Francesca Newton
Tribune
A ativista pró-escolha Lisa King segura uma placa em frente à Suprema Corte dos EUA durante o evento anual "Marcha pela Vida" em 22 de janeiro de 2009 em Washington, DC. (Alex Wong / Getty Images) |
Tradução / Semanas atrás, o mundo acordou com a notícia de que os EUA estão prestes a aprofundar seu ataque aos direitos reprodutivos. Politico publicou um rascunho vazado de uma opinião majoritária da Suprema Corte dos EUA que apoia o Mississippi em sua tentativa de proibir a maioria dos abortos após quinze semanas. Ao fazê-lo, anula a validade da legislação “Roe v. Wade”, chamando a decisão que protegeu o direito ao aborto nos EUA por meio século de “gravemente errada desde o início”.
Em “Roe” – uma decisão de 1973 que Joe Biden prometeu várias vezes codificar em lei federal – e “Casey”, esta segunda a partir de 1992, a Justiça decidiu que as leis estaduais que impediam o aborto antes do ponto de viabilidade fetal (geralmente entendida como 24 semanas) interferiam no direito à privacidade da mulher e, portanto, eram inconstitucionais. Esta nova decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos não será vinculativa até sua publicação, prevista para cerca de dois meses e, crucialmente, ainda pode mudar nesse período – mas, se não mudar, estima-se que 26 estados sejam dados como “certos ou prováveis” em tornar o aborto ilegal. Muitos estão aguardando com “leis de gatilho” prontas para serem implementadas automaticamente.
Este primeiro passo foi dado há muito tempo. A lei de quinze semanas do Mississippi é apenas uma entre uma série de medidas estaduais concentradas no Sul e Centro-Oeste e reforçadas pelo apoio do governo Trump. A influência do movimento anti-aborto vem crescendo há anos, graças, em grande parte, ao financiamento de bilionários, incluindo os irmãos Koch (apesar das reivindicações pró-aborto) e o magnata do fraturamento hidráulico Farris Wilks e uma série de outros ricos anônimos. No ano passado, a Open Democracy revelou que os grupos conservadores por trás da lei de aborto do Mississippi receberam quase US$ 100 milhões de dólares em doações anônimas canalizadas através da Fundação Nacional Cristã [National Christian Foundation, no original, NCF] e da Fidelity Charitable [Fidelidade Caridosa, em tradução livre].
Os próprios legisladores por trás das leis anti-aborto foram financiados com dinheiro de nomes bem conhecidos. Uma carta aberta escrita pelo grupo de campanha Equity Forward [“Rumo à Equidade” em tradução livre], relatada pela Forbes, nomeou marcas como Coca-Cola, Johnson & Johnson e Microsoft. O capital não tem nenhum problema em financiar o ataque ao direito ao aborto (e proclamar o feminismo ao mesmo tempo); a direita muitas vezes fica feliz em se juntar ao movimento anti-aborto se isso significar acesso ao poder e ao dinheiro. Como resultado, grupos de campanha podem começar atacando o aborto, mas não param por aí: eles já estão envolvidos em esforços antidemocráticos mais amplos que beneficiam os poderosos às custas do público, principalmente por meio de ataques ao direito ao voto.
Essa coalizão entre o capitalismo e a direita religiosa foi sintetizada pela parceria Trump e Pence, que fez três nomeações para uma Suprema Corte inerentemente política (desinteressada na fantasia pós-ideológica dos liberais judiciários de ambos os lados do Atlântico) em um único mandato, e cujos candidatos compreendem três dos que votaram com a opinião vazada no noticiário. Enquanto a opinião se enquadra como um ato democrático que devolve a tomada de decisões aos representantes do povo, a maioria absoluta do público americano, segundo as pesquisas, quer que “Roe” seja mantida.
“O relatório da Open Democracy observa que US$ 28 milhões de dólares foram gastos por grupos anti-aborto financiados pelo NCF e Fidelity Charitable em campanhas em todo o mundo.”
As consequências dessas campanhas não se limitam à legislação. Mais de um terço das clínicas de aborto independentes ou não da Planned Parenthood fecharam nos EUA nos últimos oito anos até 2020, de acordo com a Vice. O caso Dobbs (“Dobbs Challenge”) foi trazido pela única clínica de saúde que ainda oferece atendimento ao aborto no Mississippi, e cinco outros Estados – Missouri, Kentucky, Dakota do Norte, Dakota do Sul e Virgínia Ocidental – estão no mesmo barco. Embora a derrubada de Roe seja uma catástrofe, muitas pessoas nos Estados Unidos já vivem sem acesso ao aborto em qualquer sentido significativo da palavra.
E embora todos os olhos estejam justamente nos EUA desde o início da audiência do caso Dobbs, o fenômeno não está restrito ao país. O relatório da Open Democracy observa que US$ 28 milhões de dólares foram gastos por grupos anti-aborto financiados pelo NCF e Fidelity Charitable em campanhas em todo o mundo. Em outubro de 2020, Trump co-patrocinou a “Declaração de Consenso de Genebra sobre a Promoção da Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família” anti-aborto, assinada por líderes de 34 países, incluindo Hungria, Polônia e Brasil. No mesmo mês, a Polônia proibiu o aborto quase inteiramente. Na Inglaterra, o governo tentou no início deste ano reverter o aborto por telemedicina que havia sido introduzido durante a pandemia, apesar das evidências serem amplamente a seu favor, aparentemente com pouca justificativa além de uma vaga noção moralista de que fazer um aborto deve ser de difícil acesso.
Na campanha que se seguiu para proteger o aborto por telemedicina, muitos apontaram que as consequências da reversão dos direitos ao aborto invariavelmente feriam mais as mulheres da classe trabalhadora. Tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, as mulheres mais pobres são as mais propensas a abortar. Elas também são menos propensas a pagar viagens através das fronteiras estaduais – muito menos para o exterior – ou conseguir o tempo de folga do trabalho e cuidados infantis necessários para fazê-los. É por isso que os direitos reprodutivos têm sido historicamente uma questão chave para socialistas e sindicatos, que estiveram na vanguarda da luta pelo acesso ao aborto no século XXI: é uma questão de saúde pública universal, igualdade e por direitos das trabalhadoras e trabalhadores.
Em março, após a campanha, os parlamentares britânicos votaram a favor de uma emenda à Lei de Saúde e Cuidado [Health and Care Bill, no original], que anulou a decisão dos ministros e tornou permanente o direito ao acesso ao aborto por telemedicina na Inglaterra. Mas as notícias de hoje provam que, com facilidade, futuras tentativas de reverter o acesso ao aborto – mesmo dessa maneira relativamente menor – podem ter diversas resoluções. Devemos estar preparadas e preparados para as mudanças que virão nos EUA e que podem aprofundar uma guerra de direita contra o direito ao aborto que já se tornou global – e como socialistas, devemos levantar nossas vozes mais alto contra isso.
Sobre a autora
Em “Roe” – uma decisão de 1973 que Joe Biden prometeu várias vezes codificar em lei federal – e “Casey”, esta segunda a partir de 1992, a Justiça decidiu que as leis estaduais que impediam o aborto antes do ponto de viabilidade fetal (geralmente entendida como 24 semanas) interferiam no direito à privacidade da mulher e, portanto, eram inconstitucionais. Esta nova decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos não será vinculativa até sua publicação, prevista para cerca de dois meses e, crucialmente, ainda pode mudar nesse período – mas, se não mudar, estima-se que 26 estados sejam dados como “certos ou prováveis” em tornar o aborto ilegal. Muitos estão aguardando com “leis de gatilho” prontas para serem implementadas automaticamente.
Este primeiro passo foi dado há muito tempo. A lei de quinze semanas do Mississippi é apenas uma entre uma série de medidas estaduais concentradas no Sul e Centro-Oeste e reforçadas pelo apoio do governo Trump. A influência do movimento anti-aborto vem crescendo há anos, graças, em grande parte, ao financiamento de bilionários, incluindo os irmãos Koch (apesar das reivindicações pró-aborto) e o magnata do fraturamento hidráulico Farris Wilks e uma série de outros ricos anônimos. No ano passado, a Open Democracy revelou que os grupos conservadores por trás da lei de aborto do Mississippi receberam quase US$ 100 milhões de dólares em doações anônimas canalizadas através da Fundação Nacional Cristã [National Christian Foundation, no original, NCF] e da Fidelity Charitable [Fidelidade Caridosa, em tradução livre].
Os próprios legisladores por trás das leis anti-aborto foram financiados com dinheiro de nomes bem conhecidos. Uma carta aberta escrita pelo grupo de campanha Equity Forward [“Rumo à Equidade” em tradução livre], relatada pela Forbes, nomeou marcas como Coca-Cola, Johnson & Johnson e Microsoft. O capital não tem nenhum problema em financiar o ataque ao direito ao aborto (e proclamar o feminismo ao mesmo tempo); a direita muitas vezes fica feliz em se juntar ao movimento anti-aborto se isso significar acesso ao poder e ao dinheiro. Como resultado, grupos de campanha podem começar atacando o aborto, mas não param por aí: eles já estão envolvidos em esforços antidemocráticos mais amplos que beneficiam os poderosos às custas do público, principalmente por meio de ataques ao direito ao voto.
Essa coalizão entre o capitalismo e a direita religiosa foi sintetizada pela parceria Trump e Pence, que fez três nomeações para uma Suprema Corte inerentemente política (desinteressada na fantasia pós-ideológica dos liberais judiciários de ambos os lados do Atlântico) em um único mandato, e cujos candidatos compreendem três dos que votaram com a opinião vazada no noticiário. Enquanto a opinião se enquadra como um ato democrático que devolve a tomada de decisões aos representantes do povo, a maioria absoluta do público americano, segundo as pesquisas, quer que “Roe” seja mantida.
“O relatório da Open Democracy observa que US$ 28 milhões de dólares foram gastos por grupos anti-aborto financiados pelo NCF e Fidelity Charitable em campanhas em todo o mundo.”
As consequências dessas campanhas não se limitam à legislação. Mais de um terço das clínicas de aborto independentes ou não da Planned Parenthood fecharam nos EUA nos últimos oito anos até 2020, de acordo com a Vice. O caso Dobbs (“Dobbs Challenge”) foi trazido pela única clínica de saúde que ainda oferece atendimento ao aborto no Mississippi, e cinco outros Estados – Missouri, Kentucky, Dakota do Norte, Dakota do Sul e Virgínia Ocidental – estão no mesmo barco. Embora a derrubada de Roe seja uma catástrofe, muitas pessoas nos Estados Unidos já vivem sem acesso ao aborto em qualquer sentido significativo da palavra.
E embora todos os olhos estejam justamente nos EUA desde o início da audiência do caso Dobbs, o fenômeno não está restrito ao país. O relatório da Open Democracy observa que US$ 28 milhões de dólares foram gastos por grupos anti-aborto financiados pelo NCF e Fidelity Charitable em campanhas em todo o mundo. Em outubro de 2020, Trump co-patrocinou a “Declaração de Consenso de Genebra sobre a Promoção da Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família” anti-aborto, assinada por líderes de 34 países, incluindo Hungria, Polônia e Brasil. No mesmo mês, a Polônia proibiu o aborto quase inteiramente. Na Inglaterra, o governo tentou no início deste ano reverter o aborto por telemedicina que havia sido introduzido durante a pandemia, apesar das evidências serem amplamente a seu favor, aparentemente com pouca justificativa além de uma vaga noção moralista de que fazer um aborto deve ser de difícil acesso.
Na campanha que se seguiu para proteger o aborto por telemedicina, muitos apontaram que as consequências da reversão dos direitos ao aborto invariavelmente feriam mais as mulheres da classe trabalhadora. Tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, as mulheres mais pobres são as mais propensas a abortar. Elas também são menos propensas a pagar viagens através das fronteiras estaduais – muito menos para o exterior – ou conseguir o tempo de folga do trabalho e cuidados infantis necessários para fazê-los. É por isso que os direitos reprodutivos têm sido historicamente uma questão chave para socialistas e sindicatos, que estiveram na vanguarda da luta pelo acesso ao aborto no século XXI: é uma questão de saúde pública universal, igualdade e por direitos das trabalhadoras e trabalhadores.
Em março, após a campanha, os parlamentares britânicos votaram a favor de uma emenda à Lei de Saúde e Cuidado [Health and Care Bill, no original], que anulou a decisão dos ministros e tornou permanente o direito ao acesso ao aborto por telemedicina na Inglaterra. Mas as notícias de hoje provam que, com facilidade, futuras tentativas de reverter o acesso ao aborto – mesmo dessa maneira relativamente menor – podem ter diversas resoluções. Devemos estar preparadas e preparados para as mudanças que virão nos EUA e que podem aprofundar uma guerra de direita contra o direito ao aborto que já se tornou global – e como socialistas, devemos levantar nossas vozes mais alto contra isso.
Sobre a autora
Francesca Newton é editora online da Tribune.
Nenhum comentário:
Postar um comentário