Sean T. Byrnes
Tradução / O que aconteceu com a ordem mundial liberal? Conforme as nações do Norte Global buscaram se unir contra o ataque russo à Ucrânia, a relutância em tomar uma atitude igualmente hostil ao governo de Vladimir Putin marcou a resposta geral do mundo desenvolvido. Embora a maioria dos governos do Sul Global estivessem dispostos a votar por uma resolução nas Nações Unidas condenando a invasão russa, não houve nenhuma atitude mais veemente aos chamados ocidentais por uma unidade “mundial” na aplicação de sanções.
Existe uma resposta simples e material para isso: a vida econômica no Sul Global é consideravelmente mais precária que no Norte Global, portanto consideravelmente mais sensível às flutuações de suprimento dos bens produzidos pela Rússia como petróleo e trigo. Juntos, Rússia e Ucrânia produzem 15% dos grãos no mundo e o abalo nas cadeias globais de produção ocasionados pela guerra em curso têm sido sentidos com mais força no Sul Global. A Rússia é fonte de 100% do trigo importado pela Somália e por Benin, 94% por Laos, 82% pelo Egito e 75% pelo Sudão.
Em 28 de março, o Financial Times informou que a “guerra na Ucrânia ameaça causar danos de longo prazo e profundo impacto às economias de países de baixo e médio orçamentos, arrastando milhões… à pobreza e… dezenas de países à crises de débito”. Sem vastas reservas de capital, com pequena população de consumidores influentes e sem economia diversificadas, algo comum na Europa e nos Estados Unidos, as “economias em desenvolvimento” do hemisfério sul são especialmente vulnerável às rápidas mudanças nos preços de commodities como as que estão sendo causadas pela guerra e pelo regime de sanções.
Falta de capital, de consumidores com renda estável e de diversidade econômica são justamente a consequência dessa ordem liberal cujas sanções são desenhadas para defender. Entender como isso veio a se estabelecer é indispensável para reconhecer que muitas das ameaças mais graves à paz e à estabilidade globais vêm não de fora do liberalismo global, mas sim da natureza do próprio sistema.
Especialização
A fragilidade econômica tão desestabilizadora da vida no Sul Global está relacionada com um fenômeno com um nome técnico específico — especialização — que os liberais sempre consideraram um efeito positivo de uma economia aberta global. Como disse o economista “liberal clássico” Thomas Sowell em seu polêmico livro Basic Economics, em 2004, o mercado aberto internacional permite “maior extensão da divisão de funções que é a marca de toda economia moderna” e, por isso, permite que os “especialistas… produzam produtos melhores por um preço mais baixo, obtendo mais resultado a partir de recursos escassos” do que em sistemas alternativos.
Na ausência de um arranjo de regulação internacional que assegure o contrário, a especialização sempre se empenha para que o fluxo de capital vá pra onde o mercado monetário exige, para que trabalhos surjam onde custem o mínimo e para que as commodities e bens manufaturados sejam produzidos pelo menor custo possível — os custos impostos por tais mudanças às sociedade envolvidas em um desafortunado, porém necessário, pedágio pago aos saqueadores na beira de estrada da modernidade.
Isso não quer dizer que a especialização é um caminho automático para a pobreza. Economistas liberais estão corretos em apontar casos em que a especialização pôde, e de fato aconteceu, levar a um fantástico crescimento econômico — como nos “estados desenvolvimentistas” da Coreia do Sul, Taiwam e Singapura. Trata-se de indicar que a raridade de tais exceções prova a regra: o padrão de especialização que emerge na ausência de tomadas de decisões econômicas internacionais mais democráticas deixa as economias pós-coloniais em uma posição precária, pois este é o propósito.
Algumas conseguem tomar vantagem dele e alcançam um crescimento espetacular. A maioria não: e ela é perpetuamente deixada, ao contrário, no ranking das “nações em desenvolvimento” — suas vulnerabilidades aos caprichos dos políticos e consumidores dos antigos centros imperiais não é mais uma conspiração a ser negada, mas apenas o bom senso econômico a ser celebrado.
Que um comércio cada vez mais livre pudesse enviar grande parte do mundo a assentos permanentes na “sala de espera da modernidade” era algo que os formuladores de políticas e planejadores norte-americanos de outrora estavam dispostos a admitir.
Oportunidades perdidas
No verão de 1944 — enquanto as batalhas finais da Segunda Guerra assolavam a Europa e o Pacífico — os Estados Unidos, a Grã Bretanha e seus aliados se reuniram em Bretton Woods, New Hampshire, para definir os alicerces da ordem econômica do pós-guerra. Ainda que os ingleses e os americanos tenham, sem surpresa, desempenhado um papel dominante, o historiador Eric Helleiner mostrou que os interesses dos países em desenvolvimento no Sul Global não foram de forma alguma ignorados.
Na tentativa de evitar a impressão de que os Estados Unidos estavam meramente ditando o que o mundo pós-guerra deveria ser, os políticos norte-americanos foram cuidadosos ao trabalhar para construir consensos entre as 44 nações representadas (mais da metade pertencendo ao Sul Global). A peça chave aqui era a crença de que, em economias não industrializadas, o “livre comércio” irrestrito provavelmente não produziria riqueza generalizada nem crescimento econômico.
O raciocínio era bastante simples: sem tarifas ou outras formas de proteção comercial para as indústrias nascentes, pensava-se que as regiões industrializadas do mundo fossem capazes de inundar os mercados do Sul Global com bens a preços que os fabricantes locais não poderiam competir, frustrando o desenvolvimento.
Na falta de tal crescimento industrial, o Sul Global permaneceria travado em uma posição nada promissora: dependente de receitas em mercados globais de commodities notoriamente instáveis. Como Vivek Chibber demonstrou várias vezes em Locked in Place, um estudo comparativo entre Índia e Coreia do Sul, em muitos casos ocorre exatamente o oposto. Nações do Sul Global implementam regimes de tarifas que protegeram capitalistas nacionais que, por sua vez, aproveitaram da ausência de competição para formar monopólios, vivendo dos subsídios do Estado e minando o desenvolvimento em outros países.
Isso, contudo, viria mais tarde. O sistema que de fato emergiu de Bretton Woods refletiu, ainda que de forma equivocada, as preocupações das nações do mundo em desenvolvimento. O Banco Internacional para Recuperação e Desenvolvimento (hoje parte do Banco Mundial) carregava no próprio nome suas metas de desenvolvimento, com o objetivo de financiar projetos no Sul Global. Também esperava-se que o novo Fundo Monetário Internacional (FMI) forneceria o financiamento necessário para os programas de estabilização do mercado de commodities. Finalmente, uma nova Organização Mundial do Comércio (OMC) — definida em detalhe em uma conferência posterior em Havana — supostamente garantiria que as tarifas seriam coordenadas com as metas de desenvolvimento em mente.
Em seu recente e ótimo estudo sobre a influência do México na ordem econômica global, Revolution in Development, Christy Thornton nota que o México e outros “países mais pobres… foram bem sucedidos de várias maneiras importantes” em Bretton Woods ao “colocar as questões sobre desenvolvimento no primeiro plano” no planejamento da nova ordem pós-guerra.
Isso provou-se, como Thornton e outros documenta, uma conquista fugaz. A emergência da Guerra Fria e a mudança nas coalizões políticas nos Estados Unidos deixaram o lado desenvolvimentista de Bretton Wood, tal como era, para trás. Apesar do interesse global, a OMC foi assassinada pela falha do Congresso em ratificar o tratado, ao passo que o poder de voto dos Estados Unidos no FMI e no Banco Internacional para Recuperação e Desenvolvimento garantiu que os fundos fossem utilizados de uma maneira que acabavam refletindo o crescente ceticismo norte-americano em relação a projetos de desenvolvimento fora do controle direto dos Estados Unidos. O temperamento dos Estados Unidos à época talvez seja melhor expresso pela carta de saída de sua Associação Nacional de Fabricantes da OMC onde a descrevem como um esquema “para tornar o mundo um lugar seguro para um planejamento socialista”.
Isso não quer dizer que os Estados Unidos abandonaram os projetos de desenvolvimento, mas que tais projetos precisavam ser justificados pelo anticomunismo e que deveriam permanecer sob o rígido controle norte-americano. O mais bem financiado e mais bem executado exemplo disso foi, claro, o Plano Marshall, o programa do governo Truman para reconstruir o continente europeu. Bem sucedido em todas as escalas, o plano Marshall restaurou a Europa Ocidental ao seu antigo posto na hierarquia financeira e industrial global. Enquanto os Estados Unidos mostraram uma flexibilidade com os aliados europeus raramente vista em relação ao Sul Global, o Plano Marshall não era nenhum almoço grátis; seus requisitos foram definidos para arrastar ainda mais a Europa para as redes de mercado dominadas pelos Estados Unidos.
Requisitos similares geralmente acompanhavam os esforços norte-americanos de desenvolvimento no Sul Global. O mais impressionante, ao menos em tese, foi a Aliança pelo Progresso, um programa de “construção nacional” da era Kennedy para a América Latina. Porém, para todos recurso que fluísse dos Estados Unidos para o sul, a Aliança requisitava que os países beneficiários permanecessem abertos ao mercado global de tal forma que o desenvolvimento industrial sustentado era improvável — uma economia abarrotada de bens e capital norte-americanos dificilmente veria alguma atividade industrial local ser construída.
No fim das contas, a Aliança fez pouco mais do que encher os bolsos das elites locais que se beneficiaram da já existente estrutura voltada para exportação de matérias-primas da maior parte das economias latino-americanas. Quando personagens que podiam desafiar essa estrutura surgiam, a CIA era geralmente solícita em fornecer suporte às forças reacionárias que buscavam sua remoção — como o fizeram, por exemplo, no golpe militar de 1964, no Brasil, que removeu o presidente João Goulart antes que o seu programa de “reformas de base” pudesse ser implementado.
Mas mesmo esses programas de desenvolvimento (ou “modernização”) acabaram caindo em desuso nos Estados Unidos — em boa medida por causa do espetacular fracasso do mais ambicioso projeto de modernização dos Estados Unidos: o Vietnam do Sul. Na década de 1980, portanto, a ideia de que alguma vez houve algo injusto sobre a estrutura da economia global era uma coisa que o governo dos Estados Unidos não estava disposto a aceitar.
Em 1981, o presidente Ronald Reagan expressou bem a nova visão norte-americana sobre a economia global durante seu discurso em Cancun na Cúpula Norte-Sul. “A estrada para a prosperidade e plenitude humana é iluminada pela liberdade econômica e pelo incentivo individual”, disse ele aos delegados reunidos. Ele defendeu que a prova disso era a experiência dos próprios Estados Unidos: “Nós sabemos que funciona… É tão emocionante, bem-sucedida e revolucionária quanto era há duzentos anos atrás.”
Mercado hipócrita
Reagan não menciona, claro, que os Estados Unidos utilizaram tarifas no século XIX para proteger as suas próprias indústrias em desenvolvimento da competição com a Europa. Isso apesar do fato de que, em sua juventude e ainda até metade do século XX, proprietários de escravos pró-secessionistas como John C. Calhoun eram tratados como célebres estadistas americanos na maioria dos currículos escolares. Calhoun alcançou proeminência nacional em parte ao se opor à “Tarifa de Abominações”, de 1828, elaborada para proteger a indústria da Nova Inglaterra de bens manufaturados ingleses.
Assim, os políticos norte-americanos na primeira metade do século dezenove eram amplamente entusiasmados pela batalha entre aqueles dos partidos Republicanos e Whigs que acreditavam nas tarifas e nos programas de desenvolvimento e aqueles, como Calhoun, que desejavam manter a economia sulista baseada na exploração do trabalho de escravos negros e na exportação de matérias-primas (algodão, no caso). A vitória do Norte na Guerra Civil foi um evento chave para a subsequente industrialização do país — com o norte reorientando a economia do Sul para longe de sua premissa escravista e exportadora para assentá-la sobre uma economia pautada por baixos salários e pelo abastecimento dos centros industriais do Norte.
Toda essa intrincada história foi, sem surpresa, deixada de lado por Reagan — alguém sempre adepto do uso de um passado inventado para orientar políticas no presente — que afirmou que a história norte-americana era prova do exemplo contrário: limitada intervenção do governo e abertura para o mercado global pavimentaram o caminho do crescimento. Esta não foi uma fantasia histórica vã; em última análise, ela moldou a política de instituições financeiras globais dominadas pelos Estados Unidos, como o FMI e o Banco Mundial. O aumento do preço dos barris de petróleo nos anos 1970 forçaram muitos países no Sul Global a tomar grandes empréstimos e então tiveram de enfrentar dívidas insustentáveis quando os preços das commodities caíram bruscamente na década de 1980.
Desesperados por ajuda financeira, países de baixa ou média receita por todo o Sul, particularmente na América Latina, aceitaram os termos do mandatório “ajuste estrutural” do Norte que os forçava a cortar gastos governamentais, impedindo-os de criar seus próprios estados desenvolvimentistas. Os formuladores de políticas norte-americanos estavam cientes de que esses requisitos seriam difíceis de implementar, para dizer o mínimo, mas insistiam que a fantasia liberal de Reagan era o único caminho verdadeiro para o desenvolvimento econômico sustentado.
Décadas depois, não surpreende que boa parte do Sul Global tenha sido lenta em atender à súplica por unidade contra a Rússia em defesa da ordem liberal mundial.
Sobre o autor
Sean T. Byrnes é um escritor, professor e historiador que vive no meio do Tennessee. Ele é o autor de Disunited Nations: US Foreign Policy, Anti-Americanism, and the Rise of the New Right, pela LSU Press.
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