A política de reconstrução imperial.
Wolfgang Streeck
Tradução / Se alguma vez houve uma alguma dúvida sobre quem é o chefe na Europa, a NATO ou a União Europeia, a guerra na Ucrânia resolveu-a, pelo menos para o futuro previsível. Outrora, Henry Kissinger queixou-se de que não havia um número de telefone único para ligar para a Europa, e havia demasiadas chamadas para fazer para se conseguir alguma coisa, e havia uma cadeia de comando demasiado incómoda que necessitava ser simplificada. Depois, após o fim de Franco e Salazar, veio a extensão da União Europeia a sul da Europa, com a Espanha a aderir à NATO em 1982 (Portugal era membro desde 1949), tranquilizando assim Kissinger e os Estados Unidos contra o eurocomunismo e uma tomada de controlo militar que não fosse feita pela NATO. Mais tarde, na emergente Nova Ordem Mundial após 1990, coube à UE absorver a maioria dos Estados membros do defunto Pacto de Varsóvia, e com estes a beneficiarem de um procedimento acelerado de adesão à NATO. Estabilizando económica e politicamente os recém-chegados ao bloco capitalista, e orientando a sua construção nacional e a formação do Estado, a tarefa da UE, aceite com mais ou menos entusiasmo, seria permitir-lhes tornarem-se parte do “Ocidente”, liderado pelos Estados Unidos num mundo agora unipolar.
Nos anos seguintes, o número de países da Europa Oriental à espera de serem admitidos na UE aumentou, com os Estados Unidos a exercer pressão para a sua admissão. Com o tempo, a Albânia, Macedónia do Norte, Montenegro e Sérvia alcançaram o estatuto de candidatos oficiais, enquanto o Kosovo, a Bósnia-Herzegovina e a Moldávia continuam à espera de serem admitidos. Entretanto, o entusiasmo entre os estados membros da UE pelo alargamento diminuiu, especialmente em França que preferiu e prefere “aprofundar” em vez de “alargar”. Isto estava de acordo com a peculiar finalidade francesa da “união cada vez mais estreita dos povos da Europa”: um conjunto de Estados relativamente homogéneo no plano político e social, capaz de desempenhar coletivamente um papel independente, auto-determinado, “soberano”, e acima de tudo liderado pela França na política mundial (“uma França mais independente numa Europa mais forte”, como o recém reeleito presidente francês gosta de dizer).
Os custos económicos de elevar os novos estados membros aos padrões europeus, e a quantidade necessária de desenvolvimento institucional a partir do exterior, tiveram de ser mantidos manejáveis, dado que a UE já estava a lutar com as persistentes disparidades económicas entre os seus países membros mediterrânicos e os de noroeste, para não mencionar o profundo apego de alguns dos novos membros do Leste aos Estados Unidos.
Assim, a França bloqueou a entrada na UE da Turquia, um membro de longa data da NATO (que assim permanecerá apesar de ter acabado de enviar o ativista Osman Kavala para a prisão, com a pena de prisão perpétua e em confinamento solitário, sem qualquer possibilidade de liberdade condicional). O mesmo se aplica a vários Estados dos Balcãs Ocidentais, como a Albânia e a Macedónia do Norte, tendo falhado em impedir a adesão, na primeira vaga de Osterweiterung em 2004, da Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa, Eslováquia, Eslovénia e Hungria. Quatro anos mais tarde, Sarkozy e Merkel impediram (por ora) os Estados Unidos, sob George Bush, filho, de admitir a Geórgia e a Ucrânia na NATO, antecipando que isto teria de ser seguido pela sua inclusão na União Europeia.
Com a invasão russa da Ucrânia, o jogo mudou. O discurso televisivo de Zelensky aos chefes dos governos da UE reunidos causou uma espécie de excitação que é muito desejada mas raramente vivida em Bruxelas, e a sua exigência de adesão plena à UE, tutto e subito, suscitou aplausos intermináveis. Zelosa demais como de costume, von der Leyen viajou até Kiev para entregar a Zelensky o longo questionário necessário para iniciar os procedimentos de admissão. Enquanto normalmente os governos nacionais levam meses, se não anos, para reunir os detalhes complexos que o questionário pede, Zelensky, apesar do estado de sítio de Kiev, prometeu terminar o trabalho numa questão de semanas, e assim o fez. Ainda não se sabe quais são as respostas em questões como o tratamento das minorias étnicas e linguísticas, sobretudo o russo, ou a extensão da corrupção e o estado da democracia como, por exemplo, o papel dos oligarcas nacionais nos partidos políticos e no parlamento.
Se a Ucrânia for admitida tão rapidamente como prometido, e como o seu governo e o dos Estados Unidos esperam, deixará de haver qualquer razão para recusar a adesão não só aos estados dos Balcãs Ocidentais, mas também à Geórgia e à Moldávia, que se candidataram juntamente com a Ucrânia. Em todo o caso, todos eles reforçarão a ala anti-russos e pró-americanos dentro da UE, hoje liderada pela Polónia, que na altura, tal como a Ucrânia, foi um participante ansioso na “coligação dos interessados ” reunida pelos Estados Unidos com o objetivo de construir uma nação ativa no Iraque. Quanto à UE em geral, a adesão da Ucrânia irá transformá-la ainda mais numa escola preparatória ou num parque de estacionamento à espera de poderem ser futuros membros da NATO. Isto é verdade mesmo que, como parte de um potencial acordo de guerra, a Ucrânia possa ter de ser oficialmente declarada neutra, impedindo-a de aderir diretamente à NATO. (De facto, desde 2014, o exército ucraniano foi reconstruído a partir do zero sob a direção americana, ao ponto de, em 2021, ter alcançado efetivamente aquilo a que se chama “interoperabilidade” na linguagem calão da NATO).
Para além de domesticar os membros neófitos, outro trabalho que lhes foi atribuído com o novo estatuto da UE enquanto auxiliar civil da NATO é conceber sanções económicas que prejudiquem o inimigo russo, poupando amigos e aliados, na medida do que for preciso. A NATO fica encarregada de controlar as armas, a UE fica encarregada de controlar os portos. Von der Leyen, entusiasmada como sempre, fez saber ao mundo no final de Fevereiro que as sanções feitas na UE seriam as mais eficazes de sempre e iriam “destruir pouco a pouco a base industrial da Rússia” (Stück für Stück die industrielle Basis Russlands abtragen). Talvez como alemã, ela tivesse em mente algo como um Plano Morgenthau, tal como proposto pelos conselheiros de Franklin D. Roosevelt, a fim de reduzir a Alemanha derrotada a uma sociedade agrícola para sempre. Esse projeto foi rapidamente abandonado, o mais tardar quando os Estados Unidos perceberam que poderiam precisar da Alemanha (Ocidental) para a sua “contenção” da União Soviética na Guerra Fria.
Não é claro quem disse a von der Leyen para não exagerar, mas a metáfora de destruir (abtragen) não foi de novo ouvida, talvez porque o que ela implicava poderia ter sido uma participação ativa na guerra. Em qualquer caso, depressa se verificou que a Comissão, apesar das suas pretensões de fama tecnocrática, falhou tão mal no planeamento das sanções como no planeamento da convergência macroeconómica. De forma notavelmente eurocêntrica, a Comissão parecia ter esquecido que existem partes do mundo que não veem qualquer razão para aderir a um boicote imposto pelo Ocidente à Rússia; para elas, as intervenções militares não são nada de anormal, incluindo intervenções do Ocidente para o Ocidente.
Além disso, a nível interno, quando chegou a altura de agir, a UE teve muita dificuldade em ordenar aos seus Estados membros o que não devem comprar ou vender; os apelos para que a Alemanha e a Itália parassem imediatamente de importar gás russo foram ignorados, tendo ambos os governos insistido que os empregos nacionais e a prosperidade nacional fossem tomados em consideração. Os cálculos errados abundaram mesmo na esfera financeira onde, apesar das mais que nunca sofisticadas sanções contra os bancos russos, incluindo o banco central de Moscovo, o rublo até aumentou recentemente, em cerca de 30 por cento entre 6 e 30 de Abril.
Quando os reis regressam, iniciam uma purga, para retificar as anomalias que se acumularam durante a sua ausência. As velhas faturas são apresentadas de novo e aceites, a falta de lealdade revelada durante a ausência do Rei é punida, ideias desobedientes e memórias impróprias são extirpadas, e os cantos e recantos do corpo político são limpos dos desvios políticos que entretanto os povoaram. A ação simbólica do tipo McCarthy é útil, pois espalha o medo entre os potenciais dissidentes. Hoje em dia, em todo o Ocidente, os pianistas ou os jogadores de ténis ou especialistas em teoria da relatividade que por acaso são da Rússia e querem continuar a tocar o que quer que toquem, a jogar o que quer que joguem são pressionados a fazer declarações públicas que, na melhor das hipóteses, tornariam as suas vidas e as das suas famílias difíceis no seu país. Jornalistas investigadores descobrem um abismo de doações filantrópicas de oligarcas russos para música e outros festivais, doações que foram bem-vindas no passado mas que agora se descobrem terem sido dadas para subverter a liberdade artística, ao contrário, claro está, das doações filantrópicas dos seus colegas ocidentais. Etc.
Num contexto de proliferação de juramentos de lealdade, o discurso público está reduzido à divulgação da verdade do Rei, e nada mais do que isso. Compreender (verstehen) Putin – tentando descobrir os motivos e razões, procurando uma pista sobre como se poderia, talvez, negociar o fim do derramamento de sangue – é equiparado a perdoar (verzeihen) Putin; isto é “relativizar”, como dizem os alemães, as atrocidades do exército russo, tentando acabar com elas com outros meios que não os militares. Segundo a sabedoria recentemente recebida, só há uma forma de lidar com um louco; pensar noutras formas favorece os seus interesses e, portanto, equivale a traição. (Lembro-me de professores na década de 1950 que faziam saber à jovem geração que tinham pela frente que “a única língua que o russo compreende é a língua do punho”).
A gestão da memória é central: nunca mencionar os Acordos de Minsk (2014 e 2015) entre a Ucrânia, Rússia, França e Alemanha, não perguntar o que aconteceu com eles e porquê, não importa qual era a plataforma de resolução negociada de conflitos com a qual Zelensky foi eleito em 2019 por quase três quartos dos eleitores ucranianos, e esqueça a resposta americana pela diplomacia do megafone às propostas russas já em 2022 para se criar um sistema de segurança europeu conjunto. Acima de tudo, nunca mencione as várias “operações especiais” americanas do passado recente, como por exemplo no Iraque, e em Fallujah dentro do Iraque (800 baixas civis só em poucos dias); ao fazê-lo, comete o crime de “whataboutism” [1], o que, tendo em conta “as imagens de Bucha e Mariupol”, está moralmente fora dos limites.
Em todo o Ocidente, a política de reconstrução imperial visa tudo e todos os que se desviam, ou se desviaram no passado, da posição americana sobre a Rússia e a União Soviética e sobre a Europa como um todo. É aqui que se traça hoje a linha entre a sociedade ocidental e os seus inimigos, entre o bem e o mal, uma linha ao longo da qual não só o presente mas também o passado precisam de ser purgados. Está a ser dada especial atenção à Alemanha, o país que tem estado sob suspeita americana (kissingerianismo) desde a Ostpolitik de Willy Brandt e o reconhecimento alemão da fronteira ocidental da Polónia do pós-guerra. Desde então, a Alemanha tem sido suspeita aos olhos americanos de querer ter uma voz sobre a segurança nacional e europeia, por enquanto no seio da NATO e da Comunidade Europeia, mas no futuro possivelmente por si só.
Que três décadas mais tarde Schröder, como Blair, Obama e tantos outros, tenha monetizado o seu passado político depois de deixar o cargo, nunca foi, como tal, um problema. Isto foi diferente com a recusa histórica de Schröder, juntamente com Chirac, de se juntar ao grupo dirigente americano que invade o Iraque e, neste ato, de estar a violar exatamente o mesmo direito internacional que está agora a ser violado por Putin.
(O facto que Merkel, como líder da oposição na época, tenha dito ao mundo, falando de Washington DC alguns dias antes da invasão, que Schröder não representava a verdadeira vontade do povo alemão, pode ser uma das razões pelas quais ela foi até agora poupada pelos ataques americanos pelo que seria uma das principais causas da guerra ucraniana, a sua política energética tendo tornado a Alemanha dependente do gás natural russo).
Hoje, em todo o caso, não é realmente Schröder, inebriado pelos milhões com que os oligarcas russos o estão a encher, que é o principal alvo da purga alemã. Em vez disso, é o SPD como partido que – segundo o jornal BILD e o novo líder da CDU, Friedrich Merz, um homem de negócios com excelentes ligações americanas- sempre teve um problema com a Rússia. O papel do Grande Inquisidor é desempenhado de forma robusta pelo embaixador ucraniano na Alemanha, um certo Andrij Melnyk, inimigo jurado e autoproclamado, em particular de Frank-Walter Steinmeier, agora presidente da República Federal, que é apontado como personificação da “ligação russa” do SPD. Steinmeier foi, de 1999 a 2005, Chefe de Gabinete de Schröder no Gabinete do Chanceler, serviu duas vezes (2005-2009 e 2013-2017) como Ministro dos Negócios Estrangeiros sob a direção de Merkel, e foi durante quatro anos (2009-2013) líder da oposição no Bundestag.
Segundo Melnyk, um incansável utilizador do twitter e dador de entrevistas, Steinmeier ‘teceu durante anos uma teia de aranha de contactos com a Rússia’, uma teia na qual ‘muitas pessoas estão enredadas e que estão agora a dar as ordens no governo alemão’. Para Steinmeier, segundo Melnyk, “a relação com a Rússia era e é algo fundamental, algo de sagrado, independentemente do que aconteça. Mesmo a guerra de agressão da Rússia não lhe interessa muito’. Assim informado, o governo ucraniano declarou Steinmeier persona non grata no último minuto, quando ele estava prestes a embarcar num comboio de Varsóvia para Kiev, na companhia do ministro dos Negócios Estrangeiros polaco e dos chefes de governo dos estados bálticos. Enquanto os outros foram autorizados a entrar na Ucrânia, Steinmeier teve de informar os jornalistas que o acompanhavam de que não era bem-vindo, e ia regressar à Alemanha.
O caso de Steinmeier é interessante pois mostra como os alvos da purga estão a ser selecionados. À primeira vista, as credenciais neoliberais de Steinmeier, de um neoliberal pró Atlantismo, parecem impecáveis. Autor da Agenda 2010, como chefe da Chancelaria e coordenador dos serviços secretos alemães, permitiu que os Estados Unidos utilizassem as suas bases militares alemãs para recolher e interrogar os prisioneiros trazidos de todo o mundo durante a “guerra ao terrorismo” – o que se pode assumir como compensação pela recusa de Schröder em juntar-se à aventura americana no Iraque. Ele também não fez muito alarido, ou mesmo nenhum alarido, quando os Estados Unidos detiveram cidadãos alemães de ascendência libanesa e turca em Guantánamo, cada um dos quais foi preso, raptado e torturado depois de terem sido confundidos com outra pessoa. Acusações de não ter prestado assistência, como deveria ter feito ao abrigo da lei alemã, seguiram-no até aos dias de hoje.
O que é verdade é que Steinmeier ajudou a tornar a Alemanha dependente da energia russa, embora não tão claro quanto se diz. Foi ele quem, em 1999, negociou a saída alemã da energia nuclear, em nome do governo vermelho-verde sob Schröder e conforme exigido, não pelo SPD, mas pelos Verdes. Mais tarde, como líder da oposição, aceitou, após o desastre de Fukushima em 2011, que Merkel, depois de ter feito marcha atrás sobre a saída do nuclear I, faça de novo marcha atrás para fazer aprovar a saída nuclear II, sempre com a esperança ardilosa de que isto abrisse a porta a uma coligação com os Verdes. Alguns anos mais tarde, quando ela, pela mesma razão, acabou com a utilização do carvão, em particular o carvão mole, que deveria entrar em vigor pouco depois do momento do encerramento dos últimos reatores nucleares, Steinmeier seguiu o movimento.
Ainda assim, é ele, não Merkel, que está a ser responsabilizado pela dependência energética alemã e pela colaboração com a Rússia, talvez por gratidão duradoura dos americanos pela assistência de Merkel na crise dos refugiados sírios na sequência da (meia) intervenção americana na Síria. Entretanto, os Verdes, a força motriz da política energética alemã desde Schröder, tal como a CDU, conseguem escapar à ira norte-americana, que é feita em torno de SPD e de Scholz criticando a hesitação alemã em entregar “armas pesadas” à Ucrânia.
E o Nord Stream 2 ? Também aqui, Merkel esteve sempre no lugar do condutor, até porque a extremidade alemã do gasoduto deveria estar no seu estado natal, até mesmo na sua circunscrição eleitoral. Note-se que o gasoduto nunca entrou em funcionamento, uma boa parte do gás russo que vai para a Alemanha é bombeado através de um sistema de gasodutos que passa em parte pela Ucrânia. O que tornou o Nord Stream 2 necessário, aos olhos de Merkel, foi a situação jurídica e política caótica na Ucrânia após 2014, levantando a questão de como assegurar um trânsito fiável de gás para a Alemanha e a Europa Ocidental – uma questão que o Nord Stream 2 resolveria elegantemente. Não é preciso ser um perito sobre a Ucrânia para compreender que isto deve ter incomodado os ucranianos. É interessante notar que, após mais de dois meses de guerra, o gás russo continua a ser fornecido através de gasodutos ucranianos. Embora o governo ucraniano pudesse encerrar estes a qualquer momento, não o faz, provavelmente para permitir a si próprio e aos oligarcas associados continuar a cobrar taxas de trânsito. Isto não impede a Ucrânia de exigir que a Alemanha e outros países acabem imediatamente com a sua utilização do gás russo, a fim de deixarem de financiar a “guerra de Putin”.
Mais uma vez, porquê Steinmeier e o SPD, em vez de Merkel e a CDU, ou os Verdes? A razão mais importante pode ser que na Ucrânia, especialmente na direita radical do espectro político, o nome Steinmeier é conhecido e odiado sobretudo em relação ao chamado “algoritmo Steinmeier” – essencialmente uma espécie de roteiro, ou lista de afazeres, para a implementação dos Acordos de Minsk elaborados por Steinmeier como Ministro dos Negócios Estrangeiros sob a égide de Merkel. Enquanto o Nord Stream 2 era imperdoável do ponto de vista ucraniano, Minsk era um pecado mortal aos olhos não só da direita ucraniana (entre outras coisas teria concedido autonomia às partes da Ucrânia de língua russa) mas dos Estados Unidos, que tinham sido contornados pelos Acordos de Minsk, tal como a Ucrânia seria contornada pelo Nord Stream 2. Se este último foi um ato hostil entre parceiros comerciais, o primeiro foi um ato de alta traição contra um rei temporariamente ausente, agora de volta para limpar e vingar-se.
Por muito que a UE se tenha tornado uma subsidiária da NATO, pode assumir-se que os seus funcionários sabem tão pouco como qualquer outra pessoa sobre os objetivos de guerra últimos dos Estados Unidos. Com a recente visita dos secretários de Estado e de Defesa dos EUA a Kiev, parece que os americanos fizeram avançar as traves mestras dos seus objetivos, que vão desde a defesa da Ucrânia contra a invasão russa até ao enfraquecimento permanente do exército russo. Até que ponto os EUA assumiram agora o controlo foi forçosamente demonstrado quando, na sua viagem de regresso aos Estados Unidos, os dois secretários pararam na base aérea americana em Ramstein, na Alemanha, a mesma que os EUA utilizaram para a guerra contra o terrorismo e operações semelhantes. Aí reuniram-se com os ministros da defesa de nada menos que quarenta países, a quem tinham ordenado que comparecessem para se comprometerem a apoiar a Ucrânia e, claro, os Estados Unidos. Significativamente, a reunião não foi convocada na sede da NATO em Bruxelas, um local multinacional pelo menos formalmente, mas numa instalação militar que os Estados Unidos afirmam estar sob a sua, e apenas sob a sua, soberania, perante o desacordo ocasional mudo do governo alemão. Foi aqui, com os Estados Unidos a presidirem sob duas enormes bandeiras, americana e ucraniana, que o governo Scholz concordou finalmente em entregar à Ucrânia as há muito solicitadas “armas pesadas”, sem que aparentemente lhe fosse permitido ter uma palavra a dizer sobre o objetivo exato para o qual os seus tanques e howitzers seriam utilizados. (As quarenta nações concordaram em reunir-se de novo uma vez por mês para decidir que mais equipamento militar a Ucrânia necessita). Não podemos deixar de recordar neste contexto a observação de um diplomata americano reformado, numa fase inicial da guerra, de que os EUA iriam combater os russos “até ao último ucraniano”.
Como é bem sabido, a capacidade de atenção não só do povo americano mas também do poder estabelecido americano de política externa é curta. Eventos dramáticos dentro ou fora dos Estados Unidos podem diminuir o interesse nacional sobre um lugar distante como a Ucrânia – para não mencionar as próximas eleições intercalares e a iminente campanha de Donald Trump para reconquistar a presidência em 2024. De uma perspetiva americana, isto não é um grande problema porque os riscos associados às aventuras estrangeiras dos EUA revertem quase exclusivamente para os habitantes dos países onde se verificam essas aventuras: veja-se o Afeganistão. Ainda mais importante, seria pensar, que os países europeus soubessem quais são exatamente os objetivos da guerra dos Estados Unidos na Ucrânia, e como eles serão atualizados à medida que a guerra continua.
Após a reunião de Ramstein, falou-se não só de um “enfraquecimento permanente” do poder militar russo, nunca se falou de um acordo de paz, mas também de uma vitória absoluta para a Ucrânia e os seus aliados. Isto irá testar a ideia criada com a Guerra Fria de que uma guerra convencional contra uma potência nuclear não pode ser ganha. Para os europeus o resultado será uma questão de vida ou morte – o que poderá explicar porque é que o governo alemão hesitou durante algumas semanas em fornecer à Ucrânia armas que poderiam ser utilizadas, por exemplo, para se deslocar para território russo, primeiro talvez para atingir as linhas de abastecimento russas, mais tarde para mais longe. (Quando tive conhecimento desta nova aspiração americana a uma “vitória”, senti-me num breve mas inesquecível momento atingido por um profundo sentimento de medo). Se a Alemanha teve a coragem de pedir uma palavra sobre a estratégia americano-ucraniana, não parece que se lhe tenha oferecido nada parecido: os tanques alemães, ao que parece, serão entregues com carta-branca. Há rumores de que os numerosos jogos de guerra encomendados nos últimos anos pelo governo americano a thinktanks militares, envolvendo a Ucrânia, a NATO e a Rússia, acabaram, de uma forma ou de outra, no Armagedão nuclear, pelo menos na Europa.
Certamente, um final nuclear não é o que está a ser anunciado publicamente. Em vez disso, ouve-se dizer que os Estados Unidos assumem que derrotar a Rússia levará muitos anos, com um prolongado impasse, um longo impasse na lama de uma guerra terrestre, não podendo nenhuma das partes mover-se: os russos, porque os ucranianos serão interminavelmente alimentados com mais dinheiro e mais material, se não mesmo com mão-de-obra, por um “Ocidente” novamente americanizado, os ucranianos, porque são demasiado fracos para entrar na Rússia e ameaçar a sua capital. Para os Estados Unidos isto pode parecer bastante confortável: uma guerra por procuração, com o seu equilíbrio de forças ajustado e reajustado por eles de acordo com as suas necessidades estratégicas em mudança. De facto, quando Biden solicitou nos últimos dias de Abril mais 33 mil milhões de dólares de ajuda à Ucrânia só para 2022, sugeriu que este seria apenas o início de um compromisso a longo prazo, tão caro como o Afeganistão, mas, disse ele, que valia a pena. A menos, claro, que os russos comecem a disparar mais dos seus mísseis milagrosos, desembalem as suas armas químicas e, em última análise, acabem por utilizar o seu arsenal nuclear, começando primeiro por pequenas ogivas de campo de batalha.
Existirá, apesar de tudo isto, uma perspetiva de paz após a guerra, ou menos ambiciosamente: para uma arquitetura de segurança regional, talvez depois de os americanos terem perdido o interesse, ou a Rússia sentir que não pode ou não precisa de continuar a guerra? Um acordo euro-asiático, se assim lhe quisermos chamar, pressuporá provavelmente algum tipo de mudança de regime em Moscovo. Depois do que aconteceu, é difícil imaginar líderes da Europa Ocidental a expressarem publicamente confiança em Putin, ou num sucessor de Putin e à Putin. Ao mesmo tempo, não há razões para acreditar que as sanções económicas impostas pelo Ocidente unido à Rússia causarão uma revolta pública que derrubará o regime de Putin. De facto, seguindo a experiência dos Aliados na Segunda Guerra Mundial com o bombardeamento das cidades alemãs, as sanções podem muito bem ter o efeito contrário, fazendo com que as pessoas cerrem fileiras atrás do seu governo.
A desindustrialização da Rússia, à von der Leyen, não será possível de qualquer forma, uma vez que a China acabará por não o permitir: até porque precisa de um Estado russo funcional para o seu projeto da Nova Rota da Seda. As exigências populares no Ocidente para que Putin e a sua camarilha sejam julgados no Tribunal Penal Internacional de Haia continuarão, só por estas razões, a não ser satisfeitas. Note-se em qualquer caso que a Rússia, tal como os Estados Unidos, não assinou o tratado que institui o tribunal, garantindo assim aos seus cidadãos imunidade de ação penal. Tal como Kissinger e Bush Jr., e outros nos EUA, Putin permanecerá em liberdade até ao fim dos seus dias, seja qual for esse fim. Os países europeus que historicamente não estão propriamente inclinados para a Russofilia, como os países bálticos e a Polónia, e certamente também a Ucrânia, têm boas hipóteses de convencer o público em locais como a Alemanha ou a Escandinávia que confiar na Rússia pode ser perigoso para a sua saúde nacional.
Uma mudança de regime pode, no entanto, ser também necessária na Ucrânia. Nos últimos anos, o fim ultra-nacionalista da política ucraniana, com raízes profundas no passado fascista e mesmo pró-nazi ucraniano, parece ter ganho força numa nova aliança com forças ultra-intervencionistas nos Estados Unidos. Uma consequência, entre outras, foi o desaparecimento de Minsk da agenda política ucraniana. Um expoente proeminente da ultra-direita ucraniana é o embaixador ucraniano na Alemanha, mencionado acima, que deixou saber numa entrevista para o Frankfurter Allgemeine que, para ele, alguém como Navalny era exatamente o mesmo que Putin quando se trata do direito da Ucrânia a existir como um Estado-nação soberano. Perguntado o que diria aos seus amigos russos, negou ter qualquer amigo russo, ou mesmo ter tido algum em qualquer momento da sua vida, uma vez que os russos, por natureza, querem extinguir o povo ucraniano.
A família política de Melnyk remonta à Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) nos anos entre guerras e sob a ocupação alemã, com a qual os seus líderes colaboraram até descobrirem que os nazis não distinguiam realmente entre russos e ucranianos quando se tratava de matar e escravizar pessoas. A OUN era liderada por dois homens, um Andrij Melnyk (mesmo nome do embaixador) e um Stepan Bandera, este último na medida em que tal era possível um pouco à direita do primeiro. Ambos terão cometido crimes de guerra sob licença alemã, Bandera como chefe da polícia, nomeado pelos nazis, em Lviv (Lemberg). Mais tarde Bandera foi afastado pelos alemães e colocado sob prisão domiciliária, como outros fascistas locais noutros locais. (Os nazis não acreditavam no federalismo). Após a guerra, com a União Soviética restabelecida, Bandera mudou-se para Munique, a capital do pós-guerra de uma série de colaboradores da Europa de Leste, entre eles o croata Ustasha. Ali foi assassinado em 1959 por um agente soviético, depois de ter sido condenado à morte por um tribunal soviético. Melnyk acabou também na Alemanha e morreu na década de 1970 num hospital em Colónia.
O Melnyk de hoje chama a Bandera o seu ‘herói’. Em 2015, pouco depois de ter sido nomeado embaixador, visitou o seu túmulo em Munique, onde deitou flores, relatando a visita no Twitter. Isto atraiu uma censura formal do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, chefiado na altura por ninguém menos que Steinmeier. Melnyk também saiu publicamente em apoio ao chamado Batalhão Azov, um grupo paramilitar armado na Ucrânia, fundado em 2014, que é geralmente considerado o ramo militar dos vários movimentos neofascistas do país. Não é muito claro para os não-especialistas quanta influência tem hoje a corrente política de Melnyk no governo da Ucrânia. Existem certamente outras correntes na coligação governamental; se a sua influência irá diminuir ainda mais ou, pelo contrário, aumentar à medida que a guerra se arrasta, parece difícil de prever neste momento. Os movimentos nacionalistas por vezes sonham com uma nação a sair da morte no campo de batalha dos melhores dos seus filhos, uma nação nova ou ressuscitada soldada pelo sacrifício heroico dos seus mortos. Na medida em que a Ucrânia é governada por forças políticas deste tipo, apoiadas a partir do exterior por um Estado americano ansioso por fazer com que a guerra ucraniana perdure, é difícil ver como e quando o derramamento de sangue deve terminar, a não ser pelo inimigo capitulando ou utilizando a sua capacidade bélica nuclear.
À parte a política ucraniana, uma guerra por procuração americana para a Ucrânia pode forçar a Rússia a uma relação estreita de dependência com Pequim, assegurando à China um aliado eurasiático cativo e dando-lhe acesso garantido aos recursos russos, a preços de saldo, uma vez que o Ocidente deixaria de competir por eles. A Rússia, por sua vez, poderia beneficiar da tecnologia chinesa, na medida em que esta seria disponibilizada. À primeira vista, uma aliança como esta poderia parecer ser contrária aos interesses geoestratégicos dos Estados Unidos. No entanto, viria com uma aliança igualmente próxima, e igualmente assimétrica, dominada pelos americanos, entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental, que manteria a Alemanha sob controlo e suprimiria as aspirações francesas à “soberania europeia”. Muito provavelmente, o que a Europa pode dar aos Estados Unidos excederia o que a Rússia pode entregar à China, de modo que uma perda da Rússia para a China seria mais do que compensada pelos ganhos de uma hegemonia americana mais apertada sobre a Europa Ocidental. Uma guerra por procuração na Ucrânia poderia assim ser atrativa para os Estados Unidos que procuram construir uma aliança global para a sua iminente batalha com a China sobre a próxima Nova Ordem Mundial, monopolar ou bipolar de formas antigas ou novas, a ser combatida nos próximos anos, após o fim do fim da história.
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