços de uma crítica da economia política”), Engels necessariamente aludiu ao “Das nationale System der politischen Ökonomie” (“Sistema Nacional de Economia Política”) de List, embora de duas maneiras: por assunto, e então por crítica filosófica. A palavra Kritik no título sinalizou essa abordagem germânica familiar. Claro, o que o título de Engels não disse é que se tratava de uma crítica comunista. A peça “Esboços” é redigida como um ensaio, evidentemente para inclusão em uma publicação comunista. A primeira tacada de Engels em seus “Esboços” não foi apenas uma expressão direta do comunismo / socialismo – provavelmente ecoando as palestras que ele tinha ouvido em Manchester de agitadores e organizadores socialistas – mas também um golpe direto na defesa de List do mercantilismo centrado no estado-nação:

A economia política surgiu como... um sistema desenvolvido de fraude licenciada... nascido da inveja e ganância mútua dos mercadores... As nações se enfrentaram como avarentas... olhando seus vizinhos com inveja e desconfiança.

O moderno “sistema de livre comércio”, baseado na “Riqueza das Nações” de Adam Smith, “se revela” – por meio das habilidades analíticas e críticas de Engels – como hipócrita, inconsistente e imoral. “Assim como a teologia deve regredir à fé cega ou progredir em direção à filosofia livre”, escreve, “o livre comércio deve produzir a restauração dos monopólios de um lado e a abolição da propriedade privada do outro”. Além disso, ele conclui, quanto mais próximos de seu próprio tempo esses economistas modernos estão, “mas eles se afastam da honestidade” e mais eles descem ao sofisma.

“O único avanço positivo que a economia liberal fez”, afirma, é “a elaboração das leis da propriedade privada”. Estas não foram totalmente elaborados e claramente expressas, daí sua crítica. Ele diz que em “uma questão de decidir qual é o caminho mais curto para a riqueza”, os economistas políticos “têm o direito do seu lado”. O que eles não fazem, e o que ele promete fazer, é “descobrir a contradição introduzida pelo sistema de livre comércio”.

Engels prevê isso explicando que os economistas políticos escrevem a partir da perspectiva dos consumidores, e não dos produtores. Desse ponto de vista, eles "proclamaram que o comércio é um vínculo de amizade e união entre as nações, assim como entre os indivíduos". Mas, em contraste com essa "falsa filantropia", as premissas da economia política, fundadas na propriedade privada, reafirmam-se nos fatos da industrialização: a teoria malthusiana da população e a "escravidão moderna" do sistema fabril.

Dissipando a névoa

O projeto em “Esboços” é dissipar a névoa de ofuscação, auto interesse hipócrita e deslocamento moralizante que subjaz às teorizações da economia política. Para fazer isso, Engels examina “as categorias básicas” – elas são tão “certas” quanto “contraditórias”, diz. No entanto, eles são importantes para seus leitores e, como ele prevê, para a humanidade.

Ele rejeita vigorosamente os termos de enquadramento anteriores para a ciência: riqueza nacional (como no mercantilismo), economia nacional (como na economia liberal de List, mas ainda nacionalista), até mesmo economia política ou pública. Em um breve resumo, ele rebatiza todo o estudo como “economia privada” porque “suas conexões públicas existem apenas para o bem da propriedade privada”.

Os “Esboços” então conduzem o leitor por este estudo político-econômico moderno, categoria por categoria: comércio, valor, aluguel, capital, salários. Engels conclui que temos “dois elementos de produção em operação”. Estes são “natureza e homem, com o homem novamente ativo física e mentalmente.” A atividade humana, por sua vez, é “dissolvida em trabalho e capital”. Fragmentos de propriedade privada “cada um desses elementos”.

Em outras palavras, ele conclui, “porque a propriedade privada isola todos em sua própria solidão grosseira” e “porque, no entanto, todos têm o mesmo interesse que seu vizinho, um proprietário de terras se confronta antagonistamente com outro, um capitalista com outro, um trabalhador por outro.” Portanto, nesta “discórdia de interesses idênticos” está “consumada a imoralidade da condição da humanidade até agora.” E essa consumação é competição. A competição pressupõe o seu oposto, o monopólio, que se constitui através da propriedade privada, porque só a partir dessa base pode existir. “Que meia-medida lamentável, portanto, atacar os pequenos monopólios e deixar intocado o monopólio básico!”

Depois disso, Engels assume a demanda, a oferta e os preços. Este relato descritivo e crítico moralizado derivam de suas experiências comerciais em Bremen e Manchester e não soam particularmente estranhos hoje: “O especulador sempre conta com desastres… ele utiliza tudo ”, até mesmo desastres e catástrofes. Assim, “o ponto culminante da imoralidade é a especulação na Bolsa de Valores” porque é aí que “a humanidade é rebaixada a um meio de satisfazer a avareza do especulador calculista ou do jogo”. E não deixe o comerciante “respeitável” honesto se elevar acima do jogo na Bolsa de Valores, diz Engels – sempre aquele que se lança em hipocrisias egoístas – ele “é tão ruim quanto os especuladores de títulos e ações”.

Em comum com a economia política da época, Engels escreve que o sistema competitivo de produção de commodities resultará em crises periódicas de superprodução e subconsumo. Nesse caso, algumas pessoas morrerão de fome em meio a bens não vendidos e estocados e capacidade produtiva subutilizada, enquanto outras ficarão mais ricas ou manterão sua riqueza tirando proveito da escassez.

Essa situação desumana, ele escreve, não será resolvida por meio de políticas destinadas a reduzir as populações trabalhadoras e consumidoras, como os malthusianos recomendavam. Essas ideias eram então atuais como a panaceia para curar a pobreza e, portanto, topicamente de interesse para os leitores de Engels. Mas também há acordes no texto de Engels com apelo mais contemporâneo. Ele escreve uma ladainha:

Nenhum capital pode suportar a competição de outro se não for levado ao mais alto nível de atividade.

Nenhum pedaço de terra pode ser cultivado com lucro se não aumentar continuamente sua produtividade.

Nenhum trabalhador pode enfrentar seus concorrentes se não dedicar toda a sua energia ao trabalho.

Ninguém que entra na luta da competição pode resistir.

Sua conclusão é que a sobrevivência neste reino de competição desumana derrota "todo propósito verdadeiramente humano".

Engels então promete a seus leitores um tour pelo sistema fabril britânico e um relato histórico de seu desenvolvimento, obviamente com a intenção de alertar a seus leitores alemães de seu destino. E – Como fica evidente em seus comentários ao longo dos anos – ele visa antecipar e prevenir as catástrofes sociais que surgirão em circunstâncias já presentes.

Marx depois de Engels - Engels depois de Marx

Karl Marx ficou eletrizado. Ele imediatamente esboçou um "Resumo" da crítica de Engels, seguindo de perto sua apresentação das categorias econômicas. Quando Engels passou por Paris em seu retorno para Manchester, para o QG da família em Barmen, ele procurou novamente revisitar o antigo coletivo da "Rheinische Zeitung". Nas conversas ali, parece que Marx tomou a iniciativa de propor uma colaboração entre os dois.

Seu plano era um ataque polêmico aos "críticos", que - dentro desses círculos de Jovens Hegelianos - eram para ele insuficientemente radicais. Suas confusões políticas resultaram de suas confusões filosóficas e seu fracasso em levar a crítica da religião de Ludwig Feuerbach à conclusão lógica e totalmente política do ateísmo. Engels começou com três capítulos, seguidos por um quarto com seções de autoria separada.

Depois disso, e com a ausência de Engels, tendo voltado para a casa de Barmen, a caneta hábil de Marx fugiu com o restante do panfleto planejado e o transformou em um livro extenso. Em correspondência, Engels queixou-se de que ficou bastante perplexo com isso. No entanto, fica claro na página de rosto que ele era o autor principal, o que certamente estava certo pela reputação e experiência. Marx estava quilômetros atrás: apenas algumas dúzias de itens genuinamente publicados, a maioria em seu próprio jornal, e todos bastante breves, nada nem mesmo tão longo como um panfleto.

As edições modernas de obras coletadas complementam esse período na lista de obras de Marx com materiais manuscritos publicados postumamente, de modo que o contraste é menos óbvio. E essas edições também geralmente disfarçam a situação do autor principal, apresentando "A Sagrada Família" como um livro de "Marx e Engels". Esta pequena falsificação segue teologicamente de uma muito posterior narrativa sobre o caráter originário e duradouro de sua parceria. Certamente Engels desconhecia essa narrativa na época, como todo mundo.

Mas já tivemos um sinal de que o jovem Friedrich está "desaparecendo" na sombra do intelecto mais dominante, embora escritor muito menos bem-sucedido, em termos de publicações e reputação. Escrevendo a Marx em uma carta datada de 22 de fevereiro a 7 de março de 1845, Engels exclama de Barmen: "A crítica ainda não chegou!" Este é o panfleto que eles concordaram em publicar juntos, embora evidentemente não escreveram juntos. Cada um deles contribuiu com seções de capítulos assinadas e criadas separadamente.

Engels continua: "Seu novo título, 'Die heilige Familie' ('A Sagrada Família'), provavelmente me deixará em apuros com meu pai piedoso e já muito irritado, embora você, é claro, não pudesse saber disso." Essa observação parece indevidamente deferente. Afinal, Marx certamente poderia ter sabido ou adivinhado quais seriam as consequências familiares para seu coautor em um estado e localidade repressivamente cristãos, mesmo que alguns membros iluminados de seu próprio círculo familiar considerassem tal blasfêmia divertidamente inconsequente.

Engels então diz: "Vejo pelo anúncio que você colocou meu nome em primeiro lugar". Isso parece, novamente, respeitoso e falso – para Marx, o raciocínio teria sido óbvio. "Por quê?" Engels pergunta. "Não contribuí com praticamente nada e qualquer um pode identificar o seu estilo." Marx realmente fugiu com o projeto, e Engels está lhe dando licença para fazer isso e assumir a liderança.

Outros deixaram a companhia de Marx, de uma forma ou de outra. Engels, não. Aufwiedersehen dem Jüngling. Adeus a Engels antes de Marx.

Colaborador

Terrell Carver é professor de teoria política na Universidade de Bristol, cujos trabalhos incluem The Postmodern Marx and Engels: A Very Short Introduction.

Força da narrativa de Bolsonaro sobre Covid-19 indica que tormento não vai passar tão cedo

Para grupo de análise de conjuntura, bases do Brasil como nação se tornaram ainda mais frágeis com a pandemia

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)


[RESUMO] Intelectuais revisitam projeções sobre o futuro do bolsonarismo feitas no início da pandemia e apontam fatores estruturais e conjunturais que levaram o discurso negacionista do presidente sobre o coronavírus a prevalecer.

*

I

Até o momento, o governo de Jair Bolsonaro passa de modo relativamente confortável pelo enorme desafio representado pela pandemia do novo coronavírus. Como explicar que, frente a uma catástrofe humana que ultrapassa 150 mil mortesBolsonaro ainda conte com apoio da ordem de 40% junto à opinião pública?

Em 24 de abril passado, publicamos na Ilustríssima um artigo sobre os potenciais efeitos da pandemia no futuro do bolsonarismo, examinando as oportunidades que então se abriam para a oposição. Convém fazer agora um balanço das projeções ali realizadas.

No texto original, dissemos que o governo e, mais amplamente, o bolsonarismo enunciavam um projeto autoritário que se tornava cada vez mais explícito. Lembramos que o caso do Brasil se inseria em um movimento mundial de deterioração democrática, para o qual a pandemia se tornava álibi, como no caso, por exemplo, do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.


Contudo, o presidente do Brasil não vinha usando o combate à Covid-19 como pretexto para reforçar o Poder Executivo. Ao contrário, decidira questionar a importância da doença.

Bolsonaro ampliou o ataque às instituições pela via do negacionismo, refutando os enormes riscos à saúde pública trazidos pelo vírus e travando uma guerra contra outros atores estatais e Poderes constitucionais, especialmente órgãos técnicos federais e governadores pró-medidas de isolamento social.

A questão fora colocada em termos dicotômicos: era preciso escolher entre o combate à provável morte física pela doença e a luta contra o inevitável óbito econômico decorrente das recomendadas medidas de isolamento. O presidente optou claramente pela segunda e apareceu como defensor irrestrito (e quase único) do emprego e da renda da população, imagem continuamente sustentada pelo mantra do direito de ir e vir, de trabalhar etc.

À época, avaliamos que essa seria uma estratégia de alto risco, ainda que condizente com a postura belicosa e polarizante do atual mandatário. O risco elevado devia-se ao quadro catastrófico previsível, com a doença se espalhando rapidamente, o sistema de saúde em várias regiões próximo ao colapso e o negacionismo presidencial dificultando, quando não impossibilitando, a coordenação das políticas públicas necessárias.

Observamos que tal situação abria uma janela de oportunidade para a luta da oposição contra o projeto autoritário de Bolsonaro: dado que o vírus é um inimigo invisível e que a luta contra ele só é eficaz se for coletiva, a situação trazia o potencial de colocar em destaque afetos e valores antagônicos à corrente ideológica encarnada pelo presidente, como solidariedade e espírito de comunidade, além de requerer um modelo de Estado oposto àquele defendido pelo governo, sobretudo no plano econômico.

Localizamos aí uma vulnerabilidade crucial do bolsonarismo: a pandemia demandava um Estado forte de um governo cujo ministro da Economia pregava o Estado mínimo, quando não, em determinadas áreas, o próprio fim do Estado.

II

O que vimos acontecer? Bolsonaro jogou simultaneamente em duas posições opostas: de um lado, adotou —ainda que, em parte, por pressão da sociedade civil repercutida no Poder Legislativo— importantes medidas emergenciais de sustentação de emprego e renda; de outro, continuou a reforçar, via Paulo Guedes, a realização das reformas estruturais liberais programadas, que desidratam a capacidade do Estado de enfrentar crises.

Na verdade, a pandemia, ao jogar para segundo plano, mesmo que momentaneamente, os impasses da política econômica, criou uma janela de oportunidade favorável ao governo, diferente da que esperávamos. Com a aprovação, pelo Congresso, do estado de calamidade e do chamado orçamento de guerra, criou-se a chance de o governo efetuar concessões reais à população, sem que isso significasse um rompimento com o mercado.

A aprovação do auxílio emergencial trouxe um aporte de renda da maior importância para os estratos carentes da população durante uma das maiores quedas econômicas da nossa história. O benefício, que foi prorrogado até o fim de agosto e reduzido pela metade entre setembro e dezembro, chegou a mais de 65 milhões de pessoas (um terço da população), tendo sido o principal responsável por atenuar a queda prevista do PIB brasileiro de 2020, mesmo se comparada com a recessão projetada em países que obtiveram sucesso em controlar a enfermidade.

O volume de recursos destinados ao programa, considerados apenas os três primeiros meses de vigência, ultrapassou o valor anual do Bolsa Família, compensando o aumento das desigualdades nas rendas do trabalho em meio à grande perda de empregos.

O expressivo ganho de popularidade do presidente junto aos setores mais carentes da sociedade, decorre, ao que tudo indica, da concessão do auxílio emergencial. Essa alteração acabou compensando a perda de apoio sofrida junto às camadas de renda mais elevada, resultante do negacionismo e dos péssimos resultados do governo no enfrentamento da doença, podendo também ter tido peso aí os problemas policiais da família Bolsonaro e a saída de Sergio Moro do cargo de ministro da Justiça.

Bolsonaro percebeu o impacto positivo de robustos programas de transferência de renda. Insistiu, por isso, na criação do Renda Brasil, um Bolsa Família algo mais generoso e de maior escopo. No entanto, em cenário dominado pelos humores do mercado, com seus agentes ainda vendo em Guedes um emissário no Poder Executivo, e com o andamento das políticas governamentais em uma conjuntura pós-pandemia, amarrado pelo teto de gastos, Bolsonaro viu-se obrigado a abrir mão do projeto.

O capítulo mais recente da novela, com o tumultuado anúncio do Renda Cidadã, não mudou nada, pois a fonte de financiamento do “novo” programa continua a ser vista pelo mercado financeiro como simples manobra para furar o teto.

O involuntário sucesso do governo no plano da política econômica durante a pandemia e os desafios agora enfrentados para manter uma versão desidratada de auxílio emergencial confirmam nosso diagnóstico de fins de abril, de que os desafios colocados no plano econômico constituem a principal encruzilhada do atual governo.

Sem estado de calamidade e sem orçamento de guerra, a combinação de qualquer programa musculoso de transferência de renda com o teto de gastos é uma impossibilidade, a menos que outros direitos sociais sejam retirados ou reduzidos. Este pode vir a ser, de fato, o caminho escolhido, apesar de não significar a resolução do problema.

De todo modo, o perfil ultraliberal do governo apresenta sua conta —vide a proposta de Orçamento do Ministério da Economia para 2021, que não deixou qualquer espaço para uma expansão de gastos em áreas com enormes desafios, como saúde e educação—, o que só aguça o dilema entre agradar ao mercado ou à nova base social que o bolsonarismo quer conquistar.

III

Mas se acertamos na indicação de que os impasses postos pela adoção de uma política ultraliberal deveriam se aguçar com o agravamento da situação econômica provocado pela pandemia, a quantidade impressionante de mortos pela Covid-19, que ainda cresce dia a dia, colocando o Brasil como contraexemplo internacional do que deve ser feito, não parece ter provocado os estragos que vislumbrávamos, seja em relação à comoção fruto do desastre, seja em relação à própria popularidade do presidente. Por quê?

Uma primeira e importantíssima hipótese, como já antecipado, relaciona-se ao papel decisivo do auxílio emergencial para a minimização dos impactos da crise sobre as camadas mais carentes da população, que são também as mais afetadas pela informalidade nas relações de trabalho. Outras medidas do governo aprovadas pelo Congresso, como o benefício para a manutenção do emprego e da renda de trabalhadores formais, também podem ter influenciado no mesmo sentido.

Uma segunda hipótese está ligada à mudança de postura de Bolsonaro, agora de caráter mais acomodatício frente a forças políticas tradicionais.

No meio da pandemia, em meados de junho, a prisão de Fabrício Queiroz e o avanço no inquérito sobre fake news emudeceram os constantes ataques de Bolsonaro aos poderes constituídos, forçando-o a uma aliança com o pântano político conhecido como centrão. Sem essa reconciliação com suas origens políticas, os inúmeros processos de impeachment na Câmara poderiam vir a prosperar, já que o governo, até então, não havia formado base parlamentar consistente.

Por fim, no início de julho, para a sua própria sorte, Bolsonaro foi forçado a se isolar por cerca de duas semanas após ter contraído o coronavírus, tendo saído do confinamento com postura mais contida e aparentemente mais próxima ao centrão. O afastamento de Moro e o desmonte da Lava Jato promovido pela Procuradoria-Geral da República, em conjunto com a indicação de Kassio Nunes para o STF (Supremo Tribunal Federal), representam o coroamento dessa aliança.

Enfim, a mudança de estratégia a partir de meados de junho trouxe à tona novela conhecida e perigosíssima: a normalização do presidente junto aos meios políticos e à grande imprensa.

As elites conservadoras podem até torcer o nariz para Bolsonaro e para seu jeito grosseiro, vulgar e brigão (da mesma forma como a aristocracia e elites econômicas da Itália dos anos 1920 se comportaram com Mussolini), mas isso não basta para que se unam com o fito de derrubá-lo, como fizeram com Dilma, ainda mais agora que o presidente mostra-se, mesmo que temporariamente, dócil com o sistema político.

Os chamados por união nacional que proliferaram no auge da pandemia no Brasil não visavam de fato um impeachment, mesmo se evidências materiais contra Bolsonaro existissem abundantemente.

Na verdade, essas conclamações e o próprio cabedal de provas de crime de responsabilidade serviram, junto com Queiroz, inquérito das fake news et caterva como peças adicionais para a renegociação dos sistemas de partilha de poder no interior do Estado brasileiro e para a enésima tentativa de "domesticação" de Bolsonaro. Tudo isso, claro, visando evitar qualquer possibilidade de a esquerda disputar o poder novamente.

Em suma, o andar de cima teme mais o retorno da esquerda que o aprofundamento do autoritarismo por meio do fascismo à brasileira de Bolsonaro.

Porém, esses elementos —do auxílio emergencial à normalização do presidente— são fatores conjunturais no quebra-cabeça. Apesar de terem seu peso, certamente não dão conta do fenômeno como um todo. Por isso, arriscamos, a partir daqui, sugerir algumas outras hipóteses ancoradas, desta feita, em elementos de ordem estrutural.

Um primeiro elemento está relacionado à postura antissistema de Bolsonaro, que data de muito antes da pandemia e que o presidente soube instrumentalizar ao colocar-se em oposição às medidas de isolamento social (suposto autoritarismo dos governadores e de órgãos técnicos), posando, ao mesmo tempo, de paladino das liberdades individuais.

Ademais, o fato de Bolsonaro ter aparentado defender sozinho o emprego e a renda da população, apagando o importantíssimo papel do Congresso na aprovação das medidas emergenciais, reforçou o mito do “salvador acorrentado”, refém de instituições corruptas e antinacionais —dos governadores ao STF, do Parlamento ao próprio Ministério da Saúde.

Em paralelo, a renitente negação da gravidade da doença trouxe à tona elementos intrínsecos ao bolsonarismo, que têm raízes na tradição fascista brasileira, como a glorificação da violência, o desprezo aos fracos e a destruição da solidariedade social genérica.

Porém, a força desses componentes ideológicos não pode ser sobre-estimada. Em princípio, eles teriam eco apenas no núcleo duro do bolsonarismo, a parcela de aproximadamente 12% da opinião pública que apoia o presidente de forma quase incondicional, tal como detectado pela análise dos dados da pesquisa Datafolha.

Para ir além desse plano, é preciso trazer à cena outra marca estrutural e substantiva da sociedade nacional: a clivagem entre as classes no Brasil, onde a socialização dos estratos médios e altos se dá em um espaço hierárquico muitos graus acima do das camadas pobres, o que pode ter produzido angústias e dilemas bem diferentes frente à pandemia.

Enquanto o primeiro grupo temeu principalmente a morte pela doença, o segundo (sem deixar de temer a própria doença, é claro) parece ter receado, principalmente, a completa destituição econômica em virtude das medidas de isolamento —o que, evidentemente, reforça o significado que veio a ter, junto aos segmentos de baixa renda, a concessão do auxílio emergencial.

A primazia conferida ao agravamento da situação material, ao invés de à ameaça representada pelo vírus, pode estar associada ao fato de a experiência da morte violenta ser uma contingência desde sempre presente no cotidiano dos segmentos populares no Brasil.

Se a morte pela doença assusta e fragiliza as classes médias e altas, essa é só uma possiblidade dentre várias às quais as populações periféricas, em geral negras, são constantemente submetidas no seu cotidiano, repleto de violência criminal e brutalidade policial. Dessa forma, quando Bolsonaro reage à pandemia com o discurso do “e daí?”, do “não sou coveiro”, e do “todo mundo morre um dia”, talvez esteja ressoando a dura experiência presente no dia a dia de parte significativa da população.

Na análise desse fenômeno da “naturalização” das mortes, é imperativo considerar o fator racial. Como demonstram estudos abalizados, o racismo não é um corpo estranho ou um componente exterior da formação social brasileira; pelo contrário, é historicamente um dos elementos organizadores de nossa sociabilidade, em seus aspectos ideológico, jurídico, político e econômico.

Assim, uma hipótese plausível para a indiferença em relação às mortes no Brasil pode estar no fato de o racismo estrutural conter uma dimensão ideológica, cuja análise é fundamental para a compreensão de como a violência se normaliza no cotidiano.

É por meio da produção de um imaginário social racista, disseminado pelos meios de comunicação de massa, pelo sistema educacional e pela cultura popular (negros são representados de forma subalterna ou como criminosos), que a atuação violenta das instituições e a desigualdade econômica ganham sentido, justificação e até racionalidade.

Em consequência, ao invés de evidenciar o caráter insuportável do permanente extermínio das camadas vulneráveis da população, sobretudo negros, a situação criada com a pandemia permitiu que Bolsonaro utilizasse a seu favor essa normalização aberrante. Não se sabe até que ponto tal comportamento derivou de um cálculo estratégico ou se igualmente foi mero acerto involuntário, mas é preciso conferir peso a esse fator.

Vale notar ainda que a insistência do governo em tratar a pandemia como uma “questão privada”, como algo que “cada indivíduo” deveria cuidar, e não como uma questão coletiva, compartilhada, de vida comum, converge com a política de produção de indiferença social, que é elemento fundamental do bolsonarismo e que, no caso específico da catástrofe da pandemia, traz consigo a completa ausência de luto coletivo, de dolo e de comoção que a situação de mais de uma centena de milhares de mortos naturalmente tenderia a provocar.

Na mesma chave, cabe chamar a atenção para a congruência da narrativa presente no discurso privatista, seja com o ideário neoliberal e a importância aí conferida ao indivíduo, à meritocracia e ao empreendedorismo, seja com o contexto da teologia da prosperidade neopentecostal, cada vez mais disseminada, que valoriza a manifestação da graça na satisfação de desejos de proteção e de prosperidade individual.

Por fim, lembremos que o fenômeno não é exclusivo do Brasil. Nos Estados Unidos, Donald Trump exibe a mesma postura negacionista, de defesa da liberdade econômica e de contrariedade com as políticas de isolamento —não por acaso, até o momento, EUA e Brasil são, em termos absolutos, o primeiro e o segundo países do mundo em número de mortos e o primeiro e o terceiro em número de infectados pelo novo coronavírus. No entanto, os presidentes de lá e de cá mostram surpreendente resiliência junto a cerca de 40% do eleitorado.

Uma análise comparativa dos efeitos da pandemia implicaria examinar a gestão sistêmica da economia e política mundiais em contexto de predomínio de valores e práticas neoliberais, o que não temos espaço para desenvolver aqui.

Incluem-se nesse âmbito temas como o desgaste do potencial de moderação das democracias liberais e o enfraquecimento de instituições como partidos, sindicatos e movimentos sociais, a desorganização das classes e do mundo do trabalho, com o deslocamento de empresas para o setor de serviços, e a disseminação de atividades informais, intermitentes, uberizadas e de alta rotatividade.

A menção a resultados semelhantes no Brasil e nos EUA, a nação mais rica e poderosa do planeta, parece suficiente, no entanto, para perceber que o fenômeno brasileiro está ancorado em transformações de monta, que atingem globalmente a economia e a sociedade modernas.

Em resumo, por força de razões conjunturais e estruturais, a narrativa de Bolsonaro de que seria preferível a (provável) morte física à (certa) morte econômica acabou por prevalecer. Isso ajuda a explicar por que o gesto contundente e decisivo das forças oposicionistas, conclamado no artigo original que escrevemos, acabou não ocorrendo.

É preciso igualmente reconhecer que não se consumou a expectativa de que a necessária solidariedade, exigida pelo enfrentamento de uma crise de saúde pública de tamanha gravidade, fosse colocar a nu o desprezo pela vida humana inscrito na estratégia negacionista de Bolsonaro.

Em meio ao despontar de elementos fascistas que estamos presenciando, o estoque de solidariedade da sociedade brasileira parece estar muito rebaixado, existindo apenas local e pontualmente, no interior de determinadas comunidades; não, porém, na amplitude e profundidade que a situação exige.

Não cremos estar muito longe da verdade se afirmarmos, neste ponto, que os fundamentos constitutivos do país como nação, que nunca foram muito firmes, a começar da clivagem de partida constitutiva da escravidão e do racismo que nos marca histórica e politicamente, vão se tornando ainda mais frágeis neste período de ascenso de valores fascistas e de eleição de inimigos internos.

IV

Quais lições podemos tirar da pandemia e dos efeitos políticos do negacionismo de Bolsonaro? A primeira é que dilema econômico do governo foi temporariamente afastado, mas de forma alguma extinto. O impasse entre teto de gastos e políticas neoliberais versus programas consistentes de transferência de renda é cristalino, e tende a estar presente no próximo ano, com o fim do auxílio emergencial, do estado de calamidade e do orçamento de guerra.

Não estando primordialmente na pandemia, a arena de luta deverá fixar-se na bomba-relógio econômica e social representada pelas consequências do fim do auxílio emergencial, conjugado a um contexto de desemprego recorde, economia letárgica e milhares de empresas e empreendimentos destruídos, muitos dos quais sem possibilidade de se reerguer, mesmo com a plena normalização das atividades.

A segunda é que as oposições de modo geral não se mostraram preparadas para enfrentar um tipo de fenômeno como o bolsonarismo, que se revela, depois de oito meses de pandemia, mais profundo e complexo do que se poderia imaginar.

Considerando que a crise sanitária ainda é uma triste realidade para milhares de brasileiros e que a evolução da doença segue envolta em incógnitas, não é de pouca importância a prevalência da narrativa presidencial quanto à necessidade de evitar a morte econômica mais do que combater o vírus.

Em vista do cansaço da sociedade com a quarentena e da possibilidade de vacina nos próximos meses, o campo de luta da oposição tenderá a deixar de fora a pandemia, mas isso não significa que se deva negligenciar os fatores estruturais e conjunturais discutidos acima que contribuíram para a vitória da narrativa bolsonarista.

Dada a clara intenção de ter algum programa que amorteça efeitos potencialmente devastadores para sua popularidade de uma crise econômica pós-pandemia e diante das restrições que o governo enfrenta junto ao mercado para se livrar do teto de gastos, é possível que Bolsonaro aprofunde a estratégia de compensar o gasto adicional com um desmonte mais completo das estruturas de políticas públicas e a redução de direitos constitucionalmente consignados.

Se a estratégia vingar, estarão abertos os caminhos de uma aliança mais duradoura de forças conservadoras, tendo por pivô um líder autoritário de extrema direita que, mantendo bons índices de popularidade e aparentando observar as regras do jogo democrático, prosseguirá no trabalho de corroer pouco a pouco os alicerces da democracia.

Contudo, não se pode descartar um cenário com bem menos margem a eufemismos, no qual a redução de direitos em proveito de uma política de transferência de renda, combinada com uma crise econômica profunda após a pandemia, lance lenha na fogueira do conflito social intraclasse, a opor trabalhadores que vivem na informalidade àqueles que detêm direitos trabalhistas, tachados de privilegiados.

Essa segunda possibilidade, ao contrário da anterior, pressagia situação de altíssima instabilidade política. A história do século 20 nos ensina que conjunturas similares raramente favorecem as forças democráticas e de esquerda. Dependendo das alternativas disponíveis, pode até mesmo reaguçar o ferrão fascista que o bolsonarismo carrega consigo.

Sobre os autores

André Singer é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP.

Cicero Araújo é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP.

Felipe Loureiro é professor associado do Instituto de Relações Internacionais da USP.

Laura Carvalho é professora associada do Departamento de Economia da USP.

Leda Paulani é professora titular do Departamento de Economia da USP.

Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da USP.

Silvio Almeida é professor da Fundação Getulio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.

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