26 de maio de 2022

Aleida Guevara, filha de Che, sobre o poder do internacionalismo cubano

Durante o auge do Ebola e da pandemia do COVID-19, Cuba enviou médicos ao redor do mundo para ajudar as nações pobres. Aleida Guevara, filha de Ernesto "Che" Guevara, explica por que a solidariedade internacional é central para o socialismo cubano.

Jacobin

O médico-chefe Abel Roberto Fuentes Santiesteban segura uma bandeira cubana ao chegar com uma delegação de médicos cubanos à Martinica em 26 de junho de 2020, como parte de um programa de assistência médica em meio à pandemia de COVID-19. (Lionel Chamoiseau / AFP via Getty Images)

Tradução / Solidariedade é uma das coisas mais lindas sobre o povo cubano.

Todos os cubanos têm alguma experiência com solidariedade. Seja enquanto professores, médicos ou instrutores. Por exemplo, todos nós temos alguma experiência com missões internacionais. E mesmo que alguém não tenha participado pessoalmente de uma missão, sempre tem algum familiar que já participou.

Uma das coisas mais lindas que a revolução ensinou ao povo cubano é que nos solidarizarmos com qualquer ser humano em qualquer parte do mundo. Às vezes é difícil ter a medida real do quão incrível é, por exemplo, ver que um antigo colega da minha época de universidade foi para outro país combater o Ebola. Eu lembro de estar no hospital — sou pediatra — quando um professor me disse: “você vai ver só como eles vão vir pedir a ajuda de Cuba nessa luta contra o Ebola.” E eu respondi: “Mas a gente não sabe nada sobre esse vírus!”. “Não importa,” ele disse, “eles vão vir, você vai ver.”

E assim foi: não tardou muito para a Organização Mundial da Saúde (OMS) vir pedir a ajuda de Cuba. Pediram porque sabiam que os cubanos topariam. Não apenas concordamos, mandamos os melhores do país: profissionais de saúde, enfermeiros, médicos e técnicos hospitalares foram combater o vírus. E saíram vitoriosos.

Essa experiência de solidariedade dá ao povo uma sensação de poder extraordinária, porque é possível dizer: “somos capazes de ir a qualquer lugar no mundo onde nossa ajuda é solicitada e realmente prestar ajuda a outros seres humanos.” Cor de pele e religião não importam. Basta poder ser útil a outras pessoas.

Mais uma das coisas mais lindas sobre a revolução socialista: a sensação de que o desenvolvimento humano é algo que pode ser alcançado cotidianamente. No meu caso particular, como médica, alergista e pediatra, minha primeira experiência do tipo foi numa missão na Nicarágua. Eu tinha acabado de começar a atender — estava com 23 anos e no último ano de treinamento médico.

A revolução na Nicarágua tinha acabado de triunfar. Cuba não tinha tantos médicos como hoje. Por isso, o comandante Fidel Castro se reuniu com alunos do último ano de medicina e perguntou quem gostaria de fazer um estágio internacional — é assim que nos referimos ao último ano de medicina em Cuba, como um “estágio”.

480 alunos do meu curso se prontificaram, e eu fui com eles para a Nicarágua. Foi uma experiência extraordinária para mim, porque nasci depois da Revolução Cubana. Nasci com a garantia de saúde, educação, dignidade — e não é possível imaginar como seria outro mundo até viver a experiência e o contato com ele.

A experiência na Nicarágua foi difícil: como era um processo revolucionário incipiente, sofreu muita adversidade de uma poderosa força católica que basicamente dividiu a sociedade nicaraguense em duas.

Em Cuba, eu estava acostumada a um sistema de saúde completamente público e livre que servia a todos. De repente, me vi diante de médicos que trabalhavam meio período no hospital público e depois iam para a clínica particular. Sem hesitar, largavam pacientes para trás, nas mãos de pessoas sem experiência. Nas nossas mãos, tivemos que apelar para a criatividade, e tivemos que crescer como seres humanos.

Foi uma experiência difícil, mas ao mesmo tempo, muito educativa. Lembro que quando cheguei à Nicarágua, tive que acompanhar dois partos. Cheguei com minha maletinha de médica na porta do hospital e pedi: “Doutores, me digam o que fazer”. “¡Doctorcita!”, uma pessoa respondeu, “vem aqui rápido, tem uma mulher em trabalho de parto!”

Depois disso, acabei acompanhando uma centena de partos sozinha. Praticamente uma especialista em partos. A Nicarágua nos moldou, nos ensinou muito, e nos transformou em profissionais mais fortes e capazes.

Mais tarde, fui convidada a retornar a Cuba junto com as outras mulheres da missão. Os EUA estavam ameaçando invadir a Nicarágua e Fidel sempre protegeu as mulheres cubanas. Ainda assim, eu estava entre os dissidentes. Falei, “tio” — eu chamava o Fidel de “tio” — “você entende o problema: os rapazes vão ficar sozinhos já que mulheres são a maioria na missão.”

Ainda assim, voltei à Havana e comecei a trabalhar no Pedro Borrás, meu hospital, até chegarem notícias de que estavam organizando outra missão, desta vez para outra parte do mundo. Na época, eu era a única que podia ir — não tinha namorado, marido, filhos, nada. Então falei: “sim, eu vou”.

Fui a Angola e passei o que provavelmente foram os dois anos mais difíceis da minha vida. Como pediatra, talvez a época mais árdua de que tenho memória. Houve dois surtos de cólera, ambos muito fortes. Pais chegavam com os filhos já mortos no hospital, e não havia nada que pudéssemos fazer para salvá-los.

Mas em Angola, aprendi coisas fundamentais sobre seres humanos. Aprendi que precisamos lutar contra tudo que tem a ver com racismo e colonialismo. As pessoas devem ter o direito de viver a própria história e a própria vida.

O continente africano foi saqueado e explorado; seu povo foi levado a outro continente como se fossem gado. Essas coisas terríveis, que são parte da história humana, não devem ser apagadas. E isso é possível através da criação diária de laços de solidariedade entre as pessoas. Não é possível através da imposição da nossa cultura sobre outras, mas só através do aprendizado com a cultura alheia.

Por exemplo, as parteiras quichua ao norte do Equador me ensinaram toda sorte de coisas que não se acha nos livros. Se você aprende solidariedade, aprende a escutar, o que permite não apenas que você se sinta útil como ser humano, mas também possibilita seu crescimento, inspirado por diferentes formas de sabedoria — sabedoria ancestral, inclusive.

A quantidade de conhecimento que reuni em todos esses anos através de missões de solidariedade é extraordinária. Ser médicos internacionais é só algo que fazemos para pagar a dívida que temos com a humanidade por tudo o que aprendemos na jornada.

Mais tarde, continuei trabalhando com o Movimento Sem Terra (MST) no Brasil. Também trabalhei com uma fundação argentina chamada “Un mundo mejor es posible” [“Um mundo melhor é possível”]. Foi através dessa fundação que pude conhecer a cidade [de Rosario] onde nasceu meu pai, que era argentino.

Aprendi muitas coisas nessa cidade. Passei tempo lá com os povos mapuche e guarani. Eu e os estudantes de medicina da LAM [Escola Latinoamericana de Medicina, em Cuba]. Uma das coisas mais lindas que a revolução logrou nos últimos anos foi o treinamento de médicos e profissionais de saúde de todo o mundo numa universidade latino-americana completamente gratuita.

Do ponto de vista econômico, oferecer treinamento médico gratuito significou sacrifício econômico para o povo cubano, mas é de fato algo lindo, e que nos dá muito orgulho.

Temos orgulho de ter trabalhado em tantas partes diferentes do mundo, sempre trazendo nossa mensagem de solidariedade e ao mesmo tempo aprendendo mais sobre a necessidade de amor, compreensão e respeito entre todos nós.

Se essas coisas não existirem, não poderemos mudar o mundo. E precisamos mudar o mundo, porque a vida não pode continuar como está.

Palestra realizada no Summit at the End of the World, organizado pela Progressive International.

Sobre a autora

Aleida Guevara é pediatra do Hospital Infantil William Soler, em Havana. Ela também trabalhou como médica em Angola, Equador e Nicarágua.

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