Marco D'Eramo
Sidecar
Tradução / Todos seremos radioativos e felizes. Contaminados e hipócritas. O contador Geiger funcionará furiosamente enquanto a democracia vai triunfando sobre a barbárie. Eis que, na Europa, dedos cruzados, estamos indo a todo vapor para um confronto nuclear. Estamos avançando para o abismo com aquela alegre desconsideração com que as grandes potências mergulharam na Primeira Guerra Mundial. É o que conta a bela obra de Christopher Clark The sleepwalkers: how Europe went to war in 1914 (2012). Mas, ao contrário daquela época, os sonâmbulos de hoje estão em estado de induzido torpor.
Paralisados pelos horrores perpetrados na Ucrânia, não percebemos mais a escalada que se desenrola diante de nossos olhos. Não estou me referindo apenas à intensificação do esforço de guerra da Rússia e à brutalidade sem sentido demonstrada por suas forças armadas. Nem às sanções cada vez mais pesadas do Ocidente contra Moscou, ou ao influxo para Kiev de armamentos cada vez mais poderosos e sofisticados dos Estados membros da OTAN. Em vez disso, a escalada mais preocupante está na retórica da guerra. No conflito atual, o campo da propaganda é decisivo, talvez até mais do que o próprio campo de batalha.
Nas últimas semanas, todos os tropos de “crimes de guerra”, “genocídio” e “atrocidades” foram adotados (antes da guerra começar, escrevi para o site Sidecar sobre o uso de atrocidades como ferramenta política). Sejamos claros: certamente foram cometidas atrocidades – e mais acontecerão. A guerra é atroz por definição; caso contrário, seria mais como um evento esportivo, um torneio de lutas. No entanto, é incomum chamar o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki de genocídio ou atrocidade. Atrocidades são cometidas em todas as guerras, mas costumam ser denunciadas apenas em algumas. Essas categorias são evocadas com o objetivo específico de excluir qualquer possibilidade de negociação.
Não é por acaso que o pobre Emmanuel Macron (esnobado pelos EUA e ridicularizado por Vladimir Putin após horas de inútil tête à tête) se opôs à intensificação verbal representada pelas acusações de “genocídio”. Você não pode negociar com um criminoso de guerra; acordos não podem ser feitos com um assassino em massa. Se Putin é o novo Hitler, a única coisa que resta a fazer é arrasar o novo Reich. Não há espaço para raciocínio, então nenhum remédio é possível.
Sem espaço, na verdade. Quem se lembra das quatro rodadas de negociações entre a Rússia e a Ucrânia realizadas entre 28 de fevereiro e 10 de março (três na Bielorrússia, uma na Turquia)? Um acordo parecia então possível; agora é inconcebível. A sensação que todos tivemos desde o início – de que os Estados Unidos não ficariam descontentes com uma invasão russa e que fariam muito pouco para evitá-la – foi se confirmando cada vez mais com o passar dos meses.
Já em março, quando ficou claro que ninguém queria negociar um acordo de paz, um dos principais estudiosos do stalinismo, Stephen Kotkin (não exatamente conhecido por sua ternura em relação a Rússia), advertiu em entrevista ao New Yorker: “O problema… é que é difícil descobrir como desescalar, como sair da espiral do maximalismo mútuo. Continuamos aumentando as apostas com mais e mais sanções e cancelamentos. Há pressão do nosso lado para “fazer alguma coisa” porque os ucranianos estão morrendo todos os dias enquanto estamos sentados à margem, militarmente, de algumas maneiras. (Embora, como eu disse, estejamos fornecendo armas e operando na esfera da cibernética.) A pressão do nosso lado é para ser maximalista; porém, quanto mais encurralarmos os russos, menos terá Putin a perder; assim, ele pode aumentar as suas apostas, infelizmente. Ele tem muitas ferramentas que não usou e que podem nos machucar. Precisamos de uma desescalada da espiral maximalista; precisamos, também, de um pouco de sorte e boa sorte, talvez em Moscou, talvez em Helsinque ou Jerusalém, talvez em Pequim, mas certamente em Kiev”.
Desde então, dois meses se passaram e a situação se deteriorou. Em 26 de abril, James Heappey, o secretário de Estado britânico para as Forças Armadas, disse aos ucranianos que eles deveriam levar a guerra para o território russo. Essas figuras do establishment da política externa ocidental estão cientes de que, ao contrário do que o senso comum ditaria, a paralisação do avanço militar de Putin na verdade minou as esperanças de paz.
O Kremlin nunca poderia se expor à opinião pública russa e se sentar para conversar sem ter alcançado nenhum de seus objetivos de guerra, pois isso evidenciaria o fracasso de sua ofensiva. E a OTAN, por sua vez, não tem interesse em diminuir o conflito. Não poupará a Rússia de punição, seja por suas atrocidades em Bucha ou por sua insubordinação perante o hegemon norte-americano.
A trajetória da guerra mostrou que o poder militar russo foi superestimado. Assim como a Alemanha foi definida como um gigante econômico e um anão político, a Rússia de Putin foi, até recentemente, vista como um anão econômico e um gigante militar. Mas um gigante anão é um oxímoro, e o poderio militar de Moscou é mais realisticamente compatível com suas capacidades econômicas – um PIB maior que o da Espanha, mas inferior ao da Itália.
Tudo isso ficou evidente em 14 de abril, com o naufrágio do cruzador de mísseis guiados Moskva, o carro-chefe da Frota do Mar Negro da Rússia. Seja qual for a verdade sobre o seu desaparecimento, se ele afundou por causa de um incêndio – o que implica que a Marinha Russa está em um estado tão terrível que não foi capaz de apagar o fogo – ou devido a um ataque com mísseis ucranianos – indicando que a Rússia não tem a tecnologia para repelir uma ofensiva contra sua embarcação mais avançada – a calamidade demonstrou o que os impasses da guerra terrestre já sugeriam: que a Rússia de Vladimir Putin também pode ser definida pela frase sardônica uma vez usada por um repórter do Financial Times para descrever a URSS sob Gorbachev, um “Alto Volta com foguetes”.
Mais concretamente, porém, as defesas antimísseis de má qualidade do Moskva ensinaram ao Pentágono que, se essa é a condição dos sistemas eletrônicos russos, o risco representado por seu arsenal nuclear é relativo. Como Andrew Bacevich observa em The Nation, “mais embaraçoso para os formuladores americanos de políticas estratégicas, o fracasso da “operação especial” de Putin expõe a “ameaça” russa geral como essencialmente fraudulenta. Salvo um ataque nuclear suicida, a Rússia não representa nenhum perigo para os Estados Unidos. (A ênfase foi adicionada para aqueles que raciocinam lentamente). Nem representa uma ameaça significativa para a Europa. Um exército frustrado em seus esforços para superar as forças que foram construídas com remendos para defender a Ucrânia não irá muito longe se o Kremlin optar por atacar os membros europeus da OTAN. O urso russo efetivamente ficou agora bem menor”.
Andrew Bacevich foi muito apressado em excluir a possibilidade de um ataque nuclear suicida, mas ele também está errado em outro ponto. É verdade que a Rússia não constitui uma ameaça séria para os Estados Unidos e seu arsenal defensivo, ele próprio protegido por uma rede de satélites e tecnologia de vanguarda. Mas e a Europa? As cidades europeias estão realmente em risco, tanto por causa de suas proteções mais modestas quanto por sua contiguidade com a Rússia (isto é, pela velocidade relativa com que a Rússia poderia atingi-las). Berlim fica a apenas 1.000 km da fronteira russa.
Não esqueçamos que o conflito entre a OTAN e a Rússia ocorreu inteiramente na Europa; seria a terceira vez em pouco mais de um século que os Estados Unidos travariam uma guerra no continente europeu sem ter que enfrentar suas consequências em casa (em março, o ex-diretor da CIA Leon Panetta admitiu que os EUA já estavam travando uma guerra por procuração na Ucrânia).
A essa altura, a OTAN e os EUA começaram a falar como vencedores, discutindo abertamente quais punições infligir a uma Moscou derrotada. “Queremos ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisa que fez ao invadir a Ucrânia” – foi o que disse o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin. Enquanto isso, Francis Fukuyama prevê que “a Rússia está caminhando para uma derrota total na Ucrânia” – uma derrota que “tornará possível um “novo nascimento da liberdade”.
Eis como pensa esse autor. Isso nos tirará de nosso pesadelo sobre o estado em declínio da democracia global. O espírito de 1989 continuará vivo, graças a um bando de bravos ucranianos. Além disso, escreve Fukuyama, a guerra será uma boa lição para a China. Como a Rússia, a China construiu forças militares aparentemente de alta tecnologia na última década, mas não têm experiência em combate. O desempenho miserável da força aérea russa provavelmente seria replicado pela Força Aérea do Exército de Libertação Popular, que também não tem experiência no gerenciamento de operações aéreas complexas. Podemos esperar que a liderança chinesa não se iluda quanto às suas próprias capacidades, como os russos fizeram ao contemplar um movimento futuro contra Taiwan.
Em suma, “graças a um bando de bravos ucranianos”, a defesa do mundo livre torna-se uma ocasião inesperada para reafirmar a hegemonia global dos EUA e consolidar um império que alguns meses antes havia sido diagnosticado com declínio irreversível. Como escreve Pankaj Mishra, “a humilhação no Iraque e no Afeganistão, e em casa por Donald Trump, desmoralizou tanto os exportadores de democracia como o capitalismo. Mas as atrocidades de Vladimir Putin na Ucrânia agora deram a eles uma oportunidade de fazer a América parecer grande novamente”. (Todo mundo aproveita a guerra para acertar contas pessoais: Boris Johnson, por exemplo, está usando o conflito para causar problemas à Alemanha, fazendo uma pequena vingança pelas humilhações sofridas durante as negociações pós-Brexit).
O principal problema é que quanto mais a Rússia se encontrar encurralada, mais estará humilhada por sua fraqueza militar e mais será tentada a compensar com ameaças nucleares. Sabemos por experiência que as ameaças não podem ser prolongadas indefinidamente – mais cedo ou mais tarde devem ser realizadas, mesmo que sejam totalmente contraproducentes (como Putin viu, a um custo considerável, com a decisão de iniciar a própria guerra). “Não pressione demais um inimigo desesperado” – advertiu Sun Tzu, há cerca de 24 séculos.
Esta é uma escalada diferente daquela descrita por Kotkin, mas seu efeito é o mesmo. À medida que a Rússia se enfraquece na Ucrânia, os seus inimigos não são mais obrigados a negociar; tornam-se, portanto, mais intransigentes e alteram os termos da negociação, levando a Rússia a intensificar seus esforços, e assim por diante. A primeira vítima deste ciclo é o povo ucraniano. O resultado da paralisação das negociações é o bombardeio de mais cidades e a morte de mais civis. O Ocidente continuará a alardear seus valores sobre seus cadáveres (a menos que decida intervir diretamente e desencadear uma guerra nuclear). Parafraseando um velho ditado: é fácil bancar o herói quando o pescoço de outra pessoa está em jogo.
Enquanto isso, a invasão russa já causou danos irreparáveis. Mostrou o quanto a questão ambiental conta para aquelas elites perspicazes que governam nossas sociedades. Qualquer crise global torna-se mais uma oportunidade para relegar o futuro do nosso planeta ao degrau mais baixo da ordem de prioridades. Há uma pandemia, portanto, esqueça o meio ambiente. Uma guerra na Ucrânia? Vamos começar a produzir mais petróleo. É preciso voltar a engolir o retorno da energia nuclear. Mais usinas de carvão, mais gás do nosso aliado “democrático” Al Sisi – eis que qualquer coisa é melhor do que fazer um acordo com o pérfido Kremlin.
A segunda vítima da invasão russa é a União Europeia, que sairá em frangalhos, mesmo que seja poupada dos ataques de mísseis. As fantasias alemãs de uma nova Ostpolitik desapareceram do horizonte, os sonhos franceses de autonomia militar (relativa) foram dissipados e as relações (mantidas durante a Guerra Fria) entre Roma e o Kremlin foram rompidas. Acima de tudo, qualquer noção de autonomia política da UE está agora extinta. A Europa em sua totalidade realinhou-se com a OTAN, a mesma organização que Macron chamou de “morte cerebral” em 2019. Ao contrário, Monsieur le Président: hoje há filas do lado de fora da bilheteria da OTAN.
Mas há mais: a invasão russa, com o objetivo de “desnazificar” a Ucrânia, também deu renovada legitimidade ao neofascismo e ao autoritarismo em toda a Europa. A direita não é mais julgada por seus impulsos ditatoriais, mas por sua relativa hostilidade ou simpatia por Vladimir Putin. A Polônia, em julgamento pela União Europeia por infringir seu Estado de direito, vê-se milagrosamente elevada a um baluarte da democracia, enquanto a Hungria é posta ainda mais no ostracismo por causa de suas posições anti-Rússia mornas.
Vladimir Putin realizou dois milagres. A primeira foi a criação da Ucrânia. Se para existir politicamente uma nação deve primeiro ser imaginada como uma comunidade, e se essa comunidade só pode ser imaginada quando os mortos se tornam nossos mortos, então a invasão russa realmente deu origem à Ucrânia, não apenas como entidade geográfica, nem mesmo como uma construção político-diplomática (lembre-se que desde o século XIV até 1991 a Ucrânia sempre esteve sob controle estrangeiro), mas como comunidade, como sentimento de pertencimento a um povo.
O segundo milagre foi a legitimação dos neonazistas ucranianos aos olhos do mundo. Menciona-se aqui, para quem não os leu, dois belos relatórios sobre a extrema direita europeia publicados antes da invasão da Ucrânia: um no Harper’s e outro no Die Zeit. Ambos trataram dos neonazistas ucranianos, de sua organização e de seus líderes, o Batalhão Azov (agora um Regimento). Quando os tanques russos cruzaram a fronteira, o Batalhão Azov tornou-se um viveiro de heróis.
Essa transformação beira o ridículo – se já não fosse trágica. Isso foi mostrado em entrevistas como a que apareceu no La Repubblica, que cita o comandante do segundo regimento dizendo: “Não sou nazista, leio Kant para meus soldados”. O comandante continua citando a conhecida conclusão da Crítica da Razão Prática: “Duas coisas enchem a mente de admiração e temor sempre novos e crescentes, quanto mais frequente e firmemente refletimos sobre elas: o céu estrelado acima de mim e o lei moral dentro de mim”. Tudo isso lembra os SS, que eram conhecidos por terem um gosto requintado pela música romântica alemã.
Isso mostra que, nas guerras de propaganda, a lei do terceiro excluído não se sustenta. Não é verdade que se o oponente está errado, então o adversário deve estar certo. Mentiras na guerra não são simétricas; dois inimigos são perfeitamente capazes de mentir simultaneamente. Por isso é infantil acusar de filo-putinismo quem questiona a narrativa ocidental da guerra. O fato de Vladimir Putin ser, para usar as palavras de Roosevelt, “um filho da puta”, não significa que seus inimigos sejam anjos. Eis que o oposto também é verdadeiro. O cinismo político ocidental não pode transformar Putin em um santo.
É impressionante ver que os EUA sempre encenam o mesmo roteiro, apresentando-se como o Império do Bem, ora colidindo com o Império do Mal, ora enfrentando um Estado pária ou um criminoso maluco. Por mais de oitenta anos esse mesmo western aparece na mídia. Na realidade, porém, a história humana se assemelha mais a um spaghetti western do que à imagem criada pela indústria cultural americana; uma história sem heróis e vilões, onde todos agem sem escrúpulos em seu próprio interesse, ou o que eles (muitas vezes erroneamente) percebem como tal. Vamos apenas torcer para que esta história não termine com Joe Biden cavalgando sozinho em um pôr do sol obscurecido por uma nuvem de cogumelo ondulante.
PS: Ao contrário da maioria dos comentaristas que se prezam, eu ficaria extremamente feliz em ser contrariado pelos fatos, admitindo mesmo ter cometido um erro enorme. Eu ficaria feliz, acima de tudo, simplesmente por estar vivo.
Paralisados pelos horrores perpetrados na Ucrânia, não percebemos mais a escalada que se desenrola diante de nossos olhos. Não estou me referindo apenas à intensificação do esforço de guerra da Rússia e à brutalidade sem sentido demonstrada por suas forças armadas. Nem às sanções cada vez mais pesadas do Ocidente contra Moscou, ou ao influxo para Kiev de armamentos cada vez mais poderosos e sofisticados dos Estados membros da OTAN. Em vez disso, a escalada mais preocupante está na retórica da guerra. No conflito atual, o campo da propaganda é decisivo, talvez até mais do que o próprio campo de batalha.
Nas últimas semanas, todos os tropos de “crimes de guerra”, “genocídio” e “atrocidades” foram adotados (antes da guerra começar, escrevi para o site Sidecar sobre o uso de atrocidades como ferramenta política). Sejamos claros: certamente foram cometidas atrocidades – e mais acontecerão. A guerra é atroz por definição; caso contrário, seria mais como um evento esportivo, um torneio de lutas. No entanto, é incomum chamar o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki de genocídio ou atrocidade. Atrocidades são cometidas em todas as guerras, mas costumam ser denunciadas apenas em algumas. Essas categorias são evocadas com o objetivo específico de excluir qualquer possibilidade de negociação.
Não é por acaso que o pobre Emmanuel Macron (esnobado pelos EUA e ridicularizado por Vladimir Putin após horas de inútil tête à tête) se opôs à intensificação verbal representada pelas acusações de “genocídio”. Você não pode negociar com um criminoso de guerra; acordos não podem ser feitos com um assassino em massa. Se Putin é o novo Hitler, a única coisa que resta a fazer é arrasar o novo Reich. Não há espaço para raciocínio, então nenhum remédio é possível.
Sem espaço, na verdade. Quem se lembra das quatro rodadas de negociações entre a Rússia e a Ucrânia realizadas entre 28 de fevereiro e 10 de março (três na Bielorrússia, uma na Turquia)? Um acordo parecia então possível; agora é inconcebível. A sensação que todos tivemos desde o início – de que os Estados Unidos não ficariam descontentes com uma invasão russa e que fariam muito pouco para evitá-la – foi se confirmando cada vez mais com o passar dos meses.
Já em março, quando ficou claro que ninguém queria negociar um acordo de paz, um dos principais estudiosos do stalinismo, Stephen Kotkin (não exatamente conhecido por sua ternura em relação a Rússia), advertiu em entrevista ao New Yorker: “O problema… é que é difícil descobrir como desescalar, como sair da espiral do maximalismo mútuo. Continuamos aumentando as apostas com mais e mais sanções e cancelamentos. Há pressão do nosso lado para “fazer alguma coisa” porque os ucranianos estão morrendo todos os dias enquanto estamos sentados à margem, militarmente, de algumas maneiras. (Embora, como eu disse, estejamos fornecendo armas e operando na esfera da cibernética.) A pressão do nosso lado é para ser maximalista; porém, quanto mais encurralarmos os russos, menos terá Putin a perder; assim, ele pode aumentar as suas apostas, infelizmente. Ele tem muitas ferramentas que não usou e que podem nos machucar. Precisamos de uma desescalada da espiral maximalista; precisamos, também, de um pouco de sorte e boa sorte, talvez em Moscou, talvez em Helsinque ou Jerusalém, talvez em Pequim, mas certamente em Kiev”.
Desde então, dois meses se passaram e a situação se deteriorou. Em 26 de abril, James Heappey, o secretário de Estado britânico para as Forças Armadas, disse aos ucranianos que eles deveriam levar a guerra para o território russo. Essas figuras do establishment da política externa ocidental estão cientes de que, ao contrário do que o senso comum ditaria, a paralisação do avanço militar de Putin na verdade minou as esperanças de paz.
O Kremlin nunca poderia se expor à opinião pública russa e se sentar para conversar sem ter alcançado nenhum de seus objetivos de guerra, pois isso evidenciaria o fracasso de sua ofensiva. E a OTAN, por sua vez, não tem interesse em diminuir o conflito. Não poupará a Rússia de punição, seja por suas atrocidades em Bucha ou por sua insubordinação perante o hegemon norte-americano.
A trajetória da guerra mostrou que o poder militar russo foi superestimado. Assim como a Alemanha foi definida como um gigante econômico e um anão político, a Rússia de Putin foi, até recentemente, vista como um anão econômico e um gigante militar. Mas um gigante anão é um oxímoro, e o poderio militar de Moscou é mais realisticamente compatível com suas capacidades econômicas – um PIB maior que o da Espanha, mas inferior ao da Itália.
Tudo isso ficou evidente em 14 de abril, com o naufrágio do cruzador de mísseis guiados Moskva, o carro-chefe da Frota do Mar Negro da Rússia. Seja qual for a verdade sobre o seu desaparecimento, se ele afundou por causa de um incêndio – o que implica que a Marinha Russa está em um estado tão terrível que não foi capaz de apagar o fogo – ou devido a um ataque com mísseis ucranianos – indicando que a Rússia não tem a tecnologia para repelir uma ofensiva contra sua embarcação mais avançada – a calamidade demonstrou o que os impasses da guerra terrestre já sugeriam: que a Rússia de Vladimir Putin também pode ser definida pela frase sardônica uma vez usada por um repórter do Financial Times para descrever a URSS sob Gorbachev, um “Alto Volta com foguetes”.
Mais concretamente, porém, as defesas antimísseis de má qualidade do Moskva ensinaram ao Pentágono que, se essa é a condição dos sistemas eletrônicos russos, o risco representado por seu arsenal nuclear é relativo. Como Andrew Bacevich observa em The Nation, “mais embaraçoso para os formuladores americanos de políticas estratégicas, o fracasso da “operação especial” de Putin expõe a “ameaça” russa geral como essencialmente fraudulenta. Salvo um ataque nuclear suicida, a Rússia não representa nenhum perigo para os Estados Unidos. (A ênfase foi adicionada para aqueles que raciocinam lentamente). Nem representa uma ameaça significativa para a Europa. Um exército frustrado em seus esforços para superar as forças que foram construídas com remendos para defender a Ucrânia não irá muito longe se o Kremlin optar por atacar os membros europeus da OTAN. O urso russo efetivamente ficou agora bem menor”.
Andrew Bacevich foi muito apressado em excluir a possibilidade de um ataque nuclear suicida, mas ele também está errado em outro ponto. É verdade que a Rússia não constitui uma ameaça séria para os Estados Unidos e seu arsenal defensivo, ele próprio protegido por uma rede de satélites e tecnologia de vanguarda. Mas e a Europa? As cidades europeias estão realmente em risco, tanto por causa de suas proteções mais modestas quanto por sua contiguidade com a Rússia (isto é, pela velocidade relativa com que a Rússia poderia atingi-las). Berlim fica a apenas 1.000 km da fronteira russa.
Não esqueçamos que o conflito entre a OTAN e a Rússia ocorreu inteiramente na Europa; seria a terceira vez em pouco mais de um século que os Estados Unidos travariam uma guerra no continente europeu sem ter que enfrentar suas consequências em casa (em março, o ex-diretor da CIA Leon Panetta admitiu que os EUA já estavam travando uma guerra por procuração na Ucrânia).
A essa altura, a OTAN e os EUA começaram a falar como vencedores, discutindo abertamente quais punições infligir a uma Moscou derrotada. “Queremos ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisa que fez ao invadir a Ucrânia” – foi o que disse o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin. Enquanto isso, Francis Fukuyama prevê que “a Rússia está caminhando para uma derrota total na Ucrânia” – uma derrota que “tornará possível um “novo nascimento da liberdade”.
Eis como pensa esse autor. Isso nos tirará de nosso pesadelo sobre o estado em declínio da democracia global. O espírito de 1989 continuará vivo, graças a um bando de bravos ucranianos. Além disso, escreve Fukuyama, a guerra será uma boa lição para a China. Como a Rússia, a China construiu forças militares aparentemente de alta tecnologia na última década, mas não têm experiência em combate. O desempenho miserável da força aérea russa provavelmente seria replicado pela Força Aérea do Exército de Libertação Popular, que também não tem experiência no gerenciamento de operações aéreas complexas. Podemos esperar que a liderança chinesa não se iluda quanto às suas próprias capacidades, como os russos fizeram ao contemplar um movimento futuro contra Taiwan.
Em suma, “graças a um bando de bravos ucranianos”, a defesa do mundo livre torna-se uma ocasião inesperada para reafirmar a hegemonia global dos EUA e consolidar um império que alguns meses antes havia sido diagnosticado com declínio irreversível. Como escreve Pankaj Mishra, “a humilhação no Iraque e no Afeganistão, e em casa por Donald Trump, desmoralizou tanto os exportadores de democracia como o capitalismo. Mas as atrocidades de Vladimir Putin na Ucrânia agora deram a eles uma oportunidade de fazer a América parecer grande novamente”. (Todo mundo aproveita a guerra para acertar contas pessoais: Boris Johnson, por exemplo, está usando o conflito para causar problemas à Alemanha, fazendo uma pequena vingança pelas humilhações sofridas durante as negociações pós-Brexit).
O principal problema é que quanto mais a Rússia se encontrar encurralada, mais estará humilhada por sua fraqueza militar e mais será tentada a compensar com ameaças nucleares. Sabemos por experiência que as ameaças não podem ser prolongadas indefinidamente – mais cedo ou mais tarde devem ser realizadas, mesmo que sejam totalmente contraproducentes (como Putin viu, a um custo considerável, com a decisão de iniciar a própria guerra). “Não pressione demais um inimigo desesperado” – advertiu Sun Tzu, há cerca de 24 séculos.
Esta é uma escalada diferente daquela descrita por Kotkin, mas seu efeito é o mesmo. À medida que a Rússia se enfraquece na Ucrânia, os seus inimigos não são mais obrigados a negociar; tornam-se, portanto, mais intransigentes e alteram os termos da negociação, levando a Rússia a intensificar seus esforços, e assim por diante. A primeira vítima deste ciclo é o povo ucraniano. O resultado da paralisação das negociações é o bombardeio de mais cidades e a morte de mais civis. O Ocidente continuará a alardear seus valores sobre seus cadáveres (a menos que decida intervir diretamente e desencadear uma guerra nuclear). Parafraseando um velho ditado: é fácil bancar o herói quando o pescoço de outra pessoa está em jogo.
Enquanto isso, a invasão russa já causou danos irreparáveis. Mostrou o quanto a questão ambiental conta para aquelas elites perspicazes que governam nossas sociedades. Qualquer crise global torna-se mais uma oportunidade para relegar o futuro do nosso planeta ao degrau mais baixo da ordem de prioridades. Há uma pandemia, portanto, esqueça o meio ambiente. Uma guerra na Ucrânia? Vamos começar a produzir mais petróleo. É preciso voltar a engolir o retorno da energia nuclear. Mais usinas de carvão, mais gás do nosso aliado “democrático” Al Sisi – eis que qualquer coisa é melhor do que fazer um acordo com o pérfido Kremlin.
A segunda vítima da invasão russa é a União Europeia, que sairá em frangalhos, mesmo que seja poupada dos ataques de mísseis. As fantasias alemãs de uma nova Ostpolitik desapareceram do horizonte, os sonhos franceses de autonomia militar (relativa) foram dissipados e as relações (mantidas durante a Guerra Fria) entre Roma e o Kremlin foram rompidas. Acima de tudo, qualquer noção de autonomia política da UE está agora extinta. A Europa em sua totalidade realinhou-se com a OTAN, a mesma organização que Macron chamou de “morte cerebral” em 2019. Ao contrário, Monsieur le Président: hoje há filas do lado de fora da bilheteria da OTAN.
Mas há mais: a invasão russa, com o objetivo de “desnazificar” a Ucrânia, também deu renovada legitimidade ao neofascismo e ao autoritarismo em toda a Europa. A direita não é mais julgada por seus impulsos ditatoriais, mas por sua relativa hostilidade ou simpatia por Vladimir Putin. A Polônia, em julgamento pela União Europeia por infringir seu Estado de direito, vê-se milagrosamente elevada a um baluarte da democracia, enquanto a Hungria é posta ainda mais no ostracismo por causa de suas posições anti-Rússia mornas.
Vladimir Putin realizou dois milagres. A primeira foi a criação da Ucrânia. Se para existir politicamente uma nação deve primeiro ser imaginada como uma comunidade, e se essa comunidade só pode ser imaginada quando os mortos se tornam nossos mortos, então a invasão russa realmente deu origem à Ucrânia, não apenas como entidade geográfica, nem mesmo como uma construção político-diplomática (lembre-se que desde o século XIV até 1991 a Ucrânia sempre esteve sob controle estrangeiro), mas como comunidade, como sentimento de pertencimento a um povo.
O segundo milagre foi a legitimação dos neonazistas ucranianos aos olhos do mundo. Menciona-se aqui, para quem não os leu, dois belos relatórios sobre a extrema direita europeia publicados antes da invasão da Ucrânia: um no Harper’s e outro no Die Zeit. Ambos trataram dos neonazistas ucranianos, de sua organização e de seus líderes, o Batalhão Azov (agora um Regimento). Quando os tanques russos cruzaram a fronteira, o Batalhão Azov tornou-se um viveiro de heróis.
Essa transformação beira o ridículo – se já não fosse trágica. Isso foi mostrado em entrevistas como a que apareceu no La Repubblica, que cita o comandante do segundo regimento dizendo: “Não sou nazista, leio Kant para meus soldados”. O comandante continua citando a conhecida conclusão da Crítica da Razão Prática: “Duas coisas enchem a mente de admiração e temor sempre novos e crescentes, quanto mais frequente e firmemente refletimos sobre elas: o céu estrelado acima de mim e o lei moral dentro de mim”. Tudo isso lembra os SS, que eram conhecidos por terem um gosto requintado pela música romântica alemã.
Isso mostra que, nas guerras de propaganda, a lei do terceiro excluído não se sustenta. Não é verdade que se o oponente está errado, então o adversário deve estar certo. Mentiras na guerra não são simétricas; dois inimigos são perfeitamente capazes de mentir simultaneamente. Por isso é infantil acusar de filo-putinismo quem questiona a narrativa ocidental da guerra. O fato de Vladimir Putin ser, para usar as palavras de Roosevelt, “um filho da puta”, não significa que seus inimigos sejam anjos. Eis que o oposto também é verdadeiro. O cinismo político ocidental não pode transformar Putin em um santo.
É impressionante ver que os EUA sempre encenam o mesmo roteiro, apresentando-se como o Império do Bem, ora colidindo com o Império do Mal, ora enfrentando um Estado pária ou um criminoso maluco. Por mais de oitenta anos esse mesmo western aparece na mídia. Na realidade, porém, a história humana se assemelha mais a um spaghetti western do que à imagem criada pela indústria cultural americana; uma história sem heróis e vilões, onde todos agem sem escrúpulos em seu próprio interesse, ou o que eles (muitas vezes erroneamente) percebem como tal. Vamos apenas torcer para que esta história não termine com Joe Biden cavalgando sozinho em um pôr do sol obscurecido por uma nuvem de cogumelo ondulante.
PS: Ao contrário da maioria dos comentaristas que se prezam, eu ficaria extremamente feliz em ser contrariado pelos fatos, admitindo mesmo ter cometido um erro enorme. Eu ficaria feliz, acima de tudo, simplesmente por estar vivo.
Marco D'Eramo é jornalista. Autor, entre outros livros, de The Pig and the Skyscraper (Verso).
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