Leia a palestra que Masha Gessen proferiu na cerimônia do Prêmio Hannah Arendt em Bremen.
Masha Gessen
Jornalista russo-americana Masha Gessen: Comparamos "para evitar que aconteça o que sabemos que pode acontecer". © Jens Schlueter/Getty Images |
Vou falar sobre comparações.
Por que comparamos? Comparamos para aprender. É como entendemos o mundo. Uma cor é uma cor apenas entre outras cores. Uma forma é uma forma apenas porque é distinta de outras formas. Um sentimento é um sentimento apenas se você sentiu outros sentimentos.
A comparação é o modo como conhecemos o mundo. No entanto, criamos regras sobre coisas que não podem ser comparadas. Tomemos maçãs e laranjas. Por que você não as compara? Ambas são frutas, ambas têm sabor adocicado, uma geralmente é mais ácida do que a outra, uma tem uma parte não comestível por fora, a outra tem uma parte não comestível por dentro, ambas contêm calorias, nutrientes e vitaminas, embora diferentes, e você pode fazer suco de ambas, mas você precisa de máquinas diferentes para cada uma. Essas me parecem ser formas úteis para conhecer maçãs e laranjas.
Nem todas as comparações são úteis. Muitas vezes, tenho visto estudantes – jovens escritores – usarem metáforas, símiles e analogias de uma forma que, em vez de esclarecer as coisas, as complica. Isso acontece principalmente quando comparam algo comum e familiar – algo que conhecemos – com algo difícil de imaginar. Muitas vezes, tenho que escrever comentários aos estudantes, basicamente pedindo que eles comparem apenas coisas que sejam claramente imagináveis.
O mundo ocidental e a Alemanha em particular investiram muito tempo, esforço, dinheiro, criatividade e energia política para imaginar o Holocausto. Temos linguagens, imagens, estatísticas que estão rapidamente disponíveis para imaginar o Holocausto.
No entanto, existe uma regra – e ela certamente não se aplica apenas à Alemanha – que não permite que você compare qualquer coisa com o Holocausto. E é um paradoxo: imaginamos o Holocausto com grandes detalhes, mas o concebemos como fundamentalmente inimaginável. É um tipo de mal que não podemos compreender. Mas tudo o que acontece no presente é, por definição, imaginável. Podemos ver isso.
Até mesmo crianças pequenas separadas de seus pais na fronteira dos Estados Unidos e postas na prisão são imagináveis quando vemos suas fotos em nossas telas e ouvimos suas vozes em áudios gravados. Então, quando a deputada Alexandria Ocasio Cortez usou as palavras “campos de concentração” para descrever os centros de detenção de migrantes em 2019, essa comparação acendeu um incêndio, porque, entre outras razões, situou o imaginável – uma prática regular do governo dos Estados Unidos – ao lado do inimaginável. Tudo o que é imaginável pelo simples fato de ser visto, ouvido, testemunhado parece-nos incomparável com o Holocausto.
Algumas das expressões usadas para excluir a possibilidade de comparar qualquer coisa com o Holocausto são: “nivelamento do Holocausto”, “relativização do Holocausto” e, paradoxalmente, também “universalização do Holocausto”. Essas frases, que reafirmam a singularidade do Holocausto, estão ligadas à expressão “nunca mais”.
Pensei muito nessa expressão, entre outras coisas devido à sua variante “nunca mais é agora”, que sabemos que faz pouco sentido tanto em alemão quanto em inglês. “Nunca mais” é um projeto político. É uma aspiração – sempre – e não o estado das coisas tal como são. Talvez seja por isso que o “agora” me incomoda tanto.
Um projeto político é algo que acontece no presente, no mundo, entre as pessoas. Hannah Arendt passou toda sua vida intelectual refletindo sobre do que constitui a política. Para ela, a política era um espaço em que tentamos entender como podemos conviver neste mundo, um espaço de discussão, de reflexão e de criação de novas possibilidades. Depois do Holocausto, é um espaço em que descobrimos como conviver neste mundo sem repetir o Holocausto.
Para evitar uma repetição do Holocausto, inventamos, por meio da ação política, o direito humanitário internacional, particularmente as leis para a proteção de civis, assim como o Tribunal Penal Internacional, os tribunais de crimes de guerra e os julgamentos de jurisdição universal. O conceito de genocídio também emergiu como um resultado do Holocausto.
Passei grande parte dos últimos dois anos relatando sobre a guerra na Ucrânia e, em particular, os crimes de guerra cometidos pela Rússia. E vi que as comparações com o Holocausto estavam muito presentes nos discursos não apenas de advogados internacionais, mas também de investigadores locais e de pessoas comuns em lugares como Bucha. Eu os vejo constantemente se perguntando: o que constitui um genocídio? A transferência forçada de pessoas para a Rússia é um componente de genocídio? O genocídio exige que as pessoas que o perpetram pensem nele como um genocídio? O genocídio requer intenção? Requer uma intenção articulada?
Não podemos pensar nessas coisas sem pensar em outros genocídios – e no genocídio que precipitou a criação desses marcos legais.
Quando eu fiz a comparação entre Gaza e o gueto, pensei que estava fazendo uma contribuição original para um discurso dominado pela má metáfora de uma “prisão ao ar livre”. Mais tarde, descobri que a comparação tem uma tradição que remonta a pelo menos 20 anos. Em junho de 2003, a política britânica Oona King escreveu um artigo para o The Guardian descrevendo sua viagem a Israel e à Palestina. Em seu primeiro dia na Faixa de Gaza, um ataque de helicóptero matou uma mulher e seu filho, e feriu dezenas de pessoas. King escreveu: “Os fundadores originais do Estado judeu certamente não poderiam imaginar a trágica ironia que Israel enfrenta hoje: ao escapar das cinzas do Holocausto, eles encarceraram outro povo em um inferno semelhante em sua natureza – embora não em sua extensão – ao Gueto de Varsóvia”. A comparação, obviamente, foi controversa.
Não estou defendendo que, pelo fato de outras pessoas terem feito a mesma comparação que eu, eu estou certa. Estou tentando acrescentar uma dimensão temporal a esse debate.
Não somos mais inteligentes, mais gentis, mais sábios ou mais morais do que as pessoas que viveram há 90 anos. Mas sabemos algo que elas não sabiam: sabemos que o Holocausto é possível – Masha Gessen Tweet
Deixamos de pensar que os eventos históricos se desenvolvem ao longo do tempo. Essa tem sido uma obsessão durante toda a minha vida como escritora. Sempre quis saber sobre a vida que ocorre entre as datas de um livro de história.
O Holocausto foi singular em parte devido ao número de pessoas mortas em um curto período de tempo. Mas até mesmo o Holocausto durou vários anos. As pessoas viveram, tiveram esperança, tentaram dar um sentido ao que estava acontecendo e resistiram.
Para o meu primeiro livro de ficção, há mais de 20 anos, pesquisei sobre o Gueto de Bialystok e, em particular, a vida e os pensamentos do meu bisavô que viveu naquele gueto. Assim, havia uma boa quantidade de materiais: os sobreviventes haviam escrito memórias; pelo menos um jovem manteve um diário durante sua existência no gueto e alguns sobreviventes ainda estavam vivos.
Meu bisavô era um líder do Judenrat. Ele era muito conhecido, e as pessoas o mencionavam em suas lembranças. No início de sua existência no gueto, ele tentou tornar a vida ali habitável, assim como outros que trabalhavam com ele. A comida precisava ser trazida para a mesa. O lixo precisava ser removido. A segurança precisava ser mantida.
Logo no início, em nome da segurança, meu bisavô tentou impedir que os jovens do gueto organizassem uma resistência. Perto do fim, em 1943, depois de o gueto ter sido brutal e drasticamente reduzido em seu tamanho físico e em sua população, meu bisavô estava usando os caminhões de comida, pelos quais ele era responsável, para trazer armas para o gueto. Elas foram usadas durante a revolta contra o Gueto de Bialistok.
O que mudou? Sua posição política e sua imaginação.
No início, ele não sabia o que iria acontecer. Ele não sabia que o Holocausto era possível.
Nós sabemos. Não somos mais inteligentes, mais gentis, mais sábios ou mais morais do que as pessoas que viveram há 90 anos. Mas sabemos algo que elas não sabiam: sabemos que o Holocausto é possível.
E é por isso que comparamos. Para evitar que aconteça o que sabemos que pode acontecer. Para tornar o “nunca mais” um projeto político, em vez de um feitiço
A comparação é o modo como conhecemos o mundo. No entanto, criamos regras sobre coisas que não podem ser comparadas. Tomemos maçãs e laranjas. Por que você não as compara? Ambas são frutas, ambas têm sabor adocicado, uma geralmente é mais ácida do que a outra, uma tem uma parte não comestível por fora, a outra tem uma parte não comestível por dentro, ambas contêm calorias, nutrientes e vitaminas, embora diferentes, e você pode fazer suco de ambas, mas você precisa de máquinas diferentes para cada uma. Essas me parecem ser formas úteis para conhecer maçãs e laranjas.
Nem todas as comparações são úteis. Muitas vezes, tenho visto estudantes – jovens escritores – usarem metáforas, símiles e analogias de uma forma que, em vez de esclarecer as coisas, as complica. Isso acontece principalmente quando comparam algo comum e familiar – algo que conhecemos – com algo difícil de imaginar. Muitas vezes, tenho que escrever comentários aos estudantes, basicamente pedindo que eles comparem apenas coisas que sejam claramente imagináveis.
O mundo ocidental e a Alemanha em particular investiram muito tempo, esforço, dinheiro, criatividade e energia política para imaginar o Holocausto. Temos linguagens, imagens, estatísticas que estão rapidamente disponíveis para imaginar o Holocausto.
No entanto, existe uma regra – e ela certamente não se aplica apenas à Alemanha – que não permite que você compare qualquer coisa com o Holocausto. E é um paradoxo: imaginamos o Holocausto com grandes detalhes, mas o concebemos como fundamentalmente inimaginável. É um tipo de mal que não podemos compreender. Mas tudo o que acontece no presente é, por definição, imaginável. Podemos ver isso.
Até mesmo crianças pequenas separadas de seus pais na fronteira dos Estados Unidos e postas na prisão são imagináveis quando vemos suas fotos em nossas telas e ouvimos suas vozes em áudios gravados. Então, quando a deputada Alexandria Ocasio Cortez usou as palavras “campos de concentração” para descrever os centros de detenção de migrantes em 2019, essa comparação acendeu um incêndio, porque, entre outras razões, situou o imaginável – uma prática regular do governo dos Estados Unidos – ao lado do inimaginável. Tudo o que é imaginável pelo simples fato de ser visto, ouvido, testemunhado parece-nos incomparável com o Holocausto.
Algumas das expressões usadas para excluir a possibilidade de comparar qualquer coisa com o Holocausto são: “nivelamento do Holocausto”, “relativização do Holocausto” e, paradoxalmente, também “universalização do Holocausto”. Essas frases, que reafirmam a singularidade do Holocausto, estão ligadas à expressão “nunca mais”.
Pensei muito nessa expressão, entre outras coisas devido à sua variante “nunca mais é agora”, que sabemos que faz pouco sentido tanto em alemão quanto em inglês. “Nunca mais” é um projeto político. É uma aspiração – sempre – e não o estado das coisas tal como são. Talvez seja por isso que o “agora” me incomoda tanto.
Um projeto político é algo que acontece no presente, no mundo, entre as pessoas. Hannah Arendt passou toda sua vida intelectual refletindo sobre do que constitui a política. Para ela, a política era um espaço em que tentamos entender como podemos conviver neste mundo, um espaço de discussão, de reflexão e de criação de novas possibilidades. Depois do Holocausto, é um espaço em que descobrimos como conviver neste mundo sem repetir o Holocausto.
Para evitar uma repetição do Holocausto, inventamos, por meio da ação política, o direito humanitário internacional, particularmente as leis para a proteção de civis, assim como o Tribunal Penal Internacional, os tribunais de crimes de guerra e os julgamentos de jurisdição universal. O conceito de genocídio também emergiu como um resultado do Holocausto.
Passei grande parte dos últimos dois anos relatando sobre a guerra na Ucrânia e, em particular, os crimes de guerra cometidos pela Rússia. E vi que as comparações com o Holocausto estavam muito presentes nos discursos não apenas de advogados internacionais, mas também de investigadores locais e de pessoas comuns em lugares como Bucha. Eu os vejo constantemente se perguntando: o que constitui um genocídio? A transferência forçada de pessoas para a Rússia é um componente de genocídio? O genocídio exige que as pessoas que o perpetram pensem nele como um genocídio? O genocídio requer intenção? Requer uma intenção articulada?
Não podemos pensar nessas coisas sem pensar em outros genocídios – e no genocídio que precipitou a criação desses marcos legais.
Quando eu fiz a comparação entre Gaza e o gueto, pensei que estava fazendo uma contribuição original para um discurso dominado pela má metáfora de uma “prisão ao ar livre”. Mais tarde, descobri que a comparação tem uma tradição que remonta a pelo menos 20 anos. Em junho de 2003, a política britânica Oona King escreveu um artigo para o The Guardian descrevendo sua viagem a Israel e à Palestina. Em seu primeiro dia na Faixa de Gaza, um ataque de helicóptero matou uma mulher e seu filho, e feriu dezenas de pessoas. King escreveu: “Os fundadores originais do Estado judeu certamente não poderiam imaginar a trágica ironia que Israel enfrenta hoje: ao escapar das cinzas do Holocausto, eles encarceraram outro povo em um inferno semelhante em sua natureza – embora não em sua extensão – ao Gueto de Varsóvia”. A comparação, obviamente, foi controversa.
Não estou defendendo que, pelo fato de outras pessoas terem feito a mesma comparação que eu, eu estou certa. Estou tentando acrescentar uma dimensão temporal a esse debate.
Não somos mais inteligentes, mais gentis, mais sábios ou mais morais do que as pessoas que viveram há 90 anos. Mas sabemos algo que elas não sabiam: sabemos que o Holocausto é possível – Masha Gessen Tweet
Deixamos de pensar que os eventos históricos se desenvolvem ao longo do tempo. Essa tem sido uma obsessão durante toda a minha vida como escritora. Sempre quis saber sobre a vida que ocorre entre as datas de um livro de história.
O Holocausto foi singular em parte devido ao número de pessoas mortas em um curto período de tempo. Mas até mesmo o Holocausto durou vários anos. As pessoas viveram, tiveram esperança, tentaram dar um sentido ao que estava acontecendo e resistiram.
Para o meu primeiro livro de ficção, há mais de 20 anos, pesquisei sobre o Gueto de Bialystok e, em particular, a vida e os pensamentos do meu bisavô que viveu naquele gueto. Assim, havia uma boa quantidade de materiais: os sobreviventes haviam escrito memórias; pelo menos um jovem manteve um diário durante sua existência no gueto e alguns sobreviventes ainda estavam vivos.
Meu bisavô era um líder do Judenrat. Ele era muito conhecido, e as pessoas o mencionavam em suas lembranças. No início de sua existência no gueto, ele tentou tornar a vida ali habitável, assim como outros que trabalhavam com ele. A comida precisava ser trazida para a mesa. O lixo precisava ser removido. A segurança precisava ser mantida.
Logo no início, em nome da segurança, meu bisavô tentou impedir que os jovens do gueto organizassem uma resistência. Perto do fim, em 1943, depois de o gueto ter sido brutal e drasticamente reduzido em seu tamanho físico e em sua população, meu bisavô estava usando os caminhões de comida, pelos quais ele era responsável, para trazer armas para o gueto. Elas foram usadas durante a revolta contra o Gueto de Bialistok.
O que mudou? Sua posição política e sua imaginação.
No início, ele não sabia o que iria acontecer. Ele não sabia que o Holocausto era possível.
Nós sabemos. Não somos mais inteligentes, mais gentis, mais sábios ou mais morais do que as pessoas que viveram há 90 anos. Mas sabemos algo que elas não sabiam: sabemos que o Holocausto é possível.
E é por isso que comparamos. Para evitar que aconteça o que sabemos que pode acontecer. Para tornar o “nunca mais” um projeto político, em vez de um feitiço
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